Processo Tributário

Ainda sobre o peculiar sincretismo na cobrança do crédito tributário

Autor

  • Luis Claudio Ferreira Cantanhêde

    é procurador do estado de São Paulo doutor e mestre em Direito pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Direito do Estado pela Espge-SP professor no curso de pós-graduação de Direito Tributário e de Extensão do Processo Tributário Analítico no Ibet professor de Direito Tributário na Espge-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

2 de janeiro de 2022, 8h00

Em artigo publicado nesta coluna [1], tratamos do peculiar sincretismo caracterizado pela prestação da tutela jurisdicional executiva no âmbito de uma ação antiexacional improcedente, sem, portanto, cogitar-se da necessidade de título executivo e de ajuizamento de execução fiscal.

Essa hipótese presenta-se em um contexto especial, exigindo que, no processo antiexacional preventivo ou repressivo, seja depositado o montante integral da obrigação tributária [2] e o pedido seja julgado improcedente, quando então os valores são convertidos em renda do ente tributante e a obrigação tributária extinta.

Eis o caráter especial do sincretismo aqui tratado: em uma única relação processual são exercidas as atividades de cognição e de realização do crédito tributário, solucionando-se, no mesmo processo, os conflitos acerca da legitimidade do tributo e de sua inadimplência.

São notórias as vantagens decorrentes desse sincretismo: a efetividade na cobrança é evidente, pois o Fisco, no caso de improcedência, é agraciado, nos mesmos autos, com a tutela jurisdicional executiva, uma vez que o valor depositado, que já se encontrava fora da esfera de disponibilidade do contribuinte, é expropriado com a sua conversão em renda; o  contribuinte, de outra senda, além de gozar, desde logo e independentemente de qualquer decisão judicial concessiva de tutela provisória, do efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário, também se vê a salvo dos efeitos da mora, deixando de responder, desde o momento do depósito, pelos juros e pela correção monetária.

Diante de tantos ganhos de efetividade, servindo uma mesma e única relação processual como firme instrumento de solução de conflitos de interesse, seja o decorrente da alegação da ilegitimidade do tributo, plasmado na petição inicial, seja aquele atinente à inadimplência de obrigação tributária exigível, trazido ao processo através do depósito, inevitável questionar se não é viável que essa mesma hipótese de sincretismo aplique-se a outras situações em que se dá a garantia do crédito no bojo de um processo antiexacional.

Parece-nos que a resposta deve, necessariamente, passar pela verificação de situações em que os benefícios experimentados pelo contribuinte assemelhem-se àqueles decorrentes do depósito integral e que a garantia apresentada fique atrelada ao desfecho do processo, saindo da disponibilidade do sujeito passivo do crédito tributário, autor da demanda antiexacional, apresentando-se, ainda, de rápida e fácil liquidação, com o que restariam acautelados os interesses do fisco, outro polo da relação jurídico-tributária.

No contexto atual, mormente após a vigência do Código de Processo Civil de 2015, as garantias que assomam aptas à satisfação desses requisitos são a fiança bancária e o seguro garantia. Isso já se apresenta no enunciado do artigo 835, §2º do Código de Processo Civil [3], que é expresso ao assertar que a fiança bancária e o seguro garantia judicial equiparam-se a dinheiro.

Posto que a equiparação seja para fins de substituição da penhora, considerando a grande liquidez destas modalidades de garantia do crédito tributário, não soaria despropositado pensá-la para outras finalidades, como a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

É cediço que a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça é contrária a este entendimento [4], o que, pelo menos até o presente momento, é bastante festejado pelas Fazendas Públicas, uma vez que, figurando  a fiança e o seguro  como contracautelas, à míngua de decisão concedendo tutela cautelar, veem-se autorizados a adotar todas as medidas voltadas à cobrança do crédito, sejam judiciais, sejam extrajudiciais.

Todavia, esse cenário pode mudar caso se perceba que a equiparação traria a possibilidade de execução da garantia nos autos do processo antiexacional improcedente, sem a necessidade de inscrição em dívida ativa, ajuizamento de execução fiscal, traslado da garantia para estes autos e abertura de prazo para oposição de embargos.

Sem dúvida haveria um relevante ganho de efetividade na cobrança do crédito tributário, a troco do contribuinte ter a seu favor a suspensão da exigibilidade do crédito tributário sem a necessidade da concessão de tutela provisória, tão só por contratar fiança bancária ou seguro garantia judicial e apresentá-los nos autos.

Haja vista que o contribuinte gozaria imediatamente dos benefícios da suspensão de exigibilidade, como são menos custosas que o dinheiro depositado, é natural que sejam utilizadas em maior escala, amplificando os efeitos benéficos de redução de litigiosidade para além dos lindes da relação jurídico-tributária conflituosa.

O sincretismo na cobrança do crédito tributário, que é peculiar por viabilizar a solução do conflito de inadimplência no âmbito de um processo antiexacional em que ele sequer está posto na petição inicial, amplificado para abranger outras espécies de garantia como o seguro e a fiança, tem potencial para funcionar como importante fator na diminuição do número de execuções fiscais, contribuindo, consequentemente, para a política de redução de litigiosidade e melhoria da qualidade da prestação jurisdicional.

Diante desse quadro, reforça-se o argumento em prol da alteração do entendimento jurisprudencial que hoje não admite equiparação entre fiança, seguro e dinheiro para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

Não há dúvidas de que o contexto é de suma importância para a interpretação jurídica, de modo que a efetividade alcançada com a ampliação do sincretismo na cobrança do crédito tributário ostenta fortíssimo poder persuasivo.

Nesse caso, não é só o Fisco (Executivo) que experimenta vantagem, mas também e principalmente o Poder Judiciário, que se deparará com uma única relação processual a solucionar os conflitos de interesse surgidos no plano do direito material. Aos contribuintes, sobraria a tranquilidade de litigar sem sofrer medidas de cobrança. Todos saem ganhando. Mais resultado com menos dispêndio é a fórmula da eficiência, que, no processo, se traduz com efetividade.

 

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-05/processo-tributario-peculiar-sincretismo-processual-cobranca-credito-tributario.

[2] Cabe ressaltar que nestes casos os valores em questão deixam de estar à disposição do autor da ação (sujeito passivo da obrigação tributária) e passam a ter destinação atrelada ao desfecho da demanda. É o que está refletido, por exemplo, no julgamento do AgInt no TP 178/SP, relatora ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 21/06/2017, que reflete a posição predominante no Superior Tribunal Justiça.

[3] Artigo 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;

(…)

§2º Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.

[4] TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. CAUÇÃO E EXPEDIÇÃO DA CPD-EN. POSSIBILIDADE. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. ART. 151 DO CTN. INEXISTÊNCIA DE EQUIPARAÇÃO DA FIANÇA BANCÁRIA AO DEPÓSITO DO MONTANTE INTEGRAL DO TRIBUTO DEVIDO PARA FINS DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE. SÚMULA 112/STJ. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535, II, DO CPC, NÃO CONFIGURADA. MULTA. ARTIGO 538 DO CPC. EXCLUSÃO.1. A fiança bancária não é equiparável ao depósito integral do débito exequendo para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, ante a taxatividade do artigo 151 do CTN e o teor do Enunciado Sumular nº 112 desta Corte… (Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. (REsp 1156668/DF, relator ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/11/2010, DJe 10/12/2010)

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pela PUC/SP e em Direito do Estado pela ESPGE-SP, professor de Direito Tributário e Processo Tributário no Ibet-SP e na ESPGE-SP, procurador do Estado de São Paulo e pesquisador do Grupo de Estudos em Processo Tributário Analítico do IBET-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!