Opinião

O pragmatismo tributário na balança e a modulação de efeitos no STF

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  • é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e sócio do Collavini Advogados.

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3 de janeiro de 2022, 18h09

O ano de 2021 foi marcado por uma pauta consequencialista no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no que se refere aos julgamentos em matéria tributária. As consequências que uma decisão judicial venha causar podem servir como justificativa para uma tomada de posição quanto aos lineamentos jurídicos concernentes aos efeitos decisórios. Nenhum juiz está imune ao pensamento de que a sua atuação pode levar a efeito acontecimentos drásticos e situações inexoravelmente difíceis.

A questão, porém, é a presença apenas desse tipo de argumento como forma de fundamentação para restringir os efeitos de uma decisão ou, até mesmo, preservar um "estado de coisas inconstitucional" para permitir que seja feita uma adequação.

A nossa tradição jurídica relativa aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é clara: normas inconstitucionais são nulas desde a sua gênese. Portanto, uma declaração de inconstitucionalidade tem como consequência a desconstituição de fatos jurídicos constituídos sob a égide de tal regra inconstitucional. Essa, portanto, é a regra.

Quando se trata de modificar esse "efeito-regra", há de se ter razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Expressões tão amplas e com uma margem infinita de significados pode dar ao leitor a ideia de que não há um critério seguro para aplicar a manipulação dos efeitos. Isso seria verdade se não olhássemos para o que os interpretes dessas regras  sim, os juízes  dizem sobre ela.

Desde a edição da Lei 9.868/1999, que incluiu no ordenamento jurídico o instituto da modulação de efeitos [1], até abril de 2020, é possível constatar que o STF buscava delimitar o significado dessas expressões em algumas situações práticas, como a necessidade de preservar a segurança jurídica nos casos de modificação de jurisprudência da corte constitucional em matéria tributária e, também, nas situações em que envolviam a revogação de decisões liminares que suspendiam temporariamente a execução de determinado comando normativo [2].

Havia também certo padrão nos casos de argumentação pelo excepcional interesse social, no sentido de que deveria ser apresentada prova inequívoca de que a decisão a ser tomada pela corte causaria danos irreversíveis para alguma coletividade específica, sendo afastados argumentos ad terrorem como, por exemplo, o impacto nas contas públicas como forma de impossibilitar prestações positivas do Estado [3].

Houve desvios dos padrões mencionados nesse período, como, por exemplo, o julgamento da inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212/1991, por meio dos Recursos Extraordinários 556.664/RS, 559.882/RS e 560.626/RS. Naquela oportunidade, a modulação dos efeitos não fora específica quanto aos argumentos de proteção da segurança jurídica ou excepcional interesse social, a qual não escapou de críticas no próprio julgamento [4].

Essa situação se mostrou atípica dentro das premissas usualmente adotadas nos casos de modulação em matéria tributária. No entanto, após abril de 2020, a jurisprudência de modulação de efeitos teve alteração substancial, cuja causa  por hipótese  parece ser a crise socioeconômica decorrente da pandemia do novo coronavírus.

Como exemplo, podemos citar o julgamento de embargos de declaração no Recurso Extraordinário 574.706/PR, no qual o tribunal, por maioria de votos, modulou os efeitos do julgado para que a sua eficácia se desse a partir de 15 de março de 2017, ressalvados os pleitos judiciais e administrativos protocolizados antes dessa data. Quanto ao corte temporal e à proteção de ações judiciais e pleitos administrativos antes da data de julgamento, o STF seguiu um padrão.

O ponto que destoa da jurisprudência são os argumentos da modulação: a modificação de jurisprudência consolidada no âmbito infraconstitucional e o impacto orçamentário. No âmbito da jurisprudência de modulação, o STF não considerava, no passado, a jurisprudência de outros tribunais como modificação de jurisprudência, justamente pelo fato de que a questão constitucional não havia sido decidida [5]. No que se refere à questão orçamentária, como já demonstrado acima, a jurisprudência sequer considerava esse argumento como passível de modulação. E, se fosse o caso de enquadramento na hipótese de proteção de um excepcional interesse social, a própria jurisprudência da corte demandava apresentação de comprovação de um dano social irreversível [6].

Esse mesmo argumento orçamentário foi utilizado na recente decisão que modulou os efeitos no julgamento do RE 714.139 (Tema 745), o qual declarou a inconstitucionalidade da fixação da alíquota do ICMS sobre operações de fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicações em patamar superior à cobrada sobre as operações em geral, em razão da essencialidade dos bens e serviços.

O ministro Dias Toffoli propôs a modulação, acolhida pelo colegiado, no sentido de que a decisão apenas passe a valer a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvando as ações ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito (5/2/21). Segundo o ministro, a aplicação da alíquota reduzida já no exercício financeiro de 2022 representaria perda anual estimada pelos estados em R$ 26,6 bilhões, segundo informações dos representantes dos estados, sendo que "as perdas de arrecadação ocorrem em tempos difíceis e atingem estados cujas economias já estão combalidas" [7].

A estimativa de perdas orçamentárias não é fundamento para modulação dos efeitos. E, não só apenas a jurisprudência do STF em modulação trazia esse entendimento [8], como próprio ministro Dias Toffoli, no caso do RE 595.838/SP, afastou a modulação de efeitos, cujo pedido, na oportunidade, estava fundamentado numa estimativa de impacto orçamentário estimado em aproximadamente nos em R$ 7,78 bilhões, conforme a Nota Cetad/Coest nº 149/2014 da Receita Federal:

"A pretendida modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é, no entanto, medida extrema, que somente se justifica se estiver indicado e comprovado gravíssimo risco irreversível à ordem social. As razões recursais não contêm qualquer indicação concreta, nem específica, desse risco.
A mera alegação de perda de arrecadação não é suficiente para comprovar a presença do excepcional interesse social a justificar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade na forma pretendida.
Note-se que modular os efeitos, no caso dos autos, importaria em negar o próprio direito ao contribuinte de repetir o indébito de valores que eventualmente tenham sido recolhidos".

Esse tipo de postura contraditória da corte revela que o pragmatismo orçamentário está engolindo a dogmática constitucional em matéria tributária. Situações como a negativa de modulação dos efeitos no RE 603.136 [9], cujo julgamento declarou constitucional a incidência de ISS sobre contratos de franquia, sacramentando a imposição de um ônus retroativo tributário inesperado aos contribuintes, fazem nascer uma sensação de que, no contexto pandêmico, a utilização do instituto parece ter lado.

Esse tipo de postura que se distancia dos postulados constitucionais fundamentais, inerentes ao âmbito de proteção dos contribuintes, para se aproximar do imediatismo orçamentário é o elemento motriz da insegurança jurídica e quebra de confiança legitima dos daqueles que buscam a tutela jurisdicional para terem seus direitos reconhecidos e protegidos de arbitrariedades do poder público.

Sucumbir a pragmática é relegar o Direito e o papel da corte constitucional a uma planilha de cálculos ou calculadora. É, portanto, entregar o destino do Direito ao arbítrio, o que, sem dúvida nenhuma, não é a prática e a vocação democrática do STF. Esperamos que os tempos estanhos tenham fim em 2022.

 


[1] "Artigo 27 – Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

[2] Ver: RE 353.657/PR, RE 370.682/SC, RE 381.964, RE 377.457, RE 363.852/MG, ADI 4.628/DF, RE 680.089, ADPF 190, RE 593.849/MG, RE 723.651, RE 838.264, RE 522.897/RN, RE 718.874/RS-RG, RE 651.703/PR, RE 635.688/RS e RE 643.247/SP.
Os casos acima refletem tanto argumentações favoráreis como contra a modulação, a depender, na visão dos ministros, da (in)existência de modificação de jurisprudência ou revogação de liminares.

[3] Ver: AgRg no RE 696.321/MG, ED no RE 634.578/MG, AgRg no RE 535.085/GO, RE 595.838/SP, RE 559.937/RS, ADI 429/CE, ADI 4171, RE 704.292/PR,

[4] O voto condutor da modulação, proferido pelo ministro Gilmar Mendes, apenas destacava que acolheria a modulação "tendo em vista a repercussão e a insegurança jurídica que se pode ter na hipótese". Em crítica mordaz, o ministro Marco Aurélio:
"Indago: podemos cogitar de contexto a autorizar a modulação? A meu ver, não. E decidimos, há pouco  só que aqui os ventos beneficiam o Estado e no caso a que me refiro, o pleito se mostrou dos contribuintes , em situação mais favorável à modulação, e ela foi rechaçada, quando examinamos a questão da alíquota zero e do Imposto sobre Produtos Industrializados. O Tribunal, nessa oportunidade  e buscavam os contribuintes a modulação apontou que não haveria como se cogitar de insegurança jurídica porque os pronunciamentos anteriores, estes sim a favor dos contribuintes, dos beneficiários do pleito de modulação, não teriam transitado em julgado.
(…) A jurisprudência do Supremo, desde 1969, sempre foi no sentido de se ter como indispensável o trato da matéria mediante lei complementar  e a Lei nº 8.212, repito, é de 1991 não há premissa que leve o Tribunal a quase sinalizar no sentido de que vale a pena editar normas inconstitucionais porque, posteriormente, ante a morosidade da Justiça, se acaba chegando a um meio termo que, em última análise  em vez de homenagear a Constituição, de torná-la realmente observada por todos, amada por todos , passa a mitigá-la, solapá-la, feri-la praticamente de morte".

[5] Nesse sentido, os EDs no REs nºs 381.964 e 377.457, em que o STF julgou constitucional a revogação da isenção da contribuição prevista na Lei Complementar nº 70/91, concedida às sociedades civis de prestação de serviço regulamentadas, por meio da Lei ordinária nº 9.430/96. Nesse caso, o STJ tinha entendimento sedimentado na Súmula 276. A modulação foi negada e os contribuintes, que se pautavam na Súmula 276, foram atingidos pelos efeitos irrestritos do julgado.

[6] No caso do RE 574.706/PR, as estimativas de impacto orçamentário alegadas pela procuradoria não possuíam lastro contábil. Nesse sentido, ver: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/porque-o-stf-nao-deve-confiar-no-impacto-de-r-250-bi-04092017.

[8] Ver a decisão relacionada ao pedido de modulação dos efeitos quando houve a declaração de inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição ao PIS-Importação e Cofins-Importação incidentes no desembaraço aduaneiro, por ocasião do julgamento do RE 559.937/RS.

[9] Nesse caso, havia argumentos que partiam de um entendimento sumulado da própria corte, no qual era possível extrair que os contribuintes partilhavam de uma confiança legitima de que a decisão, em sentido diverso, teria efeitos ex nunc. Ver: https://www.conjur.com.br/2021-ago-29/stf-rejeita-modulacao-decisao-cobranca-iss-franquias.

Autores

  • é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP e sócio do Flávio Molinari Advocacia Tributária.

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