Opinião

O papel do Supremo Tribunal Federal no contexto da crise da Covid-19

Autor

  • Fernanda Tonetto

    é procuradora do estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores diretora acadêmica da Esapergs oós-doutora em direito (UnB) doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assase doutora e mestre em Direito pela UFRGS e pesquisadora do Lepadia/UFRJ.

26 de fevereiro de 2022, 6h33

Em dezembro de 2019, o novo coronavírus foi detectado na China e muito rapidamente o mundo tornou-se palco de uma pandemia que produziu perdas significativas de vidas, estagnação de atividades econômicas, fechamento das fronteiras de Estados e outros problemas decorrentes de uma grave crise sanitária e humanitária.

No Brasil, o cenário da pandemia foi um dos mais críticos do mundo, com números expressivos de mortos e infectados e com ocupação de leitos de UTI no limite da capacidade do sistema de saúde. Verificou-se, ainda, uma queda histórica do PIB brasileiro e o aumento da linha da pobreza se tornou visível a olhos nus. O agravamento da crise econômica colocou em xeque as desigualdades estruturais existentes, causando um impacto desproporcional sobre as pessoas em situação de vulnerabilidade.

O país, que não é o melhor exemplo de políticas públicas eficazes, viu-se na emergência não apenas de conter a propagação do vírus, mas também de minimizar os efeitos do desemprego e da miséria. Para piorar, muitos dos conflitos decorrentes desse contexto chegaram ao Poder Judiciário com uma velocidade tão avassaladora quanto a do vírus.

No sistema jurídico brasileiro, já é tradição as demandas sociais se transformarem em demandas judiciais. Com o crescimento dos efeitos da pandemia, essa litigiosidade foi potencializada, possivelmente em virtude da ausência de uma bem construída política de saúde e de uma visível deficiência de diálogo entre os poderes, cujos desencontros culminaram em grandes impasses. À crise sanitária e humanitária somou-se uma crise política.

O Poder Judiciário foi chamado a resolver litígios ligados à competência dos entes federativos, à atuação do Poder Legislativo na apuração da responsabilidade dos gestores, à constitucionalidade de normas restritivas da liberdade de locomoção, à utilização de leitos de UTI e à proteção de populações vulneráveis, entre outros.

O tema da prestação de políticas públicas obviamente não passou em branco. O problema da sua ineficácia exigiu a atuação do Supremo Tribunal Federal tanto no que diz respeito ao plano de imunização quanto à adoção de medidas preventivas relacionadas à restrição de direitos.

Foram muitos os atos restritivos de atividades econômicas e da circulação de pessoas editados pelos governadores e prefeitos que acabaram sendo referendados pela Suprema Corte em nome da contenção da pandemia.

O tema das vacinas também entrou na pauta. A ACO 3.518 versou justamente sobre a distribuição das doses pelo governo federal e serviu para que o STF enfatizasse que eventuais alterações da política nacional de distribuição dos imunizantes deveriam ser tempestivamente informadas aos Estados.

Na ADI 6.586, o Supremo decidiu pela legitimidade da vacinação obrigatória, desde que respeitada a dignidade das pessoas, ressaltando a competência do Ministério da Saúde para coordenar o Programa Nacional de Imunização, de forma a não excluir a competência dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para estabelecer medidas profiláticas e terapêuticas.

Também se manifestou sobre a necessidade de detalhamento do Plano Nacional de Imunização  (ADPF 754) e determinou a divulgação da ordem de preferência entre os grupos prioritários com base em critérios técnico-científicos.

Mas, se por um lado o STF manteve uma postura proativa já consolidada em matéria de políticas públicas, por outro, sobre o tema do pacto federativo, a mudança jurisprudencial foi bem mais evidente.

A antiga tradição dos precedentes trazia um enfoque para a centralização da federação, fruto da herança histórica brasileira. Ainda que a Constituição de 1988 tenha reforçado a divisão de competências entre os entes e a necessidade de respeito às regras do pacto federativo, a evolução rumo a uma descentralização efetiva aconteceu muito mais lentamente na prática do que no papel.

A pandemia imprimiu uma espécie de evolução à fórceps sobre o assunto. Um dos primeiros divisores de águas na jurisprudência do STF sobre a matéria foi a decisão proferida na ADI 6.341, que ressaltou a possibilidade de os entes federativos adotarem medidas restritivas, mesmo que mais ortodoxas do que as adotadas pela União.

O tema também veio à tona no julgamento da ADI 6.343, sobre regras para que estados e municípios adotassem medidas de restrição à locomoção. O Supremo reiterou o preceito de que a distribuição de competências é alicerce do federalismo e do Estado democrático de Direito, cuja base deve ser a cooperação entre os três poderes.

Por isso, não competiria ao Poder Executivo federal afastar decisões que tivessem adotado medidas restritivas, como imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e de circulação de pessoas.

Foi assim que os impasses políticos que culminaram nessas decisões acabaram por impulsionar uma certa evolução sobre o tema, em especial sobre a ampliação das competências dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

É claro que essa mudança já se fazia sentir antes da crise. Basta ver, por exemplo, o desfecho dado em 2015 na ADI 4.060, sobre a possibilidade de os estados estabelecerem o número mínimo e máximo de alunos em sala de aula, em respeito às especificidades locais. O STF também já era sensível às discussões envolvendo o pacto federativo em matéria de guerra fiscal e relativamente à dívida dos estados com a União.

De lá para cá, é certo que a Corte Constitucional oscilou entre posturas conservadoras e progressistas, ora minimizando, ora enfatizando a importância do papel dos entes federativos na moldura constitucional. Mas é especialmente a partir de 2020 que o Supremo bate o martelo sobre a necessidade de descentralização. Como dizia o ministro Marco Aurélio, "a crise é aguda" e mereceu soluções cirúrgicas.

Ainda que o prognóstico seja otimista, é prematuro afirmar que a preservação das competências dos estados e municípios será um leitmotiv das futuras decisões da Suprema Corte brasileira, que muitas vezes oscila ao sabor de argumentos consequencialistas. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal sabe muito bem como ser imprevisível.

Basta que se analise a decisão proferida no RE 714.139, em que o STF reduziu a alíquota do ICMS, invadindo a competência legislativa dos estados e do Distrito Federal.

De todo modo, parece que a mudança jurisprudencial poderá servir de precedente para outras controvérsias. Afinal de contas, a corte já suspendeu decisões que não respeitavam seu entendimento, em casos emblemáticos versando sobre contenção do transporte fluvial, restrição de celebração de cultos religiosos, abertura do comércio e outros serviços.

Quanto às decisões acerca da imposição de políticas públicas, o Supremo parece estar mais ativista do que nunca, o que, de um lado, atende a situações emergenciais e necessárias e, de outro, fortalece a cultura de que o Poder Judiciário pode agir como legislador positivo.

O balanço, no entanto, é positivo: o Supremo Tribunal Federal tem sido historicamente instado a se pronunciar sobre temas que tocam direitos fundamentais e procura dar uma resposta célere a esses chamados, concordemos com seu conteúdo ou não. E, justamente em virtude da natureza polêmica de algumas decisões, formou-se no Brasil uma polarização entre aqueles que defendem a atuação da corte e aqueles que a repugnam, o que sói acontecer em um país politicamente dividido.

Qualquer que seja a posição que se adote, não se pode, porém, perder de vista que a missão conferida ao STF é uma das mais nobres que a Constituição Federal consagrou: a garantia aos direitos fundamentais, a estabilidade do Estado democrático de Direito e a solidez de suas instituições.

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    é procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, diretora acadêmica da Escola Superior de Advocacia Pública da Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul (Esapergs) e doutora em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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