Opinião

A PEC do Calote, os desajustes da reforma da Previdência e o caos previdenciário

Autor

  • Sérgio Henrique Salvador

    é advogado mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) pós-graduado pela Escola Paulista de Direito (EPD) e PUC-SP professor universitário conselheiro da OAB-MG (23ª Subseção) membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica e integrante do comitê técnico da Revista SÍNTESE de Direito Previdenciário.

2 de janeiro de 2022, 16h13

Em um emaranhado de novidades previdenciárias, vive o sistema nacional um complexo tormentoso de mudanças, conferindo distanciamento das bases protetivas em larga escala e na contramão dos ideários constitucionais.

Sem dúvidas, é o sistema previdenciário brasileiro o mais complexo do mundo, com exclusivas regras, criações únicas, intensa produção normativa, relativização da constitucional garantia do direito adquirido, além de outros elementos que colocam a previdência brasileira em posição de constantes estudos.

Historicamente sempre assim o foi, vale dizer, desde a retomada dos ares democráticos todos os governos fizeram pontuais reformas, contudo sem um acurado e qualificado debate coletivo, produzindo sistemas inversos de proteção e de distanciamento da classe trabalhadora.

Tal fato é colhido de simples análise histórica linear que demonstra quão distante está o gestor previdenciário do idealizado modelo de proteção previdenciária, aliás, projetado no ambiente constitucional de 1988.

Como exemplo, vive o país o ambiente pós-reformador a partir da polêmica reforma da Previdência ante a promulgação da Emenda Constitucional nº 103, de 13 de novembro de 2019.

Em contundentes e midiáticos discursos, foi prometido um novo sistema, inclusivo, justo, acessível, igualitário e que traria ajustes fiscais do sistema, publicamente defendido como que as contas estivessem no vermelho.

Estranhamente, tal qual defendido com a não menos polêmica reforma trabalhista, tais promessas não se cumpriram, pelo menos até o momento.

Tal fato é de simples constatação, já que a economia nacional continua em bases frágeis, alta dos preços, alto índice de desemprego, além de outros fatores que não comprovam os discursos propulsores da perigosa política reformadora dos direitos sociais.

A reforma previdenciária, em linhas gerais, colocou a classe trabalhadora em posição de distanciamento, já que extinguiu alguns benefícios, endureceu regras de acesso e diminuiu e muito o valor das prestações, desprezando a dura realidade brasileira de desigualdades sociais extremadas, como se o país fosse hígido, uniforme e homogêneo sob a perspectiva social.

Na verdade, e infelizmente, trouxe desconfiança da classe trabalhadora contributiva, como também desprotegeu e distanciou as pessoas de suas bases, fazendo com que a informalidade previdenciária aumentasse, além de fazer crescer os planos de previdência privada, cujo acesso é relativizado e distante da grande e pobre classe trabalhadora.

A prova desses desajustes está nas várias ações de inconstitucionalidades aforadas e no aguardado debate pela Suprema Corte [1].

Também, a divergência de interpretações das novas regras e suas conturbadas perspectivas de aplicação, considerando que, de vez em vez, portarias e circulares internas são emitidas no afã de tentar regulamentar a novel normatividade, sem a esperada e acurada análise técnica, provocando gigantes distorções do sistema, com possibilidade de correção pela já avolumada judicialização previdenciária.

O que se tem visto é um autêntico caos previdenciário, sem qualquer perspectiva de melhorias ou de uma programação de futuro.

Por fim, a recente aprovação e promulgação da Emenda Constitucional 114, publicada em 17 de dezembro, e que traz tratamento diferenciado ao pagamento da dívidas oriundas de precatórios e requisições de pagamentos do Poder Judiciário.

Sabe-se que a tutela jurisdicional brasileira é uma das mais lentas e mais caras do mundo, por diversas razões, e longe de um prognóstico esperançoso de melhorias do sistema.

Por exemplo, além da cultura demandista impregnada no âmago da sociedade, de igual modo a fragilidade e ineficiência de certos órgãos públicos no desempenho de suas atividades-fim, a legislação processual brasileira também propicia esse cenário, com o prazo em dobro dos entes públicos, intimações pessoais, reexame necessário e outros verdadeiros privilégios processuais.

Sabe-se que o sistema de pagamento das dívidas judiciais de órgão públicos ocorre através do regime diferenciado de pagamento, vale dizer, via precatório ou via requisições, a depender do montante da condenação.

Aqui, também um conhecido ambiente de atraso da prestação jurisdicional, pois o efetivo gozo da resposta da jurisdição contra órgãos públicos se verifica com o pagamento auferido, o que se dá através desse sistema que essencialmente faz o pagamento após a política orçamentária prevista para tal.

A recente Emenda Constitucional, nominada de PEC do Calote, afronta diretamente diversos primados do Estado brasileiro, como se o poder parlamentar reformador fosse absoluto e desprovido de outras observâncias sistêmicas às quais está vinculado.

Visou a novel emenda a esticar ainda mais o pagamento das dívidas judiciais estatais, aumentando os prazos e colocando teto para pagamentos prioritários, inserindo o vitorioso da demanda judicial em posição de longa espera e conforme a conveniência da política fiscal.

Essencialmente um visível retrocesso, na contramão dos dizeres constitucionais e que serviu unicamente para comprovar que o desejo de equilíbrio fiscal com a reforma da Previdência não vingou.

O cenário aqui brevemente debatido, em linhas gerais, distancia o jurisdicionado da completa resposta do Poder Judiciário, já que, a partir desse novo regime diferenciado de pagamento, houve por bem o Estado derrotado manobrar os pagamentos, criando fases de uma execução judicial como bem entender e à revelia do vitorioso, sabidamente hipossuficiente da relação previdenciária e na perseguição de verbas de natureza alimentar.

De novo, o agravamento do já evidenciado caos previdenciário, não programado no horizonte de 1988 e em divórcio pleno com a atividade-fim protetiva do modelo previdenciário programado desde então.

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