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Alessi Brandão: A inelegibilidade nos ANPPs nos crimes eleitorais

26 de fevereiro de 2022, 7h14

Por Alessi Brandão

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A Justiça Negocial não é novidade no nosso ordenamento jurídico. Desde a publicação da Lei nº 9.099/95, temos instituído no Direito brasileiro duas modalidades de acordos entre o acusado e o Ministério Público: a transação penal e a suspensão condicional do processo. Contudo, a Justiça Negocial ganhou maior visibilidade  e, consequentemente, debates sobre sua legalidade  com a introdução dos acordos de colaboração premiada pela Lei nº 12.850/13, os quais ficaram famosos com a operação "lava jato".

Seguindo esse formato, o chamado pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/2019) trouxe mais uma importação do Direito americano [1], introduzindo o acordo de não persecução penal, inserido no artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Trata-se de importante medida despenalizadora, criada com o fito de desafogar o Judiciário e beneficiar os investigados da prática de crimes sem violência ou grave ameaça. Assim, quando não é caso de arquivamento do inquérito, o Ministério Público  dentro de sua discricionaridade  propõe referido acordo, cujo aceite evita que o acusado seja processado. Além de um verdadeiro encurtamento do resultado do processo (aqui no sentido de "curso", e não de "processo jurídico"), a realização do acordo traz como grande chamariz a ausência de um longo e desgastante processo penal  em que sempre há o risco de uma condenação  e a garantia de que não haverá antecedentes criminais.

Todavia, além do acordo ser restrito aos crimes sem violência ou grave ameaça, o caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal o restringiu aos delitos cuja pena seja inferior a quatro anos e ao acusado que tenha confessado "formal e circunstancialmente" a prática do crime. Ainda, o acordo só poderá ser proposto se "necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime", o que implica dizer que, apesar de ser uma medida despenalizadora, a lei visa a censurar o comportamento criminoso e prevenir que ocorra novas violações ao bem jurídico. Em resumo, não pode o acordo de não persecução penal significar impunidade.

Além desses requisitos objetivos obrigatórios, o artigo 28-A do Código de Processo Penal impõe outras condições objetivas, as quais podem ser ajustadas cumulativamente ou alternativamente, sendo elas: 1) reparação do dano (inciso I); 2) renúncia a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime (inciso II); 3) prestação de serviço à comunidade (inciso III); e 4) pagamento de prestação pecuniária (inciso IV).

Como se vê, as condições objetivas foram escritas de forma clara, não trazendo grandes questionamentos. No máximo haverá uma discussão dentro da própria negociação sobre a sua incidência cumulativa ou alternativa.

Entretanto, o inciso V daquele artigo permitiu ao Ministério Público impor ao acordo qualquer outra condição, "desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada". A amplitude e subjetividade desse requisito, que vai de encontro à segurança jurídica, é a parte que nos interessa na presente discussão, sobretudo no que se refere aos crimes eleitorais.

Façamos, então, uma análise dos crimes eleitorais sob a ótica da possibilidade  ou não  de celebração do acordo de não persecução penal.

Primeiramente, faz-se necessário pontuar que grande parte dos crimes eleitorais são delitos cometidos sem violência ou grave ameaça. No tocanà pena, com exceção de apenas três delitos (artigo 302 do Código Eleitoral; artigo 11, inciso III, da Lei nº 6.091/74; e artigo 72 da Lei nº 9.504/1997), todos possuem pena mínima inferior a quatro anos [2].

Logo, no caso dos crimes eleitorais cuja pena mínima seja inferior a quatro anos e tendo o acusado realizado a confissão "formal e circunstanciada" do delito, estariam preenchidas as condições obrigatórias para a propositura do acordo de não persecução penal pelo Ministério Público. Bastaria, então, o estabelecimento das condições previstas nos incisos I a IV do artigo 28-A do Código de Processo Penal, também objetivas, e o acusado que quisesse celebrar referido acordo com o Ministério Público poderia fazê-lo. Assim, eventual óbice para a celebração da avença estaria na imposição de alguma condição subjetiva.

Aí surge a problemática: o inciso V do artigo 28-A do Código de Processo Penal permitiu ao Ministério Público impor qualquer outra condição que achar pertinente "desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada". Nesse ponto, o questionamento lógico em se tratando de crimes eleitorais é: seria possível impor a pena de inelegibilidade como condição para o oferecimento de acordo de não persecução penal no caso de crimes eleitorais? Existem fundamentos para as duas vertentes.

Primeiramente, iniciando pela possibilidade de imposição da inelegibilidade como condição da ANPP, milita a seu favor o próprio caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, o qual estabelece que o acordo só poderá ser proposto pelo Parquet se "necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime".

A expressão acima é derivada de uma concepção mista, na qual a imposição da sanção penal se fundamenta tanto em critérios retributivistas (reprovação), quanto em preventivistas (prevenção). Logo, o acordo deve ser capaz de censurar o comportamento criminoso e, ao mesmo tempo, prevenir futuras práticas delitivas.

Assim, a possibilidade de perda da elegibilidade  que consiste na verdadeira alma do agente político  é, juntamente com a própria liberdade, um dos maiores fatores para prevenir a prática de novos delitos. Aliado a isso, temos o próprio fundamento da alteração legislativa que endureceu a pena de inelegibilidade. Isso porque a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010), que alterou a Lei Complementar nº 64/1990, é fruto de projeto de iniciativa popular. Em outras palavras, a personificação legislativa do descontamento do povo com a falta de ética de alguns governantes.

O objetivo da referida lei é proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato público. Tanto é assim que alterou a Lei Complementar nº 64/1990, acrescentou novas causas de inelegibilidade e aumentou consideravelmente o seu período, de três para oito anos, para o político condenado (por decisão de órgão colegiado ou decisão transitada em julgado) pela prática dolosa de crimes, mantendo, inclusive, os crimes eleitorais cuja pena seja privativa de liberdade (artigo 1º, I, e, 4). Além do aumento do período da inelegibilidade, o rol de crimes foi aumentado ao máximo, restando excluídos apenas os crimes de menor potencial ofensivo e os crimes contra a honra.

As duras mudanças trazidas pela Lei da Ficha Limpa, sobretudo as relativas à inelegibilidade, foram objeto de grande discussão no Supremo Tribunal Federal (Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29/2011 e nº 30/2011 e Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4578/2011 e nº 6.630/2011), cujo julgamento reconheceu a sua constitucionalidade  com fundamento no artigo 14, §9º, da Constituição Federal. Além disso, fortaleceu o principal objetivo da lei: o cumprimento do preceito constitucional da moralidade pública para o exercício de mandatos eletivos.

Como se vê, a gênesis da pena de inelegibilidade tem como fundamento censurar o comportamento malfeitor do agente político, garantir maior ética e respeito à res pública e, sobretudo, garantir o princípio da moralidade pública no exercício dos mandatos eletivos.

A lógica é a seguinte: se uma pessoa não se apresenta disposta a respeitar determinadas regras de convívio social criadas para manter a harmonia em seu plano mais simplista, é provável que assumindo um cargo eletivo que lhe garanta determinado nível de poder, o exerça de acordo com o seu próprio interesse e em detrimento do interesse público.

Ademais, considerando que um dos preceitos da avença é a confissão da prática delitiva e que a Lei Complementar nº 64/90 já prevê a inelegibilidade no caso de cometimento de crimes eleitorais pode o Ministério Público, com fundamento no inciso V do artigo 28-A do Código de Processo Penal condicionar a inelegibilidade como requisito da avença, vez que "proporcional e compatível com a infração penal imputada".

Por outro lado, também são relevantes argumentos os quais sustentam a impossibilidade da inelegibilidade ser condição para o ANPP.

Primeiramente, conforme já pontuado, não são todos os casos de crimes eleitorais cuja condenação implicará na pena de inelegibilidade. Assim, de pronto, não poderia o Parquet sugerir referida condição, por exemplo, em crimes culposos, crimes de menor potencial ofensivo, crimes contra a honra ou ainda, em crimes eleitorais cuja pena não seja privativa de liberdade.

Aliado a isso, a própria Lei da Ficha Limpa não impôs a inelegibilidade como pena para todos os crimes eleitorais. Assim houve uma flexibilização do seu caráter moralizador.

Outro ponto importante está na idoneidade de outros dois benefícios processuais nos casos de crimes eleitorais: a transação penal e a suspensão condicional do processo. Com relação ao primeiro, apesar do artigo 76 da Lei nº 9.099/95 falar expressamente em aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a Lei da Ficha Limpa entendeu por bem não aplicar a pena de inelegibilidade nos crimes de menor potencial ofensivo.

A pergunta que fica é: seria ilegal não impor a condição de inelegibilidade nos acordos realizados em crimes eleitorais com penas privativas de liberdade? Entende-se que não.

Isso porque, conforme já dito, o legislador desde a promulgação da Lei da Ficha Limpa permitiu a concessão de acordos para evitar uma condenação. Assim, apesar de muitos dos crimes eleitorais não serem transacionáveis, não houve impedimento quanto ao sursis processual para delitos cuja pena mínima não seja superior a um ano. Logo, permaneceu possível a celebração de negócio jurídico despenalizador quando imputada infração penal cuja perpetração é entendida pelo ordenamento como desmoralizante para o exercício de cargos eletivos e cuja condenação impõe a inelegibilidade ao agente político.

Aqui surge um dos cernes da questão: tanto na suspensão condicional do processo quanto no ANPP o legislador utilizou o termo condições para se referir às contrapartidas a serem cumpridas pelo beneficiário. Assim, conforme pontuado pelo Volgane Oliveira Carvalho [3], ao empregar essa expressão, o legislador elencou obrigações contratuais.

Dessa forma, tratando-se de um acordo entre as partes, as condições não podem constituir antecipação da pena. Assim, ainda que o inciso V do artigo 28-A do CPP tenha permitido ao Parquet apresentar outra condição compatível à infração, essa jamais pode configurar antecipação da pena. Esse foi o entendimento do juízo da 3ª Vara Criminal de Uberlândia [4] ao não homologar esse ponto da avença.

Aliado a isso, tem-se a própria razão da criação da ANPP. Antes mesmo do pacote "anticrime", referido acordo surgiu nas Resoluções nº 181/17 e nº 183/18 do Conselho Nacional do Ministério Público, cujo objetivo era justamente priorizar recursos humanos e financeiros para crimes graves e desafogar o Judiciário.

Assim, sendo medida de natureza político criminal, gerada para dar uma resposta rápida aos casos menos graves e desafogar o Judiciário, não podem as condições imposta pelo Parquet consistirem em verdadeiro apenamento, sob pena de desestimular o acusado em celebrar o acordo. Há de se ponderar que essa relação custo-benefício tem de ser interessante para ambos os lados: o Parquet garante a reparação imediata do dano para a sociedade (o que muitas vezes jamais aconteceria pela lentidão dos processos penais), o direcionamento dos recursos financeiros e humanos para a solução de crimes graves e o réu tem uma penalidade mais branda. O acordo deve constituir um verdadeiro "ganha-ganha" para as partes.

E, nesse sentido, recentemente o Supremo Tribunal Federal homologou na Petição nº 7.990/DF o acordo de não persecução penal realizado pelo então deputado federal Ônix Lorenzoni, que confessou a prática do crime de caixa dois eleitoral (artigo 350 do Código Eleitoral), cuja condição requerida pela Procuradoria-Geral da República foi apenas o pagamento de uma multa.

 

Referência bibliográfica
CARVALHO. Volgane Oliveira. Da impossibilidade da fixação de inelegibilidade como condição em acordo de não persecução penal. Boletim ABRADEP#2. Janeiro/2022.

 


[1] Inspirado no Plea Bargaining, instituto originário do common law. De modo genérico, consiste numa negociação entre acusado e o Ministério Público, a fim de que o primeiro preste informações para o parquet e em troca receba uma diminuição ou isenção da pena.

[2] Pontua-se que, nos diversos tipos penais do Código Eleitoral que não apresentam pena mínima no preceito secundário, sendo então considerado o quantum de 15 dias para a pena de detenção e 1 ano para a de reclusão, nos termos do artigo 284 do Código Eleitoral.

[3] CARVALHO. Volgane Oliveira. Da impossibilidade da fixação de inelegibilidade como condição em acordo de não persecução penal. Boletim ABRADEP#2. Janeiro/2022.

[4] Autos nº 0016823-45.2020.8.13.0702. DJe 23/1/20.