Opinião

Boate Kiss, tipo de injusto culposo e a figura do dolo eventual

Autor

  • Emetério Silva de Oliveira Neto

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

1 de janeiro de 2022, 12h12

1) Introdução: a tragédia da Boate Kiss e as respostas do Direito Penal
O incêndio na Boate Kiss, localizada na cidade de Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul, foi, por sem dúvida, uma das maiores tragédias da história nacional. Mais exatamente, matou 242 pessoas, além de ferir outras 636. Consoante dados iniciais, posteriormente corroborados nos autos do processo criminal instaurado para apuração das correspondentes responsabilidades, ações e omissões humanas  e bem assim do próprio poder público  provocaram esse lamentável episódio, que aconteceu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013.

Com efeito, sabe-se que o uso de um artefato pirotécnico (conhecido como sputnik) dentro da casa de shows por parte de um dos integrantes da banda que ali se apresentava (Gurizada Fandangueira) atingiu a espuma do isolamento acústico no teto da boate, o que iniciou o incêndio, rapidamente propagado no ambiente, no qual havia uma quantidade de pessoas acima da capacidade permitida, tendo as vítimas inalado gases altamente tóxicos. A isso se somou, entre outros fatores, a ausência de saídas de emergência no local e a atitude dos seguranças da boate, que dificultaram a fuga das vítimas nos primeiros instantes do fogo, cumprindo ordem prévia dos donos do estabelecimento, em razão do não pagamento das despesas de consumação.

Diante desses fatos, dois integrantes da banda e mais dois proprietários da boate foram denunciados em 2/4/2013 por homicídio qualificado, nas modalidades consumada e tentada, com dolo eventual, em concurso de agentes e em concurso formal de delitos, a teor dos artigos 121, §2º, incisos I e III, c/c artigos 14, inciso II, 29, caput, e 70, 1ª parte, todos do Código Penal [1]. Longos anos de trâmite processual se passaram, e no último dia 10, após veredito do Tribunal do Júri de Porto Alegre [2], os acusados foram condenados a penas que variaram de 18 a 22 anos e seis meses de prisão.

Pela sua gravidade, tal acontecimento repercutiu nos cenários nacional e internacional, sendo inegável que as inúmeras peculiaridades de que se reveste chamaram a atenção da comunidade jurídica, merecendo, no mesmo diapasão, respostas precisas do ordenamento jurídico-penal, sempre mirando a pretensão de justiça que deve animar a aplicação de um ramo do direito tão invasivo à esfera de liberdade do cidadão.

2) O tipo de injusto culposo e a sua adequação ao caso
Em respeito ao princípio da culpabilidade, o artigo 18 do Código Penal brasileiro aduz que ocorre o crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (inciso I), ao passo que o crime culposo se perfaz quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (inciso II), ressaltando, ainda, que, salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente (§ único). E o artigo 19 estabelece que "pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente" [3].

Isso significa que em Direito Penal é vedada a responsabilidade objetiva ou sem culpa (nullum crimen nulla poena sine culpa). Nessa direção, um Direito Penal que se pretenda liberal  e, pois, conformado aos postulados do Estado democrático de Direito  não admite a figura da versari in re ilicita, originária do Direito Canônico, segundo a qual todo aquele que se envolve com alguma situação ilícita também responde pelos resultados fortuitos dela decorrentes.

Esmiuçando o chamado tipo de injusto culposo, podemos asseverar que o elemento normativo da conduta culposa é a violação do dever objetivo de cuidado, vale dizer, o resultado lesivo ou danoso que a norma penal busca evitar deve decorrer da inobservância do cuidado devido. Com isso, exige-se do cidadão (homem médio) uma postura de respeito e atenção às convenções sociais, sendo o princípio da confiança o elemento que medeia as relações interpessoais, tornando viável a coexistência em sociedade.

O delito culposo ou imprudente, desse modo, se afigura como a transgressão da norma de cuidado, fruto de uma conduta desatenciosa, sem cautela ou perigosa, realizadora de um perigo que supera o risco permitido, evitando-se, por esse prisma, a proibição pela lei penal de meras causações. Desse modo, o resultado, embora previsível, não é previsto pelo autor do fato, que destarte não o quer ou deseja.

Impudência ou agir sem cautela (atitude positiva); negligência ou inércia do agente (atitude de inatividade); e imperícia ou falta de conhecimentos técnicos precisos para o exercício de profissão ou arte são de lege lata elementos da culpa inconsciente, todos os quais designando sempre a materialização em resultado lesivo de uma ação ou omissão não intencional. Não há, aqui, uma conduta finalisticamente orientada para a realização do resultado danoso, de vez que nos delitos culposos não é o conteúdo da finalidade que é contrário ao Direito, mas, sim, o caráter descuidado da ação final.

Ao lado da culpa inconsciente (ou culpa stricto sensu), que, como pontuado, se verifica quando o autor não prevê o resultado que lhe é possível prever, ou seja, quando a infração ao dever objetivo de cuidado lhe é desconhecida, embora conhecível, figura a chamada culpa consciente (ou com previsão), em que o autor prevê o resultado como possível, mas espera que não ocorra. Portanto, nessa espécie de culpa há efetiva previsão do resultado, sem aceitação do risco de sua produção, pois o agente confia que o evento não sobrevirá. Nesse aspecto, embora se verifique uma consciente violação do cuidado objetivo, não há como confundir a culpa consciente com o dolo eventual (dolus eventualis), e esse raciocínio nos parece ser perfeitamente aplicável ao "caso da boate Kiss".

3) É possível caracterizar o chamado dolo eventual?
Com efeito, o Código Penal brasileiro agasalhou a teoria da vontade, para o dolo direto; e a teoria do consentimento, em se tratando de dolo eventual. Ademais, equiparou as duas espécies de dolo, devendo a distinção ser operada basicamente na fase de aplicação ou dosimetria da pena. Para a compreensão finalista  que por muitos anos ocupou as discussões prioritárias em torno da dogmática da teoria do delito  o dolo configura o elemento subjetivo geral do injusto, que implica na consciência e vontade de realizar os elementos objetivos do tipo.

Nesse sentido, compõe-se de um momento intelectual, qual seja o conhecimento do que se quer; e de um momento eminentemente volitivo, que é a decisão dirigida em prol da realização da conduta desejada. Em síntese, tal pensamento  que é dominante  exige cognição e vontade para a perfectibilização do dolo. Para além das tormentosas questões que envolvem a identificação do dolo (veja-se, a propósito, o embate trazido pelas teorias cognitivas, que defendem o "dolo despsicologizado" ou sem vontade), há de se diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, sendo inúmeras as consequências práticas daí advenientes.

Entre ambos, o traço comum é a previsão do resultado. Contudo, ao passo que no dolo eventual o agente presta anuência, consente ou concorda com a infringência da norma penal, preferindo arriscar-se a produzir o dano a renunciar à ação (indiferença do autor quanto ao resultado antijurídico, conforme "fórmula de Frank"), na culpa consciente o agente afasta ou repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento, de sorte que empreende a ação na esperança de que a lesão não venha a ocorrer e que tudo terminará bem, isto é, prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente. Nas palavras de Claus Roxin, o dolo eventual se apresenta como decisão pela possível lesão do bem jurídico, ao contrário da culpa consciente, em que o sujeito confia na não produção do resultado, a despeito de criar um risco não permitido [4].

A imprudência consciente, desse modo, se afigura como uma forma de culpabilidade menos grave do que o dolo eventual, refletindo substancialmente na punibilidade do autor e também na competência para o julgamento do feito, que deixa de ser do Tribunal do Júri e passa a ser do juiz singular, consoante artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea "d", da Constituição Federal de 1988.

Todo o exposto demonstra que há três filtros normativos para a caracterização dos delitos culposos, os quais, ao nosso sentir, foram devidamente preenchidos no "caso da boate Kiss": 1) o resultado produzido deve ser objetivamente previsível; 2) a comprovação de que o resultado produzido é consequência do menoscabo a um dever objetivo de cuidado por parte do sujeito ativo, redundando da realização objetiva previsível da infração do dever de cuidado; e 3) a relação de causalidade deve ser penalmente relevante ou típica, pois é necessário comprovar que o resultado pertence à categoria de danos a bens jurídicos que a norma de cuidado pretende obstar.

4) Conclusão
A tragédia ocorrida na Boate Kiss deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Entrementes, isso não autoriza a adoção do populismo penal como esteio para a reafirmação da vigência da norma. Não há como identificar dolo, ainda que eventual, já que inexistiu conduta finalisticamente orientada à produção dos lamentáveis resultados (mortes e lesões corporais diversas). Mesmo sob o prisma da teoria da imputação objetiva, tem-se que a violação do dever objetivo de cuidado, claramente observada nessa situação, autorizaria uma responsabilidade penal no máximo a título de culpa consciente.

 


[1] Veja-se íntegra da denúncia-criminal apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em: https://www.mprs.mp.br/media/areas/criminal/arquivos/denunciakiss.pdf . Acesso em: 12 dez. 2021.

[2] Conforme informações colhidas no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), houve decisões determinando o desaforamento do julgamento dos réus para uma Vara do Júri da Comarca de Porto Alegre. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/caso-kiss/linha-do-tempo/. Acesso em: 12 dez. 2021.

[3] Por fim, o artigo 29 do mesmo Códex, ao versar sobre o concurso de pessoas, diz que: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade".

[4] ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. T.I: Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Traducción y notas: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 1049.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio fundador do escritório Oliveira & Vasques Advogados, doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pós-doutor pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (URCA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!