Consultor Jurídico

Sociedade digital de crédito e responsabilidade civil

23 de fevereiro de 2022, 8h00

Por Claudia Lima Marques, Fernando Rodrigues Martins

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A entrada em vigor da Lei 14.181/21 teve por escopo não apenas inserir no mundo jurídico o instituto do crédito responsável, bem como a prevenção e o tratamento ao superendividamento, mas essencialmente atualizar o Código de Defesa do Consumidor. Como há muito alerta a doutrina europeia [1], a mudança das modalidades de comercialização ao consumidor do crédito (agora a distância pela internet) e de pagamento (PIX, moedas eletrônicas, cartões de crédito digitais etc.), além da popularização do investimento (em bolsa, moedas digitais e crownfunding) exige atuação legislativa [2].

Cabe reiterar que o CDC, a despeito do marco trintenário de vigência e da imprescindível contribuição aos vulneráveis e ao sistema jurídico (em especial ao Direito Privado), necessitava de adequação temática, justamente no tema do crédito ao consumidor e prevenção do superendividamento (agora atualizado pela Lei 14.181/21) e no que se refere à sociedade digital (o PL 3514/15, aprovado por unanimidade no Senado Federal, ainda está na Câmara para exame).

O processo de atualização do CDC, mesmo que tenha até agora mantido a metodologia do CDC e resguardados os dispositivos outrora consagrados na jurisprudência e dogmática nacional, não estará completo se não incluir regras sobre a boa-fé qualificada (princípios conhecidos como "lealdade-equidade-competência-diligência" [3]; "informação-esclarecimento" [4]; "transparência-confirmação-conservação" [5]; "know your customer" [6] e "best execution rule" [7]) nos serviços financeiros à distância e digitais, principalmente os intermediários e os agentes (bancários ou não) que prestam serviços aos consumidores.

Evidente que as causas subjacentes da readequação normativa do CDC derivam em grande parte das transformações constantes, imediatas e profundas provocadas pela sociedade de mercado, por sua vez, caracterizada em tempos contemporâneos por modelo em permanente construção: ininterrupto, disruptivo e amalgamado entre economia, tecnologia e inovação.

A economia voltada precipuamente ao crédito (nas funções de investimento, estímulo à produção e, mais recentemente, à subsistência de núcleos familiares). A tecnologia pelas ferramentas eletrônicas colocadas à disposição geral (bens digitais, internet das coisas, inteligência artificial etc.). E a inovação pela aceleração dos padrões globais (criação de novos mercados, redução do tamanho do mundo e expansão do tamanho do "eu") [8]. Daí dizê-la "sociedade digital de mercado" ou, especificamente para este texto, "sociedade digital de crédito".

Não sem sentido, portanto, a aguda percepção de que a gestão do sistema econômico é realizada isoladamente pelo mercado, desencadeando inúmeras consequências para a organização comunitária e para o Estado, cada vez mais fraco em seu poder regulador e normativo. Em outras palavras: "Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico" [9].

À vista disso, pode-se dizer que a sociedade digital de crédito atua em diversos planos: 1) comunicacional, conectando digitalmente pessoas e promovendo a expansão do ambiente de negócios, através do princípio da autonomia privada (negocial e contratual); 2) institucional, na medida em que correlaciona interessados fragmentários funcionais com formação de vastas redes de fornecedores; 3) procedimental, mediante a utilização de institutos e recursos sobre os quais tem controle exclusivo (contratos, dados, crédito, técnica, ciência etc.); 4) gerencial, com incisivas verticalizações sobre espaços públicos e privados influenciando, monitorando ou coordenando as tomadas de decisões. O Estado, a todos os olhos, é refém dessa sociedade.

Sob tais circunstâncias, a Lei 14.181/21, atualizando a promoção do consumidor, introduz princípios e regras jurídicas de observação vinculada por parte dos fornecedores, perfazendo três tipos de tutelas. A primeira, ex ante, preventiva e acautelatória, cujo escopo principal é evitar [10] o superendividamento do consumidor e indiretamente colaborar na direção da economia nacional. A segunda, ex post, restauradora e reconstituinte, voltada à repactuação dos débitos do consumidor, tratando globalmente as dívidas para permitir o "direito ao recomeço" [11]. A terceira, ex supra, potencializando a garantia e defesa do mínimo existencial, bem como os núcleos de diversos núcleos de direitos fundamentais, na órbita da concretude infraconstitucional [12].

Ainda, teleologicamente, estabeleceu políticas de consumo que visam à manutenção e à reinclusão do consumidor no mercado financeiro (CDC, artigo 6º, inciso X, esclarece o objetivo de "prevenção e tratamento do superendividamento" como forma de evitar a exclusão social do consumidor). E, preambularmente, considerou o crédito responsável, a educação financeira, a prevenção e tratamento ao superendividamento, assim como a preservação do mínimo existencial como novos "direitos básicos" (CDC, artigo 6º, incisos XI e XII), ampliando os espaços da responsabilidade civil.  

Direitos assim qualificados não são meros direitos subjetivos afinados com a faculdade ou permissibilidade. Representam direitos prevalentes com nítido caráter de indisponibilidade, tendo em vista algumas razões [13]: a origem supranacional para a respectiva internalização (no caso do crédito responsável e do superendividamento é a Resolução ONU 70/186 de 2015 que se ocupa da proteção financeira do consumidor); a perfilhação como direito da personalidade; a ordem pública que fundamenta a lei protetiva; e a imprescindível ligação com o fundamento da dignidade humana.

Na atualização do CDC futura, o PL 3514,2015 ainda aprofunda esses direitos básicos do artigo 6º do CDC e inclui na lista: "XI – a privacidade e a segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, por qualquer meio, inclusive o eletrônico, assim como o acesso gratuito do consumidor a estes e a suas fontes; XII – a liberdade de escolha, em especial frente a novas tecnologias e redes de dados, vedada qualquer forma de discriminação e assédio de consumo" [14]. Mister reintroduzir, como está na LGPD, o direito de autodeterminação (que constava do PL 281/12 oriundo da comissão de juristas) e um direito especial frente aos serviços financeiros digitais: "XI- a proteção contra erros e fraudes na contratação à distância, contra atuação desleal dos intermediários e contra as instruções dadas pelo consumidor, em especial nos serviços à distância e digitais de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária".

Os direitos básicos também se aplicados como "direitos objetivos", modal "dever-ser", importam em "deveres". São deveres que repercutem a todos no respeito à dignidade alheia [15]. Por isso, o fornecedor de crédito no exercício da atividade, independentemente da faculdade do consumidor, quando não observa os novos direitos básicos acima declinados pela recente legislação em vigor, imediatamente, já comete ilícito. E, nesse ponto, a despeito do ilícito já guardar ampla possibilidade de cessação ou remoção pelo sistema jurídico (CPC, artigo 497, parágrafo único), a simples repercussão da conduta sobre o interesse jurídico do consumidor (dano) guardará a necessária responsabilização nos termos do artigo 14 do CDC.  

Assim, as violações dos deveres correspectivos aos mencionados direitos básicos são passíveis de indenização [16]. Imagine o fornecedor de crédito que não atua preventivamente para evitar o superendividamento de vulnerável em situação concreta. Ou mesmo aquele outro que se nega ao tratamento de situação de superendividamento sem justificativas perante o Poder Judiciário ou Núcleos de Atendimento ao Superendividado (NAS).

Também seria de fácil percepção a violação pelo fornecedor na hipótese em que despreza as boas práticas quanto aos empréstimos fragilizando a "educação financeira" ou colocando o consumidor desprotegido ou em séria situação de abalo quanto ao mínimo existencial.

Por sua vez, o "crédito responsável" tem conceituação sistêmica e não dispositiva como o superendividamento (CDC, artigo 54-A). O crédito é considerado responsável quando atende às seguintes exigências: 1) contém as informações específicas que o identificam, quantificam e caracterizam (artigo 54-B); 2) não ofende as vedações legais respeitantes à oferta (artigo 54-C); 3) embute no fornecedor os riscos de avaliação prévia quanto ao empréstimo (artigo 54-D).

Não passa despercebido que o parágrafo único do artigo 54-D do CDC atribui expressamente "indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor" quando não observados, pelos fornecedores, deveres relacionados à informação específica do crédito, riscos e vedações, sem prejuízo de outras sanções, inclusive levando-se em consideração a gravidade da conduta. Nesta última hipótese, reforça a possibilidade de eventual redução equitativa em esfera própria de atuação da responsabilidade objetivo pelo risco da atividade, que é usual nesse nicho.

Percebe-se, por isso e também para efetividade e concretude da Lei 14.181/21, que a responsabilidade civil nas hipóteses citadas opera não apenas nas funções compensatória e reparatória. Há verdadeiro "estímulo pedagógico" aos fornecedores, estabelecendo a exigência de deveres que são essenciais à eticidade e solidariedade quanto ao instituto do crédito e suas (potenciais e vitais) externalidades, assim encerradas como "função social do crédito". O PL 3514/15 também traz importantes regras neste sentido e deveria ser aprovado em breve pelo Parlamento.

Com a atualização do CDC, a responsabilidade civil [17] se adequa, repagina e evolui para servir aos vulneráveis e hipervulneráveis atendendo os objetivos elencados na legalidade constitucional, mesmo porque permeada de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que permitem o (re)ingresso de direitos e valores fundamentais (v.b., como o mínimo existencial e o combate à exclusão social) para proteger os consumidores brasileiros frente à evolução tecnológica da "sociedade digital de crédito", em que vivemos.

 


[1] CAMPENS, Fabrice. Services financiers de détail et protection des consommateurs: l´approche Communautaire, in Revue Européenne de Droit de la Consommation, vol. 3/2003, pp. 169-195.

[2] Assim CAMPENS, ibi idem, p. 190 e seg.

[3] PATOUL, Frédéric de. Le consommateur et les services financiers en Belgique, Revue Européenne de Droit de la Consommation, vol. 3/2003, pp. 196-213, p. 207 esclarece que o intermediário dos serviços financeiros deve agir de forma leal e com equidade, com competência e diligência para atender os melhores interesses do cliente e manter a integridade do mercado financeiro.

[4] Não basta apenas informação, em especial cumprir com as informações obrigatórias por lei, como as dos artigos 54-B e 54-D, mas também esclarecer e não ocultar ou induzir em erro o consumidor, o ‘esclarecendo’ dos riscos e consequências do crédito e de seu inadimplemento, como está no artigo 54-C e 54-G do CDC. Veja MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Artigo 54-B a artigo 54-G, in MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7 ed., São Paulo: Ed. RT, 2021, p. 1265-1299.

[5] No mundo digital e principalmente no crédito e serviços financeiros, além da transparência dos serviços (artigo 4° do CDC) e proteção de dados, necessitamos que haja constituição das ordens dadas pelo consumidor pelos intermediários, confirmação destas e sua conservação no tempo, veja MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços simbióticos" do consumo digital e o PL 3514,2015, in MARQUES, Claudia Lima; LORENZETI, Ricardo L.; CARVALHO, Diógenes; MIRAGEM, Bruno. Contratos de serviços em tempos digitais. São Paulo. Ed. RT/Thonson Reuters, 2021, p.411 e seg.

[6] O dever de conhecer seu cliente/consumidor para identificar suas necessidades, especificidades (idade, analfabetismo, deficiência visual, auditiva etc.) é hoje uma realidade não só da concorrência, mas da defesa do consumidor, assim PATOUL, Frédéric de. Le consommateur et les services financiers en Belgique, Revue Européenne de Droit de la Consommation, vol. 3/2003, pp. 196-213, p. 207-208.

[7] Especialmente no mundo digital ou à distância a atuação do intermediário deve incluir uma boa-fé na execução das ordens do mandante/consumidor, o dever é de tratar e executar as ordens conforme os melhores interesse do consumidor e conforme as instruções específicas de forma a conseguir o melhor resultado possível e com a conduta ética de forma a evitar conflito de interesses, assim PATOUL, Frédéric de. Le consommateur et les services financiers en Belgique, Revue Européenne de Droit de la Consommation, vol. 3/2003, pp. 196-213, p. 211-212.

[8] DUNKER, Christian. In: Prefácio. O sujeito na era digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história. GOLBERG, Leonardo; AKIMOTO, Claudio. Org. São Paulo: Edições 70, 2021, p. 10.

[9] POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrabel. 2. ed.- Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 77.

[10] MARTINS, Fernando Rodrigues. Comentários ao Código Civil: Direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 92.

[11] Lima, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[12] BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existencial; casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 73.

[13] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 283.

[14] Texto acessível in COMISSÃO DIRETORA (camara.leg.br) (12.02.2022).

[15] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito da personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 51.

[16] Confira as II Jornadas de Pesquisa CDEA. Enunciado 3: Os novos direitos básicos inseridos no artigo 6º pela Lei 14.181/21 no Código de Defesa do Consumidor são direitos prevalentes fixando deveres correspondentes aos fornecedores.

[17] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.089. Mesmo que além da dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual vale rememorar a frase: "se excluo a responsabilidade contratual de um parceiro, retiro de sua obrigação contratual uma força, uma parte intrínseca, sua sombra, como diria Larenz. Crio uma obrigação pela metade, um leão sem dentes, um objeto sem sombras possível".