Opinião

Considerações sobre ESG e os novos conflitos

Autor

25 de fevereiro de 2022, 20h44

Embora já não seja nova, a temática ESG dominou boa parte da pauta do mundo corporativo e jurídico no ano de 2021 e continua a crescer. Do inglês environmental (ambiental), social e governance (governança), ESG (ou, em português, ASG) pressupõe um olhar da empresa não apenas da perspectiva lucro-investidores, mas da perspectiva de todas suas relações na sociedade. Não existe um conteúdo pré-definido para ESG. Ao contrário, ESG indica uma maneira de endereçar os conteúdos, pois trata da própria relação da empresa (sistema) com a sociedade (ambiente) e, por isso, tanto novos quanto velhos temas podem ser estruturados nessa óptica.

É uma verdadeira evolução na função social da empresa. Evolução, e não mudança, pois não se trata de substituir o que já existe, e, sim, de, a partir dos estímulos do meio, desenvolver e incorporar novas estruturas que, sem eliminar as antigas, ajudam na adaptação a esses estímulos. Gerar lucro continua a ser o propósito de uma empresa. No entanto, apenas gerar lucro já não é suficiente para responder e se adaptar ao ambiente social.

Desde a crise financeira de 2008, a regulação sobre o modo como companhias se relacionam com investidores e reportam seus resultados vem ficando mais rígida. Cada vez mais, já não se trata apenas de reportar resultados, mas também de demonstrar e explicar práticas que garantam a solidez desses resultados. Além disso, o resultado deve ser sustentável tanto para a empresa quanto, cada vez mais, também para a sociedade.

Além disso, de 2008 para cá as redes sociais mudaram a dinâmica da opinião pública e do relacionamento dos consumidores com marcas e empresas. Consumo sustentável, meio ambiente, valores sociais, compromisso com direitos humanos, diversidade e inclusão, preocupam consumidores, orientam algoritmos, conduzem a ressonância da comunicação e pressionam a formulação de políticas públicas e novas regulações do mercado. Ignorar esses valores na definição de critérios para a tomada de decisão é isolar-se da sociedade e um sistema isolado do seu ambiente acaba pela sua própria entropia. Como não é possível se isolar, é preciso se antecipar às mudanças regulatórias e ganhar as mentes e corações dos consumidores.

Por isso, a temática ESG tende à expansão. Ela ajuda empresas a absorver e estruturar a crescente complexidade do seu ambiente, o que é crucial para a tomada de decisão. A par do resultado financeiro, é preciso considerar temas como o gerenciamento de resíduos (tanto subprodutos do processo quanto pós-consumo), matriz e eficiência energética, gestão dos recursos ambientais; condições dos trabalhadores, diversidade e inclusão, respeito aos direitos humanos; proteção do consumidor; iniciativas anticorrupção, boas práticas financeiras e a proteção de dados  só para pegar alguns dos temas já bem definidos como pertinentes à visão ESG.

No Brasil, a CVM editou, em dezembro de 2021, a Resolução nº 59/2021, uma primeira normatização para práticas ESG. Companhias devem informar se divulgam informações sobre indicadores de ESG e, caso positivo, explicar se há auditoria independente, quais os indicadores utilizados e se os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU foram considerados. Também devem informar se o relatório considerou as recomendações da Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas às Mudanças Climáticas, ou de outras entidades reconhecidas, e se o emissor (do relatório) realiza ou não inventário de emissão de gases. Também é necessário informar o papel dos órgãos de administração na avaliação de riscos relacionados ao clima. A resolução também determina que as empresas devem informar, no relatório, a diversidade do corpo de administradores e empregados. Não se trata, como se vê, de exigir a adoção de práticas ESG, mas de exigir transparência com relação à adoção ou não dessas práticas, e seus critérios, permitindo que o próprio ambiente competitivo do mercado possa impulsionar efetivas mudanças de comportamento empresarial.

Errar em andar de acordo com o próprio discurso ("walk the talk") pode ter consequências do ponto de vista da regulação CVM, bem como outras mais amplas. O impacto na reputação pode atingir o valor de mercado da empresa (atingindo investidores); a percepção do consumidor ao escolher a marca; dificuldades de atração e retenção de talentos; acesso a crédito (instituições financeiras já começam a condicionar produtos a certos marcos de ESG); acesso a contratos com o poder público entre outros efeitos. 

Nesse contexto, é de se esperar, e já se observa, o surgimento e a judicialização de conflitos, tanto na relação investidor-empresa; quanto na relação empresa-empresa (cadeias de fornecimento e parceiros); como na relação empresa-sociedade (consumidor, coletividade, meio ambiente etc.). Em um ordenamento como o brasileiro, em que há uma crescente adoção das formas de responsabilidade civil baseadas no risco, a adoção de práticas ESG, embora não seja obrigatória, representa um patamar para um dever geral de cuidado, isto é, em alguma medida, do risco associado à atividade, especialmente quando as empresas declaram adesão a essas práticas.

A ESG traz novas luzes para o conceito de função social da empresa, expresso na Constituição (artigo 170) e no artigo 116, parágrafo único, da Lei das SA ("Acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua (…)"). Note-se: os administradores de uma empresa devem exercer seu poder com vistas à uma função social e devem considerar deveres da empresa para com "os que nela trabalham" e para com "a comunidade". Quais são esses deveres? No mínimo aqueles decorrentes dos valores e das práticas ESG com os quais a empresa declara compactuar.

Espera-se, assim, o crescimento de litígios por lesões decorrentes da falta de transparência quanto ao reporte das práticas ESG; da contradição entre discurso e prática; e mesmo da omissão em adotar práticas ESG condizentes com o impacto da atividade. Ainda que não haja obrigação legal, as iniciativas ESG podem representar o patamar para um dever geral de cuidado e a responsabilidade dos administradores para com a comunidade. Decisões empresariais que não considerem o impacto ambiental (climático, desmatamento, gestão de resíduos); social (inclusão e diversidade, respeito aos direitos humanos) e de governança, mesmo que não sejam ilegais a priori, podem levar à responsabilização civil e mesmo societária, por parte de investidores e demais acionistas.

Ações de indenização por eventos climáticos extremos ou para compelir empresas a reduzirem suas emissões (a chamada litigância climática) já vêm ocorrendo. A omissão da empresa na adoção de práticas para atingir metas e compromissos públicos também poderá ser objeto de judicialização. Na esteira da COP-26 e de iniciativas como Empresários pelo Clima, o setor privado vem assumindo compromissos públicos com a redução progressiva de suas emissões. A inércia na adoção de medidas eficazes para o atingimento dessas metas declaradas poderá levar à judicialização mesmo antes do prazo estipulado. Vale dizer, a sociedade e os atores relevantes não irão esperar a chegada do prazo estabelecido (por exemplo: emissões zero até 2040) para cobrar a tomada de ação, se necessário, judicialmente.

Também já são observadas ações questionando a concessão de incentivos e subsídios públicos para atividades de impacto climático, sem exigir contrapartidas. Por exemplo, recentemente, alguns cidadãos ajuizaram ação popular contra o governo de São Paulo para questionar a legalidade de programa de incentivo para a indústria automotiva (Decreto 64.130), com financiamento público de projetos de expansão e instalação de novas fábricas, mas que não exige nenhuma contrapartida ou compromisso relativo à redução de emissão de gases, como determina a Política Estadual de Mudanças Climáticas. Trata-se do Processo nº 1068508-84.2021.8.26.0053, na 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. A ação, embora direcionada contra o poder público, afeta diretamente a iniciativa privada se não puder demonstrar, por exemplo, que já adotará, voluntariamente, contrapartidas importantes.

Ações contra iniciativas de recrutamento em empresas que não levam em conta critérios de diversidade ou exigindo maior diversidade em cargos de liderança, bem como questionando a eficácia de políticas de proteção de dados, estão no horizonte de um novo tipo de contencioso.

Um outro aspecto importante diz respeito ao posicionamento das empresas nos seus conflitos em geral, que deve ser condizente com os valores ESG professados. Petições não podem se limitar à técnica e ao jargão processual, precisam ser vistas e tratadas como comunicação com o público. Estratégias e teses não podem ser incompatíveis com os valores declarados pela empresa. Todo contencioso, mesmo que de baixo valor, pode ter relevância estratégica. É um cenário desafiador e que conclama empresas a investirem ainda mais em medidas para evitar a judicialização de conflitos, bem como para soluções fora do Judiciário. Também pressiona para que, uma vez judicializado o conflito, sua condução seja utilizada como uma oportunidade de reforçar a comunicação e transparências das práticas ESG e, se for o caso, identificar e mudar práticas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!