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Cuano: Insegurança na distinção da garantia de cessão fiduciária

4 de janeiro de 2022, 15h13

Por Rodrigo Pereira Cuano

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A divergência instaurada entre as câmaras empresariais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca da sujeição ou não dos créditos garantidos por cessão fiduciária (recebíveis) aos efeitos da recuperação judicial tem causado grande insegurança jurídica nos mercados financeiro e de crédito.

Enquanto a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial segue a orientação, que, apesar de não ser vinculante, tem sido reiteradamente ditada pelo Superior Tribunal de Justiça, o entendimento da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, por maioria, é de realizar distinção entre os créditos performados e a performar.

Segundo esse entendimento, somente os créditos performados — aqueles constituídos até a data da distribuição da recuperação judicial — pertencem ao credor fiduciário e, por isso, podem ser objeto de retenção, sendo considerada "performada a garantia no exato momento do saque da duplicata, caso da cessão fiduciária de títulos/duplicatas, ou da entrada/bloqueio dos recebíveis, caso da cessão fiduciária de crédito (futuro)".

De outro lado, conclui que "os créditos a performar ou inexistentes ao tempo da distribuição da recuperação judicial, não autorizam as retenções, pois, inversamente do que ocorre com os performados, não há, por parte da recuperanda, neste momento, livre disposição que autorize formar a alienação fiduciária do crédito futuro".

Referida distinção, além de causar relevante insegurança jurídica no mercado financeiro e de crédito, acaba por destoar da orientação do Superior Tribunal de Justiça e das previsões constantes de nosso ordenamento jurídico, já que além de o artigo 66-B da Lei 4.728/65 expressamente admitir a cessão fiduciária de títulos de crédito, os artigos 30 e 31, da Lei 10.931/04 disciplinam que esta poderá ser "constituída por bem patrimonial de qualquer espécie", inclusive sobre bens presentes ou futuros.

Dúvidas não há, portanto, de que o objeto de cessão fiduciária pode se referir a créditos já constituídos (performados) ou a créditos futuros (a performar), na medida em que o negócio jurídico, para a sua validade, deve ostentar objeto lícito, possível e determinado ou passível de determinação, nos termos do artigo 104, II, do Código Civil.

A ministra Nancy Andrighi, de forma cristalina, no julgamento do Recurso Especial 1.934.153/SP destacou que "em se tratando de titularidade derivada de cessão fiduciária, a condição de proprietário é alcançada desde a contratação da garantia, de modo que, uma vez preenchidos os requisitos exigidos pelo artigos 66-B da Lei do Mercado de Capitais e 18 da Lei 9.514/97, opera-se a transferência plena da titularidade dos créditos para o cessionário, haja vista a própria natureza do objeto da garantia, fato que o torna o verdadeiro proprietário dos bens, em substituição ao credor da relação jurídica originária".

Razão pela qual concluiu que "o entendimento do Tribunal de origem — que, em última análise, trata o crédito futuro cedido fiduciariamente como sendo concursal, já que o submete a os efeitos da recuperação judicial da empresa devedora, destoa da jurisprudência desta Corte".

Na mesma linha de entendimento se encontra a orientação de consagrados juristas, como Marcelo Sacramone, Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli, os quais reconhecem ser lícito ceder fiduciariamente créditos futuros.

Convém destacar ainda que a garantia que recai sobre créditos futuros é justamente aquela que tem conseguido ofertar ao mercado taxas de juros menores, diante da redução do risco, se comparado com outros instrumentos de financiamento ou de crédito.

Entendimento contrário seria violação à boa-fé objetiva, conforme muito bem exposto pela ministra Gallotti, do STJ, quando do julgamento do REsp 1.263.500/ES, no qual asseverou que se "a disciplina legal do instituto da alienação fiduciária em garantia foi considerada pelo credor quando da contratação do financiamento. As bases econômicas do negócio jurídico teriam sido outras se diversa fosse a garantia, o que não pode ser desconsiderado sob pena de ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, basilar do Código Civil".

Se a vontade do legislador foi permitir a cessão fiduciária de créditos futuros, entendimento diverso criará grande risco e insegurança jurídica, não sendo esse o objetivo da lei, conforme muito bem pontuado pelo senador Ramez Tebet no Parecer 534/04, no qual destacou ser necessário "conferir às normas relativas à falência, à recuperação judicial e à recuperação extrajudicial tanta clareza e precisão quanto possível, para evitar que múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos e, assim, fique prejudicado o planejamento das atividades das empresas e de suas contrapartes".