Defesa da Concorrência

O Cade e possíveis novos riscos na formação de consórcios em licitações

Autor

  • Ticiana Lima

    é doutora em Direito Econômico e Economia Política e mestre em Direito do Estado pela USP LL.M. pela Harvard University e sócia do escritório VMCA Advogados.

28 de fevereiro de 2022, 8h00

No mês de fevereiro o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) voltou a ganhar destaque no noticiário do país. Na sessão de julgamento do dia 9, o conselho decidiu, por maioria apertada, aprovar com restrições a compra dos ativos de telefonia móvel do Grupo Oi pelas operadoras Tim, Claro e Telefônica Brasil. Nas várias análises que se seguiram sobre a autorização do Cade para o negócio, pouco se falou, contudo, de um aspecto da operação que levantou suspeitas sobre a existência de conduta anticompetitiva das empresas compradoras: poderiam Tim, Claro e Telefônica Brasil ter apresentado uma oferta conjunta para a compra dos ativos da Oi, ou isso seria um ilícito antitruste? A pergunta, ainda sem resposta, motivou a instauração de um inquérito administrativo para apurar eventual coordenação ilícita das empresas.

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A acusação que embasa tal investigação é bastante genérica. Fala-se na existência de uma potencial conduta coordenada, ora relacionada à formação do consórcio e à suposta prática de gun jumping, ora relacionada à apresentação da oferta conjunta e ora relacionada à própria atuação do consórcio. Algumas vezes, alude-se de passagem à possibilidade de formação de cartel pelas empresas, mas claramente cogita-se da existência de conduta anticompetitiva coordenada envolvendo a formação do consórcio mesmo na ausência de um cartel.

Curiosamente, na mesma sessão de julgamento, questão semelhante veio à tona na decisão de outro caso também envolvendo Claro, Oi e Telefônica. Trata-se do Processo Administrativo n° 08700.011835/2015-02, focado em apurar a existência de conduta anticompetitiva das três empresas em licitações públicas promovidas para o fornecimento de serviços de telecomunicações. Esse caso, que teve origem a partir de uma denúncia feita pela British Telecom (BT), envolve tanto a investigação de condutas unilaterais de Oi, Claro e Telefônica que supostamente teriam sido praticadas individualmente contra a BT (discriminação e recusa de acesso a infraestrutura essencial), como também uma acusação igualmente genérica de prática de conduta coordenada das três empresas na formação de consórcios. Segundo a denúncia, Oi, Claro e Telefônica teriam utilizado o instrumento do consórcio para participar em licitações públicas de modo anticompetitivo. Ainda não há decisão final do conselho sobre o tema, mas a julgar pela sinalização dada pelo voto da conselheira relatora Paula Farani, que votou pela condenação das empresas, estaríamos diante de um ilícito antitruste na formação de consórcios entre concorrentes mesmo que não esteja configurado um cartel. Nas palavras da própria relatora, trata-se "de uma conduta com efeitos semelhantes a um cartel, uma vez que restringe a concorrência horizontal e os rivais agem de forma coordenada, embora com este não se confunda".

Surpreende que tanto no julgamento desse processo administrativo até aqui, como na justificativa do Cade para início da nova investigação envolvendo a compra dos ativos da Oi, não se faz qualquer menção ao caráter disruptivo desse entendimento. Ora, a possibilidade de que a formação de um consórcio seja um ilícito concorrencial desconectado da prática de cartel, caso confirmada, representaria uma mudança radical na jurisprudência do Cade sobre o tema.

A jurisprudência consolidada do Cade sobre a análise de condutas de consórcios em licitações tradicionalmente se insere no contexto de combate a carteis. Assim, em casos em que o Cade já decidiu pela ilicitude da formação de um consórcio, a condenação esteve relacionada à comprovação da existência de um acordo entre concorrentes para burlar o caráter competitivo do certame. Na ausência de provas de cartel, a regra sempre foi a absolvição dos acusados, sem que a existência de formatos de consórcio menos gravosos à concorrência ou mesmo a necessidade do consórcio sequer entrassem em discussão como fatores que pudessem, por si só, determinar a ilicitude da opção pelo consorciamento.

Há um motivo para essa relação direta tradicionalmente estabelecida entre ilicitude de um consórcio e existência de um cartel. É que no caso dos consórcios para participação em licitações, o próprio objeto do acordo entre os concorrentes diz respeito à concorrência no certame. Ao aceitarem fazer parte de um consórcio, as empresas estão explicitamente concordando em não concorrer por um dado mercado/cliente. Trata-se, portanto, necessariamente de um acordo de não competição. Se essa opção pela colaboração em detrimento da concorrência se der de forma ilícita, de maneira a burlar o caráter competitivo do certame, ela se enquadraria na própria definição de cartel em licitação [1]. Aqui ficam uma pergunta que até o momento segue sem resposta: se esse suposto objetivo anticompetitivo do acordo entre concorrentes é exatamente a essência de um cartel, por que no caso específico da formação de consórcios isso deveria ser considerado um ilícito diferente?

A discussão aqui não é meramente retórica. A tipificação de uma conduta como cartel tem impactos na análise que o Cade faz da conduta e, consequentemente, na sinalização dada aos administrados em termos de medidas necessárias para agir de acordo com a lei. O artigo 36 da Lei 12.529/2011 estabelece duas hipóteses de infrações à concorrência: os atos cujo próprio objeto é a restrição da concorrência, e os atos que possam produzir tais efeitos, independente de este ser ou não seu objeto. No caso dos cartéis, estamos diante de um ilícito pelo próprio objeto. Isso significa que cabe ao Cade provar a existência do acordo para que esteja configurado o ilícito. Assim, nos casos de cartéis, provada a existência do acordo, há uma presunção dos seus efeitos lesivos à concorrência. Já em se tratando de um ilícito por efeito, falamos de atos que, uma vez praticados, poderiam tanto justificar-se por eficiências, quanto lesar a concorrência. Nesses casos, o foco da análise do Cade a fim de apurar a existência do ilícito é demonstrar a possibilidade de danos à concorrência.

A sinalização mais recente — ainda que não definitiva — dada pelo Cade é a de que pode passar a analisar a formação dos consórcios como um ilícito por efeito. Isso significa que consórcios formados por empresas com poder de mercado podem ser ilícitos se o Cade entender que o consórcio produziu efeitos negativos na concorrência e não ficar suficientemente comprovada a necessidade do consorciamento. O argumento usado para defender essa posição é o fato de que os consórcios são permitidos pela lei e, no caso das licitações públicas, disciplinados pelo próprio edital da licitação, mas eles podem ter impactos positivos ou negativos na concorrência, e cabe ao Cade atuar para averiguar esses efeitos no caso concreto. Do lado dos efeitos positivos, cita-se que o consórcio pode incrementar a competitividade em determinado certame, ao permitir a participação de empresas que não poderiam participar isoladamente. De outro lado, pensando nos efeitos negativos, menciona-se a possibilidade de empresas formarem consórcio com o intuito de, ao se aliarem a potenciais competidores, eliminarem a concorrência e dividirem o mercado entre si (o que novamente soa muito como um cartel).

Por esse prisma, o que justifica a permissão legal para os consórcios é a possibilidade de efeitos positivos. Na ausência desses efeitos positivos, a formação do consórcio poderia ser um ilícito antitruste. Assim, ainda que possa existir uma presunção de licitude e legitimidade da formação de consórcios em licitações públicas ou privadas que os permitem, seria preciso fazer a análise dos efeitos da formação do consórcio no caso concreto para determinar sua licitude do ponto de vista do Cade. Ou seja: no limite, a partir de agora, caberia falar na existência de um ilícito antitruste sempre que os efeitos positivos esperados pela autorização da formação de consórcios com a participação de empresas com poder de mercado não se materializem e o Cade, ao debruçar-se sobre o caso concreto, entender que a existência de um dado consórcio tenha sido injustificada.

O assunto é complexo e as repercussões práticas são inúmeras e significativas.

Primeiro, em se tratando da complexidade do tema, para além da questão que materialmente se coloca sobre qual seria a diferença entre um "consórcio que visa a burlar o caráter competitivo de uma licitação" e um cartel, esse novo entendimento sobre a ilicitude dos consórcios, caso prevaleça, também levanta questões jurídicas importantes. Apenas para citar alguns exemplos, a matéria levanta questões envolvendo devido processo legal, standard probatório e inversão do ônus da prova, além de discussões importantes relativas aos limites da competência do órgão antitruste.

Sobre esse último tema, de um lado, é possível visualizar conflitos de competência entre o Cade, entes licitantes e até mesmo instâncias de controle da Administração Pública. Afinal, um edital de licitação dispõe necessariamente sobre uma concorrência pública e cabe ao ente licitante disciplinar, nas regras editalícias e na condução do certame, como deve se dar tal concorrência. Aqui, ao contrário do que acontece em outros âmbitos de atuação antitruste, não há dúvidas de que o órgão público que organizou o certame se debruçou sobre a questão da concorrência da licitação, estabelecendo inclusive as regras para a formação do consórcio com vistas a atingir o resultado almejado pelo interesse público. Ao avaliar os impactos que os consórcios, autorizados pelo ente licitante, tiveram na concorrência nas licitações, não estaria o Cade efetivamente se substituindo à decisão originalmente tomada pelo ente licitante de permitir tais consórcios? Ou pior, atuando como instância revisora dos resultados das licitações a semelhança do que fazem os órgãos de controle?

De outro lado, é importante lembrar que a Lei 12.529/2011 expressa e propositadamente retirou do Cade a competência para atuar na escolha do modelo de consorciamento em licitações, ao prever no seu artigo 90 parágrafo único que a celebração de consórcios não será objeto de análise prévia do Cade quando se destinarem à participação em licitações promovidas pela Administração Pública direta e indireta. Esse dispositivo alterou expressamente entendimento da lei anterior que determinava a necessidade de submissão de operações de constituição de consórcios à revisão e aprovação do Cade. Ao fazer essa alteração, o legislativo manifestou expressamente a preocupação de resguardar o processo licitatório de ingerências externas e entendeu que a forma mais eficiente de intervenção do Cade para checagem de eventuais problemas concorrenciais em licitações públicas é preventivamente, quando da elaboração do próprio edital. Assim, ao analisar a posteriori os impactos que um consórcio teve na concorrência em um dado certame, para decidir apenas com base nisso sobre sua licitude, o Cade estaria buscando atuar justamente da forma que lhe foi vedada pelo legislador. Afinal, a análise dos efeitos da formação de um consórcio é a própria análise do consórcio enquanto um ato de concentração.

Os impactos concretos dessas discussões jurídicas na condução dos negócios pelos administrados também são evidentes. Existe um grave problema de segurança jurídica tanto com relação a concorrências passadas como futuras. Quaisquer empresas com poder de mercado que tenham se consorciado ou se consorciem para participar de licitações podem passar a ser questionadas como potenciais infratoras da lei de defesa da concorrência.

Quando a ilicitude dos consórcios está relacionada à existência do cartel, como tradicionalmente vinha sendo feito até aqui, a configuração do ilícito depende da prova da existência do acordo. Assim, empresas que não estejam fazendo parte de um pacto anticompetitivo podiam operar com a segurança de que estão agindo dentro dos limites da lei. Contudo, mantido o novo entendimento sobre o tema, na prática, a formação de consórcios entre empresas concorrentes que detenham poder de mercado passa a ser ilegal caso a SG entenda insatisfatoriamente justificada a opção pelo consórcio (ainda que ele seja legal e administrativamente autorizado).

Mantido esse novo entendimento, empresas com poder de mercado precisarão ter cuidados redobrados ao optarem pelo consorciamento para a participação em licitações. Infelizmente, o caminho para segurança jurídica nesse novo cenário não deve ser fácil. Além de demonstrar a necessidade do consórcio (isto é, que a empresa não poderia competir sozinha), ao que parece as empresas também terão que demonstrar que a configuração do consórcio escolhido não é a mais gravosa para a concorrência (isto é, se não seria possível atingir os mesmos benefícios do consórcio por outros meios menos restritivos). A tarefa não será nada fácil.

 


[1] Veja-se, nesse sentido, a definição adotada pelo próprio Cade no Guia de Combate a cartéis em licitações: cartel em licitação consiste no conluio entre agentes econômicos com o objetivo de eliminar ou restringir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública (https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf).

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