Interesse Público

STJ: Lei 14.133/21 suprimiu singularidade na contratação de notório especializado

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24 de fevereiro de 2022, 8h00

No dia 22 de abril de 2021, tive a oportunidade de publicar nesta coluna um texto ("The Walking Dead na Administração Pública: temporada final") [1] em que sustentei que a Lei 14.133/21 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), a exemplo da Lei 13.303/16 (Estatuto Jurídico das Empresas Estatais), tinha eliminado do contexto das contratações diretas de notórios especializados, via da inexigibilidade de licitação, o requisito da singularidade do objeto, porquanto o vocábulo "serviço de caráter singular" (que consta do artigo 25, II da Lei 8.666/93) simplesmente não havia sido reproduzido na disciplina do artigo 74, III, da Lei 14.133/21.

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A posição contraditava a opinião de juristas de nomeada que se dedicaram ao estudo do tema, tanto na Lei 13.303/16 [2] quanto na Lei 14.133/21 [3], assim como manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, que possui disposição semelhante (artigo 30, II) [4].

A discussão chegou recentemente ao Superior Tribunal de Justiça, que pela primeira vez, ainda que em âmbito criminal, debateu o tema, notadamente no julgamento do AgRg no HC 669.347/SP (relator ministro Jesuíno Rissato — desembargador convocado do TJ-DFT , relator p/acórdão ministro João Otávio de Noronha, 5ª Turma, julgado em 13/12/2021, DJe 14/0/2022), concluindo que "conforme disposto no artigo 74, III, da Lei nº 14.133/2021 e no artigo 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado" [5].

A fundamentação do voto vencedor do acórdão, da lavra do ministro João Otávio de Noronha, expõe que "com o advento da Lei nº 14.133/2021, nos termos do artigo 74, III, o requisito da singularidade do serviço advocatício deixou de ser previsto em lei, passando a ser exigida a demonstração da notória especialização e a natureza intelectual do trabalho. Essa interpretação, aliás, é reforçada pela inclusão do artigo 3º-A do Estatuto da Advocacia pela Lei nº 14.039/2020, segundo o qual 'os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei'. Desse modo, considerando que o serviço de advocacia é por natureza intelectual e singular, uma vez demonstrada a notória especialização e a necessidade do ente público, será possível a contratação direta" [6].

É interessante notar que o relator do caso versado, o ministro João Otávio Noronha, foi também relator, no passado, de dois acórdãos da 2ª Turma do STJ (nos anos de 2005 e 2008) que tratavam dos requisitos para a contratação direta prevista no artigo 25, II, da Lei 8.666/93, entre eles o da natureza singular dos serviços [7]. Tais acórdãos podem ser considerados leading cases a propósito do assunto, porquanto reproduzidos como fundamento em grande parte dos julgados posteriores [8].

Com efeito, no julgamento do REsp 436.869/SP (relator ministro João Otávio de Noronha, 2ª Turma, julgado em 6/12/2005, DJ 01/02/2006, p. 477) o tribunal considerou que "os serviços descritos no artigo 13 da Lei nº 8.666/93, para que sejam contratados sem licitação, devem ter natureza singular e ser prestados por profissional notoriamente especializado, cuja escolha está adstrita à discricionariedade administrativa", de igual modo, o REsp 488.842/SP (relator ministro João Otávio de Noronha, relator p/acórdão ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 17/4/2008, DJe 05/12/2008), onde está registrado que "a contratação dos serviços descritos no artigo 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização".

Como se vê, a nova decisão do STJ revisita a própria jurisprudência da corte acerca dos requisitos inerentes à contratação direta de notórios especializados pela Administração Pública, em respeito à opção feita pelo legislador democrático. Nesse sentido, uma vez presente e justificada a necessidade administrativa subjacente [9] (que deve ser avaliada em juízo de proporcionalidade [10], considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor  artigo 22 da LINDB) e o preço [11], a notoriedade do contratado é o fator distintivo que suportará a legitimidade da contratação.

Carlos Maximiliano diria que "a lei não contém palavras inúteis" [12]… O silêncio deliberado do legislador não se acredita possa ser interpretado com a tela mais famosa de Edvard Munch.

 


[1] FERRAZ, Luciano. The Walking Dead na Administração Pública: temporada final. https://www.conjur.com.br/2021-abr-22/interesse-publico-the-walking-dead-administracao-publica-temporada-final.

[2] Ver, por todos, GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 83.

[3] Ver, por todos, NIEBHUR, Joel. Polêmica da singularidade como condição para a inexigibilidade de licitação. Disponível em https://zenite.blog.br/a-polemica-da-singularidade-como-condicao-para-a-inexigibilidade-de-licitacao-que-visa-a-contratacao-de-servico-tecnico-especializado-de-natureza-predominantemente-intelectual/. Acesso em 21-02-22.

[4] TCU — Acórdão 2761/2020 Plenário, Representação, relator ministro Raimundo Carreiro, Boletim de Jurisprudência 332/2020.

[5] O Acordão da 5ª Câmara do STJ está assim ementado: "AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL. ARTIGO 89 DA LEI Nº 8.666/1993. AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. REQUISITO DE SINGULARIDADE DO SERVIÇO SUPRIMIDO PELA LEI Nº 14.133/2021. CARÁTER INTELECTUAL DO TRABALHO ADVOCATÍCIO. PARECER JURÍDICO FAVORÁVEL. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DE EFETIVO PREJUÍZO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1) A consumação do crime descrito no artigo 89 da Lei nº 8.666/1993, agora disposto no artigo 337-E do CP (Lei nº 14.133/2021), exige a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário, bem como efetivo prejuízo aos cofres públicos. 2) O crime previsto no artigo 89 da Lei nº 8.666/1993 é norma penal em branco, cujo preceito primário depende da complementação e integração das normas que dispõem sobre hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitações, agora previstas na nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021). 3) Dado o princípio da tipicidade estrita, se o objeto a ser contratado estiver entre as hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, não há falar em crime, por atipicidade da conduta. 4) Conforme disposto no artigo 74, III, da Lei nº 14.133/2021 e no artigo 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado. 5) A mera existência de corpo jurídico próprio, por si só, não inviabiliza a contratação de advogado externo para a prestação de serviço específico para o ente público 6) Ausentes o dolo específico e o efetivo prejuízo aos cofres públicos, impõe-se a absolvição do paciente da prática prevista no artigo 89 da Lei nº 8.666/1993.7. Agravo regimental desprovido" (AgRg no HC 669.347/SP, relator ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), relator p/ Acórdão ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, julgado em 13/12/2021, DJe 14/02/2022).

[6] A alusão no julgamento do STJ acerca da necessidade da Administração parece corroborar o nosso entendimento no sentido de que: "com efeito, é a necessidade administrativa a ser satisfeita com a contratação, e sua ambientação em termos de resposta eficiente da Administração, que justifica a busca de um profissional diferenciado no mercado para executar o contrato. A necessidade é o motivo da contratação. O serviço é o objeto da contratação. Motivo e objeto não se misturam na teoria dos atos administrativos". (FERRAZ, Luciano. The Walking Dead na Administração Pública: temporada final. https://www.conjur.com.br/2021-abr-22/interesse-publico-the-walking-dead-administracao-publica-temporada-final).

[7] Bem de ver que a compreensão conceitual dos serviços de caráter singular poucas vezes restou debatida no âmbito do STJ, notadamente porque considerada afeita às instâncias ordinárias. Sem embargo disso, no julgamento do REsp 1192332/RS, relator ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 19/12/2013, o Tribunal decidiu que "a singularidade dos serviços prestados pelo advogado consiste em seus conhecimentos individuais, estando ligada à sua capacitação profissional, sendo, dessa forma, inviável escolher o melhor profissional, para prestar serviço de natureza intelectual, por meio de licitação, pois tal mensuração não se funda em critérios objetivos (como o menor preço) […] Diante da natureza intelectual e singular dos serviços de assessoria jurídica, fincados, principalmente, na relação de confiança, é lícito ao administrador, desde que movido pelo interesse público, utilizar da discricionariedade, que lhe foi conferida pela lei, para a escolha do melhor profissional".

[8] Ver a menção, por exemplo, no REsp 1505356 / MG; no REsp 1444874 / MG; no REsp 1377703 / GO;

[9] Ver sobre o tema, FERRAZ, Luciano. Porque a singularidade é o Wolverine da nova lei de licitações. https://www.conjur.com.br/2021-jun-03/interesse-publico-singularidade-wolverine-lei-licitacoes.Acesso em 22-02-22.

[10] MOTTA, Fabrício. A nova lei de contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-03/interesse-publico-lei-contratacao-direta-servicos-advocacia-inexigibilidade-licitacao. Acesso em 22-02-22.

[11] Ver artigo 72, VII da Lei 14.133/21. Confira-se também a Orientação Normativa da 17 da Advocacia Geral da União (AGU), alterada pela Portaria AGU nº 572/2011: "a razoabilidade do valor das contratações decorrentes de inexigibilidade de licitação poderá ser aferida por meio da comparação da proposta apresentada com os preços praticados pela futura contratada junto a outros entes públicos e/ou privados, ou outros meios igualmente idôneos".

[12] Fabrício Motta escreveu que: "é muito pouco lógico concluir, como pretendem alguns, que a edição de uma lei nova, em tema de tamanha controvérsia, seja a representação de um 'nada jurídico', deixando as 'coisas' no mesmo lugar" (MOTTA, Fabrício. A nova lei de contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação. https://www.conjur.com.br/2020-set-03/interesse-publico-lei-contratacao-direta-servicos-advocacia-inexigibilidade-licitacao).

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