Opinião

Locação para temporada, Airbnb e o STJ

Autor

  • é sócio do escritório PMMF Advogados doutor mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) professor convidado de Direito Empresarial nos cursos de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador jurídico do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim).

    Ver todos os posts

24 de fevereiro de 2022, 7h14

Muito se tem discutido acerca dos contratos de locação celebrados por intermédio da plataforma Airbnb, o que tem ensejado conflitos dos mais diversos entre locador, locatários e os condomínios nos quais localizados os imóveis locados, fato esse que já permitiu a análise do tema pelo Superior Tribunal de Justiça.

E recentemente o STJ tratou do tema entendendo pela possibilidade de a convenção condominial (com aprovação de pelo menos dois terços) proibir o que ali se denominou de locação de "curtíssimo prazo" [1].

Os fundamentos do STJ foram os seguintes: 1) essa locação implica "afetação do sossego, da salubridade e da segurança, causada pela alta rotatividade de pessoas estranhas e sem compromisso duradouro com a comunidade na qual estão temporariamente inseridas"; 2) "a alta rotatividade de pessoas estranhas, em espaço de tempo cada vez menor (…) repercute na vida dos demais condôminos"; 3) o "direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel (…) deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio"; 4) "o direito de propriedade, assegurado constitucionalmente, não é só de quem explora economicamente o seu imóvel, mas sobretudo daquele que faz dele a sua moradia"; 5) "nos condomínios que oferecem diversas opções de lazer (…) por vezes confundidos com clubes recreativos, a própria demanda por espaços de uso comum é diretamente afetada"; e 6) "embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil".

Do quanto acima fica para nós a convicção de que o STJ voltou seus olhos unicamente para o tema da segurança dos demais condôminos, tendo ainda analisado o tema da comodidade e conforto, tudo isso com o objetivo de justificar a proibição, em convenção ou regulamento condominial, do aluguel de "curtíssima temporada".

O entendimento em questão concluiu que o aluguel de "curtíssima temporada" é o vilão maior e causador de insegurança e desconforto, e tanto é assim que no acórdão foi colacionada matéria jornalística que trata de um lamentável caso que, por ser episódico, não poderia, jamais, refletir a realidade dos milhões de contratos de aluguel de "curtíssima temporada" viabilizados também por intermédio do Airbnb.

E foi com base nessas premissas que entendeu o STJ que o direito constitucional da propriedade detida pelo locador poderia ser restringido no bojo das convenções e regulamentos condominiais, o que nos parece, contudo, equivocado, conforme apontaremos a seguir.

Em primeiro lugar, destacamos que a legislação aplicável não distingue locação para temporada e aquilo que o STJ definiu como "locação de curtíssima prazo", razão pela qual essa tentativa de criar duas subespécies de locação para temporada não se deveria admitir e não poderia servir de subsídio para enfrentamento da questão.

Portanto, o que o STJ tenta identificar como locação de "curtíssimo prazo" nada mais é do que a locação para temporada prevista no artigo 48 da Lei 8245 de 1991 (Lei de Locação). 

Veja-se, nesse sentido, que o artigo 48 da Lei de Locação prevê que a locação com prazo não superior a 90 dias é "locação para temporada", não fazendo distinção se o prazo é de dias, semanas ou meses. Não sendo superior a 90 dias, a locação é para temporada.

Ou seja, não se pode tratar de maneira diferente os contratos denominados "de curtíssimo prazo" em razão daqueles outros de prazo "não tão curto": se forem celebrados com menos de 90 dias hão de ser considerados locação para temporada.

Ao que parece, o que se pretendeu foi tentar criar diferenças que juridicamente não existem, e tudo isso com o objetivo de discriminar os contratos de locação para temporada regularmente intermediados por plataformas tais como o Airbnb, o que, como visto até aqui, não se pode admitir.

Em sendo os contratos de temporada disciplinados pelo artigo 48 da Lei de Locação, nota-se também que, ao contrário do que o acórdão do STJ expôs em suas razões, não é possível distinguir-se o conceito de moradia em razão do prazo da locação e, em se tratando de aluguel para temporada, o imóvel locado se destina, por presunção legal, para moradia, conforme redação do dito artigo 48.

Desse modo, igualmente não pode prosperar o entendimento no sentido de que o direito de moradia dos demais condôminos deveria prevalecer, posto que os locatários "de curtíssima temporada" são, também eles, titulares do mesmo direito de moradia, que igualmente deverá ser tutelado e protegido.

Feitos esses esclarecemos iniciais, importante ainda trazer à lume que as hipóteses que o artigo 48 da Lei de Locação traz causa da locação para temporada são meramente exemplificativas: o uso do imóvel locado pode ter como causa quaisquer "fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo".

Sendo assim, nos parece que o acórdão aqui analisado enseja inconstitucional tratamento desigual em desfavor dos locadores e locatários de imóveis para temporada, eis que trata situações idênticas de maneira distinta, o que não se pode admitir, sob pena de afronta ao caput do artigo 5º da Constituição Federal (CF).

Desse modo, todo e qualquer locatário para temporada (que é a hipótese dos contratos intermediados pelo Airbnb), que utiliza o imóvel para fins lícitos, deverá ser considerado morador e não pode ser visto como intruso ou indivíduo indesejado e causador de toda sorte de problemas. Todavia, pelo que pudemos identificar mais acima, foi justamente essa uma das premissas do acórdão aqui discutido: tomou-se por presunção quase absoluta que o locatário para temporada (de prazo "curtíssimo") seria causador de insegurança, balbúrdia e incômodos sem precedentes, o que revela uma leitura, no nosso sentir, equivocada.

Por tal razão, a conclusão de que a permanência de locatários "de curto prazo" nas dependências do condomínio seria perniciosa aos demais moradores, além de contra legem, releva um preocupante preconceito e tratamento diferenciado a pessoas que se encontram no mesmo patamar de proteção legal.

Como se não bastasse impedir aos locatários que tenham acesso à moradia inerente à locação para temporada (o que é permitido às demais espécies de locação e aos proprietários), além de caracterizar nova afronta ao caput do artigo 5º da CF, releva grave afronta ao caput do artigo 6º também da CF, que alçou o direito à moradia a direito social que deve ser garantido pelo poder público.

Cremos ainda ser equivocado tratar a locação de "curtíssimo prazo" como a grande causa das mazelas que acometem condomínios e condôminos, tendo em vista que os inúmeros problemas de convívio e de segurança inerentes à vida em condomínio são conhecidos recorrentes há décadas. Ou seja, a locação de "curtíssimo prazo" não é a causa desses problemas, que por óbvio não surgiram com a sua recente popularização.

Além do mais, necessário destacar que os contratos de locação residencial por prazo superior a 90 dias não são vistos como causadores dos mesmos problemas ora atribuídos unicamente à locação por temporada, mesmo sendo plenamente possível a esses outros contratos ensejar grande circulação de pessoas em razão dos visitantes recebidos pelo locatário, ou então em virtude de suas recorrentes rescisões antecipadas.

E se todos os contratos de locação têm capacidade de ensejar idênticas preocupações aos condomínios, por qual razão apenas o locatário para temporada é visto como indesejado? As respostas, ao que nos parece, revelam uma tendência discriminatória em relação a este último, que está a receber tratamento ilegalmente diferenciado, que o coloca em posição de injusta desvantagem, o que não se pode admitir.

O mesmo se observa em relação ao locador: temos firme que vedar o contrato de locação para temporada, admitindo-se, por outro lado, a celebração das outras espécies de locação, se afigura ilegal limitação ao constitucional direito de propriedade, o que também revelaria mais uma injusta e ilegal forma de tratamento diferenciado, mas dessa vez em prejuízo do locador.

Se ambas as espécies de locação têm aptidão de causar os mesmos problemas que se tenta atribuir unicamente à locação para temporada, não se justifica a vedação de uma, ao mesmo tempo que se admite a outra. A conclusão é uma só: se na essência são o mesmo negócio e têm aptidão de ensejar aos mesmos problemas, não se pode admitir o tratamento diferenciado.

Não obstante, não se pode vedar os contratos de "curtíssimo prazo" sob o argumento de ausência de clara definição doutrinária: não havendo proibição legal, toda atividade, em tese, há de ser permitida.

Por tudo quanto visto até aqui, percebe-se que a vedação ao contrato de locação para temporada não se justifica e que as questões relacionadas à segurança e bem-estar dos demais condôminos não podem servir de fundamento para tal, o que nos parece equivocado e contrário à isonomia e ao direito social à moradia.

É inequívoco que a maior profusão dos contratos para temporada traz diversos e novos desafios aos condomínios, que, ao invés de dar de ombros para mais esse avanço social, deveriam é se adequar a essa nova realidade, tendo-se sempre em mente os benefícios que esse "novo negócio" traz para todos os envolvidos, inclusive para o próprio condomínio, que reduziria sua vacância e inadimplemento da taxa condominial, por exemplo.

De outra banda, se a questão toda diz respeito à segurança e bem-estar dos demais condôminos, não se pode admitir a restrição à locação de "curto prazo" sob a justificativa de buscar soluções para antigos problemas que não causados por essa espécie de locação, que poderiam ser solucionados com o implemento de controles mais rígidos de segurança e mais efetiva fiscalização do uso das áreas comuns. Com isso, os condomínios não incorreriam nas ilegalidades aqui apontadas, permitiriam o livre exercício do direito de propriedade por parte dos locadores, propiciariam maior geração de riqueza e menor vacância, além de garantirem o acesso à moradia por aqueles que dela necessitam por menor prazo.

Não se pode permitir que impere um estado de negação que cerra os olhos ao novo e enseja respostas refratárias às novidades que transformam o a sociedade. O receio do novo não pode impedir o avanço social e econômico e não pode permitir o tratamento diferenciado daqueles que se encontram em situação de igualdade.

[1] STJ — Recurso Especial 1.884.483 — PR (2020/0174039-6)  julgado em 23 de novembro de 2021.

Autores

  • é sócio do escritório PMMF Advogados, doutor, mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), professor convidado de Direito Empresarial nos cursos de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador jurídico do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!