Opinião

O semipresidencialismo e a caneta de Yeltsin

Autor

1 de janeiro de 2022, 7h11

Em 2021, ganhou fôlego renovado a discussão sobre a conveniência de uma reforma constitucional para adotar no Brasil o sistema semipresidencialista de governo.

As discussões em torno do tema são múltiplas, envolvendo inclusive a caracterização do sistema proposto no anteprojeto da comissão provisória de estudos constitucionais e nos projetos elaborados por comissões na constituinte como parlamentarista ou semipresidencialista [1], e a possibilidade de o poder reformador se afastar da decisão tomada em 1993 no plebiscito previsto no artigo 2º do ADCT sem nova consulta popular, tema do Mandado de Segurança nº 22.972, impetrado em 1997 por cinco deputados federais contra ato da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara dos Deputados que admitiu a deliberação sobre proposta de emenda constitucional que pretendia modificar o sistema de governo e que, em 2018, foi extinto sem resolução de mérito pelo Supremo Tribunal Federal em razão da desistência dos impetrantes.

Neste artigo, contudo, o diálogo que se pretende estabelecer é mais restrito e mira os debates realizados no Painel V do IX Fórum Jurídico de Lisboa, em 16 de novembro de 2021 [2], em especial a exposição feita pelo professor José Levi Mello do Amaral Júnior, que abordou a conveniência da adoção desse sistema de governo no Brasil [3].

Em instigante abordagem histórica, Amaral Júnior desenterra a pouco conhecida experiência das sucessivas e ilimitadas reeleições de Borges de Medeiros no estado do Rio Grande do Sul no início da República e, na sequência, relata as propostas posteriores do próprio Borges para atenuar o poder presidencial no Brasil, que podem ser lidas como de instituição de um semipresidencialismo avant la lettre. Ao final da exposição, Amaral Júnior questiona: "Por que não tentar isso no Brasil, sobretudo no Brasil de hoje, onde o centro da política já é o parlamento?".

Embora sutilmente, a pergunta feita dialoga com a exposição posterior do mesmo painel, feita pela professora italiana Silvia Bagni [4], sobre o sistema de governo peruano, que tem, para dizer o mínimo, grande afinidade com o semipresidencialismo, mas convive com forte e constante instabilidade política.

Considerando que um dos objetivos da proposta de adoção desse sistema no Brasil é justamente evitar, ou ao menos reduzir, os efeitos deletérios da instabilidade política, dotando o regime constitucional de melhores mecanismos para lidar com ela [5], a exposição de Bagni demonstra que é recomendável que os estudos a respeito do tema se estendam além das duas experiências já melhor conhecidas no Brasil  e também abordadas no mesmo painel , que são a francesa e a portuguesa, de modo a tentar antecipar riscos que a modificação proposta pode implicar e assim responder ao questionamento de Amaral Júnior: "Por que não tentar isso no Brasil?".

Além do Peru, vizinho sul-americano, esse esforço de aprofundamento também pode se voltar para um país que, apesar de distante, compartilha com o Brasil as dimensões continentais, a forma federativa de Estado, a democratização recente e longa tradição de concentração do poder político em uma única pessoa: a Rússia.

A Constituição russa de 1993 prevê um presidente eleito diretamente por voto direto e secreto para um mandato de seis anos (artigo 81, item 1) [6]. Ele é o chefe de Estado (artigo 80, item 1), comandante das forças armadas (artigo 87, item 1) e tem a atribuição de nomear o chefe de governo (artigos 83, "a", e 111) a ser aprovado pela Duma, câmara do parlamento que pode ser comparada à câmara dos deputados. O presidente pode dissolver a Duma nas hipóteses previstas na Constituição (artigos 84, "b", 109, 111 e 117), incluindo três rejeições de nomeações presidenciais para a função de chefe de governo (artigo 111, item 4). Há também previsão do voto de desconfiança (artigo 117, item 3 e 4) e da exoneração por decisão presidencial (artigo 117, 1 e 2), de modo que o chefe de governo deve reter a confiança tanto da Duma quanto do presidente.

Tal como a brasileira, a Constituição russa só permite reeleição para um mandato consecutivo de presidente (artigo 81, item 3), mas não limita o número de eleições intermitentes da mesma pessoa para o cargo [7] e nem a possibilidade de um presidente recém-eleito indicar como chefe de governo justamente o seu antecessor no exercício da presidência.

Uma interessante metáfora surgiu na Rússia para explicar a realidade política surgida a partir desse contexto.

Ao final de seu mandato presidencial, Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo, deixou ao seu sucessor eleito, Vladimir Putin, a caneta que costumava usar para assinar leis, em um símbolo da transmissão de poder.

Putin, por sua vez, quando do encerramento de seu segundo mandato presidencial, em 2008, foi escolhido por seu sucessor, Dimitri Medvedev, para exercer a função de chefe de governo, em que permaneceu até ser novamente eleito presidente em 2012 e reeleito em 2018 [8], com mandato até 2024.

Na transição presidencial de 2008, em entrevista a um jornal, Putin disse que manteria consigo a caneta de Yeltsin, ao invés de transferi-la a Medvedev, o que pode ser entendido como um símbolo do protagonismo que manteria na nova função de chefe de governo, logo após ter deixado a chefia do Estado [9].

Não é o caso de debater neste artigo rumores ou hipóteses sobre a relação política entre Putin e Medvedev, mas alertar para a circunstância de que, a depender do contexto político para o qual for transplantado, o semipresidencialismo pode ter como efeito colateral justamente o que alguns pretendem evitar: o fortalecimento do caráter unipessoal do poder de um líder carismático que se beneficia da tradicional inexistência de limitação temporal à continuidade na função de chefe de governo no parlamentarismo.

Situações similares não são desconhecidas no Brasil. Pode-se mencionar, para ficar no âmbito local, os prefeitos que se tornam secretários de Obras de seus sucessores até voltarem a se candidatar à chefia do Executivo local na eleição seguinte, especialmente em pequenos municípios. Ainda assim, a inexistência de um cargo que transmita ao eleitorado, de maneira intuitiva e facilmente compreensível, forte impressão de que o antigo chefe permanecerá no exercício de função de alto comando dificulta significativamente que isso ocorra. Além disso, não há obstáculos institucionais de monta para que um pacto político como esse seja rompido pelo sucessor logo após as eleições. O semipresidencialismo pode inadvertidamente romper essa barreira pela criação do cargo de primeiro-ministro, em especial se o presidente não for dotado do poder de exonerá-lo sem a anuência do parlamento. O risco, em suma, é de buscar a reflexão doutrinária de Borges de Medeiros e acabar encontrando a prática política do mesmo Borges.

Não se trata, contudo, de risco incontornável. A minuta de proposta de emenda à Constituição elaborada pelo deputado Samuel Moreira [10] reduz esse risco ao estender, na redação projetada para o parágrafo único do artigo 82 da Constituição, a vedação de mais de uma reeleição para mandatos intermitentes, e não apenas consecutivos. Ainda assim, o artigo 86-F da minuta não proíbe que alguém que exerceu dois mandatos de presidente se torne primeiro-ministro.

Se o objetivo é aumentar a estabilidade do sistema de governo, é preciso verificar se não são preferíveis reformas pontuais, como a eleição dos deputados federais e senadores durante o segundo turno das eleições presidenciais, propiciando aos eleitores melhor prognóstico dos efeitos do voto na relação entre presidente e Parlamento, e a limitação do poder de denunciar o presidente à Câmara dos Deputados por crime de responsabilidade a algumas autoridades e pessoas dotadas de um mínimo de representatividade, por meio de reforma do artigo 14 da Lei 1.079/1950.

Caso se consolide a ideia de que o semipresidencialismo é uma solução melhor para alcançar esse objetivo, será necessário olhar não apenas para onde ele é considerado bem sucedido, mas para onde ele não ajudou a alcançar estabilidade ou, ao reverso, gerou estabilidade em excesso.

 


[1] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021. p. 477 e 482-484.

[2] Um panorama dos temas debatidos no evento pode ser encontrado em Atalá Correia. "O Fórum Jurídico de Lisboa: momento de reflexão e planejamento lusófono", 1º de novembro de 2021, texto disponível em https://www.conjur.com.br/2021-nov-01/correia-forum-juridico-lisboa-momento-reflexao-planejamento.

[3] A íntegra do painel está disponível no YouTube em https://youtu.be/A_rWKFTiDpI, sendo que a exposição mencionada se inicia em 21min14s, podendo ser acessada diretamente em https://youtu.be/A_rWKFTiDpI?t=1274.

[4] O link para o início desta exposição é https://youtu.be/A_rWKFTiDpI?t=2507.

[5] Severino Goes. "Na TV Conjur, Gilmar e Lira debatem vantagens do semipresidencialismo", 30 de julho de 2021, texto disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-30/gilmar-lira-debatem-vantagens-semipresidencialismo.

[6] Na versão original da Constituição de 1993, o mandato era de quatro anos, tendo sido estendido para seis por emenda constitucional de 2008.

[7] HENDERSON, Jane. The constitution of the Russian Federation: a contextual analysis. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2011. p. 106 e 134.

[8] As datas constam no sítio eletrônico do Kremlin: http://en.kremlin.ru/structure/president/presidents. Após deixar a presidência em 2012, Medvedev voltou à função de chefe de governo, que exerceu até 2020.

[9] HENDERSON, Jane. The constitution of the Russian Federation: a contextual analysis. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2011. p. 111.

[10] Ao que tudo indica, não se trata ainda de uma proposta de emenda constitucional, provavelmente por não terem sido reunidas as assinaturas de um terço dos deputados, exigidas pelo artigo 60, I, da Constituição para a iniciativa de emenda constitucional. O texto foi consultado em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/semipresidencialismo-reduziria-toma-la-da-ca-diz-deputado-autor-de-pec/.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!