Direitos Fundamentais

Discurso do ódio, mídias sociais e deveres de informação

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27 de fevereiro de 2022, 15h23

A temática da liberdade de expressão e de informação e seus limites têm sido pauta recorrente desta coluna, incluindo as questões ligadas ao assim chamado discurso do ódio, seja ele veiculado off-line, seja ele instilado pela via digital, destaque para as plataformas de mídias sociais on-line.

Desta feita, contudo, muito embora se trate de um caso em que o discurso do ódio assume uma posição central, o objetivo principal é o de apresentar, em caráter sumário, decisão recente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (doravante TCF), no bojo da qual se decidiu pela procedência de reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) mediante a qual a reclamante pretendia, revertendo decisão das instâncias ordinárias, obter judicialmente do Facebook informações relativas às pessoas que haviam postado uma série de mensagens e material ofensivo, de modo a permitir a sua responsabilização pelas vias próprias.

A decisão, proferida pela 2ª Câmara do 1º Senado, em 19 de dezembro de 2021 (BVerfG, Beschluss der 2. Kammer des Ersten Senats vom 19. Dezember 2021 – 1 BvR 1073/20, Rn. 1-53, disponível aqui), não apenas se revela de grande atualidade e interesse por tratar, como tantas outras, da liberdade de expressão e de informação, mas também por dizer respeito a aspectos relacionados à pioneira, mas polêmica, legislação alemã sobre a regulação de conteúdo das mídias sociais (Netzwerkdurchsetzungsgesetz – doravante NwDg). Particularmente emblemática, é a relevância do julgado para a definição, no âmbito de uma vinculação dos atores privados aos direitos fundamentais, da responsabilidade das plataformas de mídias sociais no sentido de prestarem informações sobre a identidade e contatos de seus usuários, para efeitos, no caso, de viabilizar a sua responsabilização por determinados conteúdos postados.

Antes, contudo, de tecermos alguns comentários sobre a decisão, indispensável, ainda que em caráter sumário, fazer, em traços gerais, a sua apresentação.

A requerente, autora da reclamação constitucional, uma parlamentar do Partido Verde alemão (Die Grünen), foi alvo de diversos comentários ofensivos de usuários do Facebook, em 2015, após a publicação na rede social Facebook que descontextualizou uma fala sua, falsamente afirmando que ela defendia a possibilidade de relação sexual com crianças, desde que não houvesse violência. Em um debate, também em 2015, um membro do Partido Verde foi questionado sobre a punição por crimes sexuais, incluindo pedofilia, e, de acordo com a ata da seção, a parlamentar interrompeu e gritou “vírgula, se não há violência envolvida!”. A foto da reclamante foi inserida na publicação na rede social, que recebeu diversos comentários, vários de cunho manifestamente ofensivo, endereçados contra a manifestação descontextualizada da parlamentar.

Na sequência, a parlamentar ingressou com uma ação contra a plataforma para ter acesso aos dados armazenados pelo Facebook sobre os usuários que comentaram na postagem, a fim de que pudesse ingressar judicialmente contra cada um deles, fundamentando seu pleito no artigo 14 (3), da Lei de Telemídia (Telemediengesetz) vigente à época, cujo teor hoje está contido hoje no art. 21 (2) e (3) da Lei de Telecomunicações e Proteção de Dados (Telekommunikation-Telemedien-Datenschutz-Gesetz).

De modo geral, os tribunais inferiores negaram parcialmente o pedido da requerente.

Em decisão de setembro de 2019, o Tribunal de Berlim (Landgericht Berlin) julgou improcedente o pedido da parlamentar, considerando que as manifestações dos usuários do Facebook se vinculavam a fatos específicos e não tinham a capacidade de difamar a requerente em diversos contextos fáticos, devendo ela – enquanto pessoa pública – tolerar determinadas manifestações. Em janeiro de 2020, o Tribunal de Berlim alterou parcialmente a decisão, considerando apenas seis dos vinte e dois comentários indicados como ofensivos e, em razão disso, ordenou o Facebook (hoje Meta) a entregar os dados requisitados.

Em decisão de março de 2020, o Tribunal de Recursos (tradução livre para Kammergericht) de Berlim considerou mais seis comentários como ofensivos, totalizando doze comentários, desconsiderando, contudo, outros dez, que, segundo o Tribunal, estariam fora do escopo do tipo penal definido no art. 185 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch) – que trata da injúria -, um requisito para a concessão dos dados dos usuários. Quanto aos demais comentários, o Tribunal também recorreu ao argumento da figura pública da parlamentar para legitimar as manifestações por ela tidas como ofensivas e ilegais.

Não conseguindo satisfazer a sua pretensão na sua totalidade, a requerente ingressou com uma Reclamação Constitucional perante o TCF.

A Corte recebeu a Reclamação tendo em vista a potencial violação dos direitos fundamentais da requerente. Em suma, estava em causa o dever de o Facebook fornecer os dados armazenados sobre seus usuários após a postagem de comentários ofensivos a uma parlamentar alemã, cujo pedido não foi acolhido em sua totalidade pelos tribunais inferiores.

Segundo o TC alemão, em decisão proferida em dezembro de 2021 e publicada em fevereiro de 2022, as decisões anteriores – do Tribunal de Berlim e do Tribunal de Recursos – violaram o direito geral de personalidade da reclamante, com base nos artigos 2 (1) e 1 (1) da Lei Fundamental.

Após constatar que os requisitos necessários para o correto sopesamento entre direitos fundamentais não foram observados pelos tribunais inferiores, o TCF ordenou a anulação das decisões proferidas e o retorno dos autos para o Tribunal de Recursos, a fim de que seja proferida uma decisão suficientemente adequada. Além disso, o TCF entendeu que os Tribunais das instâncias ordinárias não realizaram corretamente o sopesamento dos direitos em questão, ou seja, do direito geral de personalidade da requerente com o direito à liberdade de expressão dos usuários.

Seguindo a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), o TCF pontua que o âmbito de crítica a pessoas públicas é maior do que nos casos em que se trada de indivíduos privados, no sentido de pessoas que não exercem cargos públicos ou que não gozam de grande reputação e notoriedade e exposição no meio social.

O TCF também ressaltou que manifestações que se aproximam do menosprezo, da mera ofensa e que são voltadas à degradação e humilhação, tendem a ser menos protegidas se comparadas com aquelas expressões que envolvem o debate e o interesse público. Além disso, para a Corte as manifestações críticas sobre pessoas públicas, sobretudo políticos, não dependem apenas do tipo e das circunstâncias da declaração, mas também da posição por elas ocupadas e da atenção por elas demandadas.

Para o TC alemão, o Tribunal de Recursos, ao afirmar que determinada manifestação tão-somente atinge a personalidade de um indivíduo na medida em que seja ofensivo em todos os contextos fáticos possíveis, adotou uma justificativa incompatível com os direitos da personalidade. Ademais, o contexto online, que se caracteriza pela imediaticidade das comunicações e pela anonimização dos usuários, deve ser considerado, tendo em vista a potencialização do efeito ofensivo de determinada declaração. Ao mesmo tempo, devem ser avaliadas as circunstâncias da manifestação – e. g. se repetitiva, se realizada mediante o uso de imagens do ofendido, etc., assim como deve ser aferido se as declarações foram proferidas no “calor do momento” ou permitiram maior período de reflexão.

Aliás, ainda que a liberdade de expressão seja protegida prima facie naquilo que envolve declarações que visem criticar pessoas públicas quanto ao poder que exercem em sociedade (Machtkritik), nem toda crítica será legítima, designadamente quando se trata de uma manifestação que vise apenas ofender. Afinal, só se pode esperar que haja interesse no engajamento e na representação da sociedade se as pessoas que exercerem esse papel tenham seus direitos pessoais protegidos.

Para o TCF, inexistindo motivos que pudessem justificar a renúncia ao sopesamento, não é suficiente apenas indicar a prevalência da liberdade de expressão; o fator decisivo na avaliação de potencial violação do direito geral de personalidade é o significado da manifestação tomando por base o entendimento de um público médio, imparcial e esclarecido, e não a intenção da pessoa que emitiu a declaração. O ponto é que os direitos fundamentais envolvidos, de ambas as partes, devem ser devidamente levados em conta, ponderando-se os aspectos relevantes do caso concreto, tarefa essa, todavia, cometida aos tribunais especializados das instâncias ordinárias.

Ao fim e ao cabo, o TCF acabou anulando as decisões anteriormente proferidas e determinou que seja emanada uma nova pelo Tribunal de Recursos, não sendo descartada a hipótese de que seja adotado posicionamento diverso do até então empregado, tendo em vista a necessidade, na reapreciação do caso, de o direito geral de personalidade da requerente ser sopesado com a liberdade de expressão à luz das circunstâncias do caso concreto.

A decisão, cujo texto serviria como substrato para uma aula sobre liberdade de expressão e seus limites na Alemanha, encerra uma série de questões inviáveis de avaliar no contexto da presente coluna, ainda que se o fizesse em caráter meramente esquemático.

Alguns pontos, contudo, merecem particular destaque, pois são de interesse universal e, em maior ou menor medida, guardam pontos de contato com a teoria e prática constitucional brasileira e poderiam até mesmo, com a devida filtragem, ser recepcionados.

Note-se que as manifestações de caráter ofensivo contra as quais se voltou a reclamante e em virtude das quais aforou demanda contra o Facebook, enquadram-se, segundo a reclamante e de acordo com (em parte) o que reconheceram os tribunais ordinários e mesmo o TCF, no conceito de conteúdos ilícitos tal qual definidos pelo parágrafo primeiro, inciso terceiro do NwDg.

Dentre as inúmeras postagens relacionadas pela reclamante, chamam a atenção algumas particularmente agressivas, como, por exemplo, que a chamaram de “vagabunda”, “porca”, “pedófila suja”, entre outras.

Nesse sentido, é de se sublinhar que o TCF reafirmou sua doutrina a respeito dos limites da liberdade de expressão, destacando que quando se trata de manifestações claramente ofensivas, destinadas a degradar, humilhar, rebaixar, uma pessoa, não tendo mais conteúdo que possa ser legitimamente tido como crítico, ainda que muito intenso, o direito de personalidade e mesmo a dignidade da pessoa humana estarão sendo violados, situações nas quais, não é necessário recorrer à técnica da ponderação, o que, contudo, se deverá fazer quando não claramente caracterizado o quadro acima delineado, aquilo que na Alemanha se designa por Schmähkritik.

Não se configurando uma tal situação excepcional, a posição preferencial será da liberdade de expressão, mas que poderá, a depender das circunstâncias do caso concreto, ceder no contexto de uma ponderação que tenha por finalidade resolver a colisão de direitos fundamentais em questão.

Da mesma forma, ainda de acordo com a práxis do TCF, muito embora as pessoas públicas sejam mais expostas, e, portanto, possam ser alvo de críticas e manifestações mais intensas, tais pessoas não podem ficar completamente à mercê de toda e qualquer ofensa, porquanto, quando se trata de sua dignidade, também são merecedoras da proteção de seus direitos da personalidade.

A ausência de uma ponderação (a ser realizada pelas Instâncias ordinárias) – o mesmo ocorre quando substancialmente carente de adequada fundamentação – configura, por sua vez, uma violação do direito de personalidade da (s) parte (s).

Outrossim, embora tal aspecto não tenha sido particularmente desenvolvido na decisão, trata-se de (mais um) caso envolvendo a eficácia de direitos fundamentais nas relações privadas e a vinculação, ainda mais em se tratando de atores sociais muito poderosos e de situações de acentuada assimetria de poder, tudo a demonstrar que, seja pela via direta, seja mediante a assim chamada indireta (que, no caso, soa mais compatível com as circunstâncias), os particulares também encontram-se vinculados aos direitos fundamentais, o que deve valer, e cada vez mais, para as plataformas de mídias sociais, sem que com isso se possa abrir mão de uma posição preferencial da liberdade de expressão e de informação.

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