Opinião

Lei de socorro ao turismo e eventos só é aplicável às relações de consumo

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23 de fevereiro de 2022, 15h06

Antes de adentrar ao âmago do tema em questão, cabe introduzirmos que, em decorrência da pandemia da Covid-19, a grande consequência negativa para o ramo de turismo e eventos, por óbvio, foi o cancelamento em massa de viagens e eventos, por uma situação de ordem de saúde e sanitária alheia à vontade das partes envolvidas.

Se por um lado os usuários de tais serviços se viam obrigados a fazer os cancelamentos, seja por medo de contaminação ou, muitas vezes, até mesmo por fechamento de fronteiras e restrições aos eventos, as empresas do ramo, por sua vez, enfrentariam a falta de receitas e possibilidade de devoluções financeiras que poderiam levar-lhes à falência em massa.

Para solucionar esse problema de forma a não prejudicar nem os consumidores e nem os fornecedores de serviços de turismo e eventos, no início da pandemia foi editada a Medida Provisória 948, de 9 de abril de 2020, convertida na Lei 14.046, de 24 de agosto de 2020, na qual se prevê as seguintes hipóteses para estes casos: 1) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; 2) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; 3) outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

O crédito poderia ser utilizado pelo consumidor no prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, ou seja, 12 meses à partir do dia 31 de dezembro de 2020, enquanto a remarcação dos serviços deverá obedecer critérios de sazonalidade e os valores dos serviços originalmente contratados. Com a continuidade da pandemia, o prazo de 12 meses fora postergado para até o fim de 2022 (31 de dezembro de 2022), através da Medida Provisória 1.036, que atualizou Lei 14.046.

Pois bem, a discussão que se faz aqui inicialmente presente é no sentido da amplitude da aplicação das medidas legais de socorro ao turismo e eventos, e nos parece bastante claro que esta aplicação se limita às relações de consumo, logo, quando considerado o agente econômico do ramo do turismo e eventos como fornecedor de serviços à luz do Código de Defesa do Consumidor, lidando, na outra ponta, com destinatário final do serviço, que é o consumidor.

E foi nesse sentido que se manifestou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), em discussão sobre a aplicabilidade da mencionada lei de socorro ao turismo, numa relação que não era de consumo. Sendo assim, mais ao final, este texto também tem como escopo "separar o joio do trigo", ao tentar distinguir o que é uma relação de consumo, do que não é.

Com efeito, precisamente o TJ-SP se manifestou pela inaplicabilidade da Lei 14.046 em relação que envolveu uma empresa fornecedora de produtos, como contratante, com outra empresa, contratada, esta última fornecedora de serviços de feiras e eventos.

Em decorrência do cancelamento de uma feira contratada de responsabilidade da fornecedora de serviços de feiras e eventos, por conta da pandemia, a empresa tentava a aplicação da lei de socorro ao turismo, com objetivo de não ter que reembolsar as quantias que recebeu pelo evento que não se realizou, e, sim, disponibilizar o valor como crédito para uma futura realização de evento.

Todavia, firme na não aplicabilidade da Lei de Socorro ao Turismo e Eventos em relações que não sejam de consumo, a tese da empresa de eventos foi afastada pelo juízo de primeiro grau, com a confirmação da 21ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP em julgamento de recurso de apelação nos autos do Processo nº 1005392-70.2020.8.26.0011, com a consequente condenação da empresa contratada na devolução dos valores pagos à contratante, diante do evento não realizado, com a aplicação regular do Direito comum, em especial o Código Civil ao caso (e não o Código de Defesa do Consumidor).

Logo, como consequência indireta, entendeu-se que na relação jurídica entre empresas aqui trazida para discussão não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, e esta é mais uma lição importante que se pretende tirar do contexto analisado dos fatos, já que o estatuto consumerista não pode ser aplicado indistintamente na relação entre empresas.

Assim, importa esclarecer que, para que a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) seja aplicada, necessária se faz a constituição de uma relação de consumo que só se configura como tal se estiverem presentes os requisitos indicados nos artigos 2º e 3º do referido diploma legal, abaixo transcritos:

"Artigo 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Artigo 3º
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços".

Nota-se, assim, que para caracterização de uma relação de consumo depende-se, basicamente, da presença necessária do binômio fornecedor/consumidor, bem como do objeto, qual seja: fornecimento de produto ou prestação de serviço.

Para que se vislumbre uma relação de consumo, não basta existir fornecedor de um lado se não há consumidor do outro, entendidos os conceitos de fornecedor, consumidor e relação de consumo nos exatos moldes traçados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Uma das características mais salientes, e que faz distinguir uma relação de consumo de uma relação comercial disciplinada pelo Direito comum, é o conceito de consumidor previsto no caput do artigo 2º acima mencionado. O consumidor é aquele que necessariamente adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Destinatário final, por sua vez, é aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço para consumo próprio, sem que haja o repasse do produto ou da prestação de serviço para outrem, o que faz descaracterizar daquele a condição de destinatário final. É o que ocorre na relação comercial existente entre as empresas do precedente citado, na medida em que se apresenta a figura do fornecedor, mas não há consumidor.

O conceito de consumidor adotado pela Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria, e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. Por essas razões, depreende-se que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, visto não existir relação de consumo, no caso da relação jurídica travada entre as empresas mencionadas e os fatos que envolveram a sua disputa judicial. E muito bem decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que não se aplica a Lei 14.046 às relações jurídicas regidas pelo Direito Civil, e não pelo Código de Defesa do Consumidor.

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