Opinião

A necessária reflexão e o imperativo debate sobre os direitos autorais

Autor

  • Luiz Gonzaga Silva Adolfo

    é advogado no Rio Grande do Sul — com atuação em Direitos Intelectuais há mais de 30 anos — doutor em Direito pela Unisinos (1996) pós-doutor em Direito pela PUC-RS (2018) e professor dos cursos de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

24 de fevereiro de 2022, 6h33

De forma breve, porém reflexiva, podemos pontuar alguns elementos capazes de conduzir à ideia de inadequação da regulação autoralista aos padrões jurídicos — mormente constitucionais  e tecnológicos da sociedade em rede. E, assim, demonstrar alguns avanços ocorridos nos últimos anos, desembocando na nova regulação da União Europeia em torno da temática.

Concebidos historicamente, principalmente a partir da Revolução Francesa, os direitos autorais lançaram-se no século 20 erigidos em sua verve privada, patrimonialista. Diga-se, como direito de propriedade.

Propriedade especial, mas na coloração liberal-individualista que permeava o Direito Privado daqueles tempos. Assim foi por praticamente todo o século 20, ou, por que não dizer?, tomando como ponto de partida o denominado Copyright Act da rainha Ana da Inglaterra, de 1710, por quase 300 anos.

Dois fatores são centrais no erguimento desse patamar interpretativo. A primeira, como antes mencionado, o molde proprietarista que o sistema pós-napolêonico imprimiu aos direitos autorais. Seriam eles na visão corrediça direitos de propriedade, individuais. Assim sendo, o foco se dava na figura do titular dos direitos patrimoniais, e não necessariamente do autor. Estes titulares muitas vezes eram (são) atores de significativo poder econômico no campo das artes e dos direitos culturais em geral. Ninguém negaria isso.

Na atualidade, essa concentração se dá muito em players proeminentes da ramificação digital. Em segundo tempo, não bastando serem direitos de propriedade, os direitos autorais sempre foram analisados primordialmente a partir de sua cariz patrimonial, pouca importância se dando para os cognominados direitos morais do autor. A linha de mira era fixada estrategicamente na exploração econômica das obras, e não na figura do autor propriamente dito.

De igual sorte, dois elementos foram cruciais para a modificação do patamar interpretativo dos direitos autorais, sobretudo no final do século 20 até o atual ano de 2022, em seu início. O primeiro está relacionado ao constitucionalismo contemporâneo. Em terras brasilis, a Constituição Federal alçou os direitos autorais ao patamar de direitos fundamentais, tanto que estão consubstanciados nos incisos XXVII a XXIX do artigo 5º de seu texto.

O segundo está vinculado à sociedade da informação estrito senso, vale referir-se ao fantástico progresso tecnológico de nossos tempos, e com ele as condições quase infinitas de publicação e de divulgação de obras artísticas, para focar somente nesse aspecto. O espantoso aumento das possibilidades técnicas de publicação e as novas formas de autoria, também colocaram o modelo clássico em xeque.

Tudo desembocou em saudáveis discussões acadêmicas no mundo inteiro, e também, é claro, no Brasil nas três últimas décadas, em torno dessa crise e possíveis "soluções". Entre nós, como antes já se sobressaiu, o tempo é praticamente o mesmo; vale dizer que a nossa Carta Magna estará completando 34 anos no início de outubro de 2022.

No mundo e no Brasil se tem discutido nesse período a inadequação desse modelo nos últimos tempos [1]. Isso se deu tanto no âmbito acadêmico, com centenas de produções de alto nível propugnando por mudanças [2], como no círculo legislativo, com alterações que de fato foram concretizadas [3], embora ainda incipientes.

Enquanto isso, há aqueles que defendem a importação de modelos alienígenas de direitos autorais, e até direitos autorais para animais [4], sem uma reflexão mais aprofundada das diferenças entre ambos os sistemas e sem dizer que, no caso concreto do primata [5] em relevo, na verdade o interesse era pecuniário, vale dizer na velha lógica dos direitos autorais enquanto direitos patrimoniais, e não na verve de direitos morais do autor. Dito de outro modo, a preocupação com a exploração econômica e seus resultados, e não com o autor propriamente dito.

Em nível internacional, no centro do palco, atualmente as discussões em torno da Diretiva (União Europeia) nº 2019/890 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único [6].

O dispositivo mais controverso é o artigo 17 [7]que, em apressado breviário, impõe que todas as plataformas online de compartilhamento ou de distribuição de conteúdo apliquem filtros para apuração de eventuais violações de direitos autorais. Nitidamente, o que for decidido para a Europa terá muitos reflexos no Brasil.

Por outro lado, há quem proponha direitos autorais para jogos de futebol [8], atividade que a priori não guarda relações com obras artísticas, por mais espetacular que possa ser uma jogada de Cristiano Ronaldo ou de Lionel Messi. Ou também direitos autorais para "notas de crédito", com a boa interpretação feita por Pedro Marcos Nunes Barbosa [9].

Em síntese, estamos caminhando para a metade da terceira década do novo século, a pandemia do coronavírus precipitou ou antecipou muita coisa, e os direitos autorais ainda permanecem em antiga construção. Na previsão voltada ao exemplar físico, em era de cultura digital plena, por exemplo. Suas limitações previstas nos artigos 46 a 48 não são suficientes para o enfrentamento das colisões intrínsecas e extrínsecas de direitos que há entre titulares ou publicadores e consumidores ou público em geral.

A crise está posta. Resta-nos definir quais os caminhos possíveis para enfrentá-la, pautados em debates contínuos e que, claramente, são imperativos.

 


[1] Em 28 de junho de 2019 a Secretaria Especial da Cultura  então vinculada ao Ministério da Cidadania, abriu consulta pública com prazo de sessenta dias para contribuições pela reforma da Lei de Direitos autorais brasileira. Os resultados estão disponíveis em parte para consulta. BRASIL. Ministério do Turismo. Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual  SDAPI. Departamento de Política Regulatória  DEPRG. Dados consolidados da consulta pública sobre a reforma da Lei de Direitos Autorais e as reservas do Tratado sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas da OMPI (WPPT) e o Tratado de Pequim sobre interpretações e execuções audiovisuais. Disponível em: https://www.gov.br, acesso em 21 fev. 2022.

[2] Entre tantas da mesma valia, se remete neste instante a excelente obra organizada pelo professor Marcos Wachowicz, com sugestões concretas de reforma do diploma autoralista pátrio. WACHOWICZ, Marcos (Org.). Por que mudar a Lei de Direito Autoral? Estudos e pareceres. Florianópolis: Funjab, 2011. Disponível em: http://www.direitoautoral.ufsc.br/gedai/2011/12/versao-digital-da-obra-%e2%80%9cpor-que-mudar-a-lei-de-direito-autoral-estudos-e-pareceres%e2%80%9d/, acesso em 21 fev. 2022.

[3] Como na edição da Lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013. Publicada no dia seguinte, entrou em vigor 120 dias após sua publicação. Esta legislação alterou significativamente a denominada gestão coletiva dos Direitos Autorais no país. BRASIL. Lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12853.htm#art2, acesso em 21 fev. 2022.

[4] Sobre direitos autorais para máquinas, remete-se para GERVAIS, Daniel. Can machines be authors? Kluwer Copyright Blog.  Wolters Kluwer. Disponível em: http://copyrightblog.kluweriplaw.com/2019/05/21/can-machines-be-authors/, acesso em 21 fev. 2022.

[5] O caso tão discutido do macaco que fez uma fotografia própria na Indonésia pode ser consultado eletronicamente. LAWSON, Alastair. Selfie de macaco vira alvo de disputa sobre direitos autorais. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150926_selfie_macaco_polemica_lgb, acesso em 21 fev. 2022.

[6] Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, sobre direitos autorais e direitos conexos no Mercado Único Digital e que altera as Diretivas 96/9/EC e 2001/29/EC. Disponível em  https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2019/790/oj, acesso em 21 fev. 2022..

[7] Para aprofundamentos, sugere-se: KELLER, Paul. Article 17, the year in review (2021 edition). Disponível em: http://copyrightblog.kluweriplaw.com/2022/01/24/article-17-the-year-in-review-2021-edition/, acesso em 21 fev. 2002.

[8] BENTLY, Lionel. The football game as a copyright work (Part I). Disponível em: http://copyrightblog.kluweriplaw.com/2022/02/01/the-football-game-as-a-copyright-work-part-i/, acesso em 11 fev. 2022. E: BENTLY, Lionel. The football game as a copyright work (Part II). Disponível em: http://copyrightblog.kluweriplaw.com/2022/02/02/the-football-game-as-a-copyright-work-part-ii/, acesso em 11 fev. 2022.

[9] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Notas de crédito e Direito de Autor. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 27, p. 181-226, jan./mar. 2021.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor dos Cursos de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

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