Retrospectiva 2021

Direito Concorrencial: transição em meio a novos (e velhos) desafios

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3 de janeiro de 2022, 10h01

Do ponto de vista institucional, o ano foi marcado por términos de mandatos em posições-chave do Cade e ainda muita incerteza sobre quem deverá assumir essas posições. Em julho, houve tentativa ainda não efetuada de troca de cadeiras: com o fim do mandato do então presidente do tribunal, Alexandre Barreto, foi nomeado e tomou posse como presidente para mandato de quatro anos o então superintendente-geral, Alexandre Cordeiro Macedo (cujo mandato como superintendente terminaria no segundo semestre). Por sua vez, Barreto foi nomeado superintendente (mandato de dois anos), mas sua aprovação pelo Senado ainda resta pendente, de modo que o cargo continua vago. Outros dois mandatos chave permanecem vagos: o de conselheiro, após a saída de Mauricio Oscar Bandeira Maia, e a cadeira do procurador-chefe junto ao Cade, após o fim do mandato de Walter de Agra Junior.

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Além das mudanças na composição da autarquia, vale destacar o lançamento de algumas publicações importantes. Em outubro, o Cade publicou o "Guia de Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade", que consolida entendimento do tribunal do Cade sobre os elementos de prova utilizados para a comprovação de participação nas condutas de cartel e influência à conduta uniforme [1]. Ao longo do ano, o Departamento de Estudos Econômicos do Cade (DEE) também apresentou estudos relevantes que refletem as áreas para as quais o Cade tem voltado sua atenção, como o "Caderno sobre o Mercado de Plataformas Digitais", que apresenta a jurisprudência do Cade em casos que envolveram mercados digitais [2], e os "Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar", três estudos para melhor compreensão dos desafios concorrenciais desse setor [3].

Destaca-se ainda, no âmbito institucional, a celebração de acordo de cooperação técnica entre Cade e Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) com o objetivo de estabelecer as diretrizes para atuação conjunta em casos que envolvam defesa da concorrência e proteção de dados pessoais [4]. Merece destaque, ainda, a celebração de memorando de entendimentos que estabelece procedimentos comuns de análise de casos de cobrança do Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres (SSE), com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). O ano de 2021 também marcou uma iniciativa inédita envolvendo Cade, Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Ministério Público Federal (MPF) e a recém-formada ANPD, por meio da publicação de uma recomendação conjunta ao Facebook sobre a nova política de privacidade do WhatsApp [5].

Controle de estruturas
O ano foi marcado por atos de concentração com repercussões complexas sobre a concorrência que demandaram detalhada análise pelo Cade. Merecem destaque:

Em janeiro, o tribunal do Cade aprovou a aquisição de um portfólio de medicamentos da Takeda pela concorrente Hypera, condicionando a aprovação à alienação de determinas linhas de medicamentos das empresas [6]. As partes realizaram o desinvestimento ainda em 2020, possibilitando uma aprovação mais célere de sua operação;

Em fevereiro, o tribunal aprovou a compra da operadora de planos de saúde Plamed pela rival Hapvida, condicionada à alienação de determinadas carteiras de beneficiários na região de Aracaju [7]. No entanto, o tribunal acabaria bloqueando a operação em novembro, após as empresas falharem em cumprir com o prazo estabelecido para a venda de carteiras de beneficiários. A decisão dividiu o tribunal do Cade e foi marcada por debates sobre a possibilidade de ampliar o prazo para preservar o acordo firmado com as empresas;

Em abril, o tribunal rejeitou recurso do terceiro interessado Mercado Pago e manteve a decisão de aprovação sem restrições da aquisição da empresa de pagamentos Hub Prepaid pela Magalu Pagamentos, do Grupo Magalu [8]. O tribunal concluiu que obrigações contratuais e regulatórias (como a Lei Geral de Proteção de Dados LGPD) seriam suficientes para impedir eventual utilização indevida, pelo Grupo Magalu, de dados da Hub Prepaid;

Em abril, o tribunal bloqueou a aquisição da petroquímica Innova pela rival Videolar após o descumprimento de remédios comportamentais, que incluíam obrigações de manter níveis mínimos de produção de poliestireno, negociados com o Cade em 2014 [9]. Em outubro, entretanto, o tribunal reverteu sua decisão, aprovando um novo acordo com remédios comportamentais negociados com as empresas. O tribunal entendeu que a reprovação da operação havia sido equivocada, posto que as partes haviam cumprido a maior parte das obrigações anteriormente acordadas. Além disso, observou que haviam sido desconsiderados fatores da economia global que impactaram sua capacidade de cumprir o acordo haviam sido desconsiderados;

Em junho, o então presidente Alexandre Barreto determinou a reinstrução do caso que analisou a aquisição da Garoto pela Nestlé, anunciada em 2002 e reprovada pelo Cade em outubro de 2004 [10], ainda sob vigência da antiga Lei nº 8.884/1994, após a rejeição, pelo Tribunal Regional da 1ª Região, de recursos da Nestlé em ação judicial que busca anular a decisão do Cade. Embora a determinação do ex-presidente tenha sido objeto de tentativa de rediscussão por conselheiros do Cade, o tema já se encontra na superintendência para início da instrução;

Em dezembro, o tribunal aprovou a aquisição da locadora de veículos Unidas por sua competidora Localiza [11], condicionada a um acordo que compreende um conjunto de medidas estruturais e comportamentais, incluindo a alienação de agências, lojas, sistemas e parcela da frota operacional da Unidas, da própria marca Unidas, e o compromisso, pela Localiza, de não realizar novas aquisições no mercado de locação de veículos (RAC) por três anos. Além disso, a Localiza não poderá exercer direito de não concorrência previsto em um acordo de aliança celebrado com a norte-americana Vanguard Car Rental em 2020.

Condutas unilaterais
Com relação a condutas unilaterais, merecem destaque casos que envolveram mercados digitais e de mídia, além de indústrias tradicionais como de transporte ferroviário:

Em março, a SG instaurou inquérito para apurar indícios de infração à ordem econômica por parte do iFood, após receber representações da Rappi e da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Os representantes questionam o potencial de contratos de exclusividade firmados pelo iFood com grandes redes de restaurantes fecharem o mercado contra plataformas de delivery concorrentes [12]. Com a abertura de inquérito, a SG adotou medida preventiva para proibir o iFood de firmar novos contratos que contenham cláusulas de exclusividade, bem como de alterar contratos já celebrados sem cláusula de exclusividade até decisão final do caso;

Em junho, o Cade avaliou consulta da Ipiranga sobre a licitude de nova política comercial que envolvia a sugestão de preços máximos para a revenda de combustíveis líquidos, bem como o uso de algoritmos para a precificação na negociação com revendedores de combustíveis que integram a sua rede [13]. Segundo o tribunal, a proposta de política comercial da Ipiranga seria lícita, posto se tratar de mera sugestão de preços. No entanto, a agência destacou que o uso de algoritmos para sugestão de preços pode resultar em riscos de colusão, tanto entre revendedores da Ipiranga quanto entre a distribuidora e seus rivais. Assim, o tribunal determinou que sugestões de preços geradas pelo algoritmo devem ser individualizadas com base nas características de cada revendedor, e que o sistema algorítmico e a base de dados empregada para alimentar o sistema deverão ser únicos e exclusivos da Ipiranga;

Em julho, a SG converteu em processo administrativo investigação contra a Globo por bonificação por volume (BV) em contratos com agências de publicidade [14]. Segundo a SG, a prática de BV seria, em geral, lícita — no entanto, dada a posição dominante da Globo nos mercados de TV e as características específicas da BV praticada pela Globo, haveria fortes indícios de infração à ordem econômica que elevaria os custos de rivais;

Em novembro, o tribunal condenou as empresas Rumo e ALL por recusa de acesso a infraestrutura essencial [15]. Segundo o tribunal, as empresas teriam criado dificuldades para a atuação da concorrente Agrovia, que dependia, por sua vez, da utilização da Malha Paulista, ferrovia controlada pela Rumo-ALL, para transportar açúcar até o Porto de Santos. O tribunal verificou, ainda, que a inviabilização do acesso da Agrovia à infraestrutura essencial teria resultado no encerramento das atividades da empresa. A multa aplicada às empresas chegou a mais de R$ 240 milhões;

 Em novembro, o tribunal avaliou consulta da Michelin sobre a licitude de política de preços mínimos anunciados (PMA) em publicidade no mercado de revenda de pneus para reposição. Segundo a maioria do tribunal, não seria possível declarar a prática lícita. Isso porque a política de PMA resultaria em efeitos semelhantes aos da fixação de preços de revenda, prática presumida como ilícita caso a empresa detenha poder de mercado. No caso, a Michelin não deteria, sozinha, poder de mercado. Entretanto, sua concorrente Continental também implementa sua própria PMA, tendo sido autorizada para tanto em 2018 pelo Cade, e considerando-se as participações de mercado das empresas em conjunto, ter-se-ia mais de 20% do mercado afetado por políticas de PMA. Assim, em decisão muito questionável, o Cade entendeu que seria possível presumir que a política da Michelin resultaria em efeitos anticompetitivos, e a empresa não foi capaz de demonstrar eficiências repassáveis ao consumidor que superassem tais efeitos.

Condutas colusivas
Em 2021, o Cade deu continuidade a sua política rigorosa de persecução a cartéis. Discussões relevantes envolveram: 1) metodologia adequada para aplicação de multas e o debate sobre vantagem auferida (que permanece dividindo os conselheiros); e 2) a consolidação de uma tendência mais rigorosa de análise de evidências e declarações apresentadas por signatários de acordos de leniência ou TCCs.

Em fevereiro, o tribunal do Cade condenou empresas por cartel no mercado de componentes eletrônicos para o setor de telecomunicações [16]. No caso, o tribunal decidiu aplicar multa calculada com base na estimativa de vantagem auferida com o cartel para uma das empresas condenadas. Isso porque notas fiscais disponíveis nos autos permitiam verificar os valores recebidos por essa empresa a título de remuneração pela apresentação de ofertas de cobertura em licitações privadas. Assim, o tribunal decidiu calcular sua multa como a soma dos valores recebidos corrigidos pelo IPCA, e não a partir de um percentual de seu faturamento corrigido pela Selic.

Já em junho, o tribunal condenou cartel em licitações públicas destinadas à aquisição de uniformes e kits de materiais escolares para alunos da rede pública de ensino no estado de São Paulo [17]. Para determinar as multas aplicáveis, o tribunal comparou os valores de multas calculadas com base no faturamento das empresas com os de multas calculadas com base na em estimativas de sua vantagem auferida, definidas a partir da multiplicação de um sobrepreço estimado pelos valores de licitações vencidas pelos cartelistas. Assim, multas com base no cálculo de vantagem auferida foram aplicadas aos representados quando seus valores foram superiores às calculadas com base em seu faturamento. Racional similar foi adotado no julgamento do cartel em licitações públicas para aquisição de material escolar e de escritório por prefeituras municipais do estado de Pernambuco, julgado em agosto [18].

Além disso, a SG instaurou em março investigação para apurar supostas práticas anticompetitivas no mercado brasileiro de trabalhadores empregados na indústria de healthcare [19]. Segundo a SG, diversas empresas teriam trocado informações concorrencialmente sensíveis sobre gestão de pessoas e recursos humanos para apoiar suas tomadas de decisão sobre contratação, remuneração e manutenção de funcionários. Trata-se da primeira investigação do Cade de supostas práticas horizontais afetando a remuneração e aspectos da contratação de trabalhadores.

Por fim, o tribunal homologou em junho quatro TCCs [20] em investigação de suposto cartel de compra de resíduos animais no estado do Rio Grande do Sul [21]. Para calcular as contribuições pecuniárias relativas aos acordos, o tribunal adotou como base de cálculo das multas esperadas em caso de condenação os custos com a aquisição dos resíduos animais pelas empresas no RS, e não o faturamento das representadas no ano anterior à instauração do processo. Isso porque, tratando-se de suposto cartel de compra de insumos, e não de comercialização de bens ou serviços, seria inadequado utilizar como base de cálculo o faturamento obtido pelas empresas.

Agenda para 2022
O próximo ano será mais um período de mudanças relevantes na composição do Cade. As vagas de superintendente-geral, procurador-chefe e um assento de conselheiro se encontra, ao final de 2021, ainda sem novos titulares. Em julho, a presidência da República indicou Alexandre Barreto de Souza para exercer o cargo de superintendente-geral e o ex-procurador federal Gustavo Augusto Freitas de Lima para exercer o cargo de conselheiro deixado por Bandeira Maia. A indicação de Lima para o cargo de Conselheiro do Cade foi aprovada pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado em dezembro, mas ainda se encontra pendente de apreciação pelo Plenário. A indicação de Barreto, por sua vez, ainda não foi deliberada, e não há nomeação para o cargo de procurador-chefe. Além disso, em fevereiro, encerrar-se-á o mandato da conselheira Paula Farani de Azevedo Silveira, abrindo-se mais uma vaga para o tribunal do Cade.

O Cade terá de lidar com temas relevantes em meio a essa mudança de composição. Com relação ao controle de estruturas, é esperado que o Cade conclua análises de operações relevantes, especialmente a aquisição de ativos de telefonia móvel da Oi por suas rivais Telefônica, TIM e Claro [22]. A operação foi declarada complexa pela SG em julho em virtude dos significativos impactos gerados no mercado de telefonia móvel e, em novembro, a SG impugnou a operação com recomendação de aprovação condicionada a remédios. Além desse caso, o tribunal conduzirá nova análise da aquisição, pela Sony, da Som Livre, aprovada sem restrições pela SG e avocada por maioria em novembro [23].

O Cade também permanece tendo a desafio de firmar bases claras para distinguir práticas que caracterizem mera troca de informações sensíveis enquanto conduta independente, de práticas que efetivamente caracterizem cartéis, onde há acordos anticompetitivos. Além disso, as diversas investigações decorrentes da operação "lava jato" devem prosseguir no órgão.

Por fim, o Cade sinalizou que permanece atento a condutas unilaterais, especialmente em mercados digitais e mídia. Em 2022, Cade e ANPD terão ainda oportunidade de aprofundar sua relação institucional iniciada com o acordo de cooperação técnica firmado em 2021.

* Note-se que os autores atuam em alguns dos casos mencionados. O texto, contudo, reflete unicamente a visão dos próprios autores sobre os casos.


 

 

[4] Acordo de Cooperação Técnica nº 05/2021.

[6] Ato de Concentração nº 08700.003553/2020-91.

[7] Ato de Concentração nº 08700.001846/2020-33.

[8] Ato de Concentração nº 08700.000059/2021-55.

[9] Ato de Concentração nº 08700.009924/2013-19.

[10] Ato de Concentração nº 08012.001697/2002-89.

[11] Ato de Concentração nº 08700.000149/2021-46.

[12] Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47.

[13] Consulta nº 08700.002055/2021-10.

[14] Processo Administrativo 08700.006173/2020-16.

[15] Processo Administrativo nº 08700.005778/2016-03.

[16] Processo Administrativo nº 08700.000066/2016-90.

[17] Processo Administrativo nº 08700.008612/2012-15.

[18] Processo Administrativo n° 08700.004455/2016-94.

[19] Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61.

[20] Requerimento nº 08700.004894/2020-83, Requerimento nº 08700.001488/2021-40, Requerimento nº 08700.001976/2021-57 e Requerimento nº 08700.002321/2021-04.

[21] Processo Administrativo nº 08700.004404/2016-62.

[22] Ato de Concentração nº 08700.000726/2021-08.

[23] Ato de Concentração nº 08700.002922/2021-17.

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