Tribuna da Defensoria

Vazio defensorial: patologia fruto do estado de coisas inconstitucional orçamentário

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22 de fevereiro de 2022, 11h15

Desde a redação original da Constituição Federal de 1988, as Defensorias Públicas são o corpo profissional estatal (modelo do salaried staff) voltado a ser, como salienta GIUDICELLI (2018, p. 76-81), espaço de acolhimento coletivo estatal dos necessitados e vulnerabilizados, sendo que a atuação institucional não se reduz jamais à mera democratização do direito à busca pela proteção jurisdicional. Assim, as Emendas Constitucionais 45/2004, 69/2012, 74/2013 e 80/2014 não conformaram novidades quanto à qualidade das Defensorias Públicas de serem verdadeira materialização do direito fundamental do artigo 5º, LXXIV, da CF/1988, tendo apenas tais reformas constitucionais incrementado a nível constitucional o instrumental já existente e conferido a tríplice autonomia (administrativa, orçamentária e técnica) necessária para minorar práticas orçamentárias de retrocesso quanto aos direitos fundamentais

Especificamente quanto ao assinalado pelo artigo 98, caput e §1º, do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, faltando apenas quatro meses para encerrar-se o prazo delineado neste dispositivo do ADCT, o número de Defensoras e Defensores Públicos cresceu apenas de 5.054 em 2013, para 6.235 em 2020 após oito anos, segundo dados dos 1º e 2º Mapas da Defensoria Pública feito pela Anadep e Ipea.

Em que pese o crescimento de pouco mais de 19% do quantitativo de membros nas Defensorias Públicas no Brasil, a amplitude de atuação defensorial após a Lei Complementar Federal 132 e o fortalecimento de sua atuação coletiva estratégica denotam que o provimento de cargos de órgãos de execução defensoriais ainda está muito aquém do que determinam critérios para adequado acesso ao serviço público essencial de realização do direito fundamental à assistência jurídica gratuita e integral (artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988).

Assim, apesar dos esforços administrativos feitos pelas Defensorias Públicas para realizar suas múltiplas funções, mesmo com pouco ou quase nenhum quadro próprio de servidores e, inclusive, com investimentos maciços em caras tecnologias de informação, o compromisso do Estado Brasileiro com a realização do modelo público de acesso à assistência jurídica integral não se expressa da mesma forma quando se compara com os vultuosos orçamentos nas outras instituições simétricas do Sistema de Justiça consoante artigo 134, §§2º e 4º, da CF/1988.

Os anuários dos Ministérios Públicos disponibilizados pelo CNMP, por exemplo, apenas analisando o quantitativo de membros de carreira (sem considerar, portanto, o quadro de servidores próprios e os subsídios pagos além da estrutura de mobiliário) evidenciam que, no mesmo período fixado pela EC 80/2014, o número de promotoras e promotores de Justiça (sem considerar os membros do Ministério Público Federal) saiu de 10.426 para 10.549, o que significa um crescimento de mesmo com a redução de atribuições diante do artigo 178 do CPC e do aumento de soluções extrajudiciais que não demandam atuação de órgãos de execução ministeriais.

Por sua vez, conforme dados do CNJ, a assimetria de quantitativo de membros nas Defensorias Públicas é ainda mais gritante quando se considera que o número de magistradas e magistrados variou, em 2014, de 17.558 membros para, em 2020, 17.988. A majoração de Juízes togados ocorre ainda que tenha ampliado significativamente o uso da arbitragem e da mediação e conciliação.

A comparação fica ainda mais assustadora quando, para além do quadro deficitário de Defensoras e Defensores Públicos (défict de 41% em relação ao número de Promotoras e Promotores de Justiça e de 66% para o de Juízas e Juízes), verifica-se os orçamentos das Defensorias Públicas em relação às demais instituições do Sistema de Justiça:

A análise comparativa entre a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Poder Judiciário revela o desequilíbrio entre o quadro financeiro das instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro. Para o orçamento de 2021, os valores destinados à Defensoria Pública serão 313,0% menores que o orçamento do Ministério Público e 1.575,4% menores que o orçamento do Poder Judiciário [1].

A problemática do subfinanciamento das Defensorias Públicas [2] reside na sua qualidade de realização material da dignidade cidadã, seja via acesso a orientações jurídicas, a educação em direitos e a soluções afinadas com a realização da "justiça" para além do acesso ao Judiciário, seja via busca da proteção da tutela jurisdicional. Ora, apenas comparando com os Ministérios Públicos, que não são expressão material de nenhum direito fundamental expresso (apenas por via reflexa), existe 300% mais orçamento e 41% mais órgãos de execução. Em seguida, quando se faz a análise tomando como base o Poder Judiciário, que efetivamente realiza materialmente direito fundamental expresso no art. 5º da CF/1988 (proteção jurisdicional), verifica-se 1.500% mais disponibilidade financeira e 66% mais membros. Conclui-se, assim, à luz do que já fora decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas [3], que há verdadeiro estado de coisas inconstitucional orçamentário nas Defensorias Públicas no Brasil.

Este subfinanciamento defensorial tem impacto direto na própria atratividade para permanência na carreira, uma vez que a remuneração é muito aquém, em sua média, àquelas pagas aos membros das duas instituições do Sistema de Justiça acima apresentadas, o que se soma ao pouco mobiliário e estrutura física, além do baixo ou nenhum quantitativo de servidores (próprios, cedidos ou disponibilizados) nas Defensorias Públicas. Exige-se, então, que o Estado-Defensor seja verdadeiro órgão de execução "Hércules" (já que com pouco ou nenhum apoio) e que seja munido de um sentimento de sarcerdócio profissional.

Assim, um fácil raciocínio lógico permite concluir que os impactos do estado de coisas inconstitucional orçamentário do Estado-Defensor confluem para o fenômeno do vazio defensorial, levando, inclusive, a concluir pela negativa de eficácia da própria Constituição Federal e de suas cláusulas pétreas, como se verá a seguir.

Tendo em mente que as Defensorias Públicas, nos termos do artigo 134, caput, da CF/1988, não só materializam a assistência jurídica integral e gratuita, mas também são "expressão e instrumento do regime democrático" e atuam na "promoção dos direitos humanos", o vazio defensorial é, por isso, verdadeira patologia constitucional fruto da negativa de eficácia imediata ao direito fundamental de assistência jurídica integral aos vulnerabilizados e, por conseguinte, à própria dignidade humana.

Isto porquê, por ser expressão do reconhecimento estatal da visibilidade do vulnerabilizado e da sua condição de pessoa dotada de dignidade humana, a Defensoria Pública é o compromisso político estatal em prol da própria realização material do Estado Democrático de Direito idealizado na Constituição Federal de 1988. Desse modo, o Estado-Defensor é, em si, um direito fundamental na qualidade de metagarantia, além de, como instrumento fundamental, atuar pela realização de direitos fundamentais, como diz SOUSA (2010, p. 167):

"Assim como o sistema processual, caracteriza-se a Defensoria Publica pela meta de atuar dinamicamente o ordenamento juridico-constitutional, a este conferindo efetividade. Em outras palavras, a Defensoria, tanto quanto o processo, é um verdadeiro instrumento da Constituição, notadamente de alguns valores fundamentais da nossa ordem juridica, como a dignidade humana, a igualdade substancial e o acesso a justiça. […]".

Ora, os direitos fundamentais expressam os valores elencados pelo constituinte originário como essenciais à convivência social, estabilidade institucional e promoção da ordem democrática. Em outras palavras, direitos fundamentais são aqueles considerados básicos para qualquer ser humano, sem qualquer tipo de discriminação. São direitos que compõem um núcleo intangível submetidos a uma determinada ordem jurídica. Não por acaso os direitos fundamentais gozam da proteção especial das cláusulas pétreas (artigo 60, §4º, da CF).

Mais do que uma imposição semântica, os direitos fundamentais são elevados à categoria de direitos de aplicação imediata e incondicional, conforme expressamente delineado pelo §1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Por tal razão, nos termos da jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal de impossibilidade de opor a reserva do possível orçamentária ao mínimo existencial consubstanciado nos direitos fundamentais, qualquer escolha orçamentária que injustificadamente não tenha como foco primordial a realização de direitos e garantias fundamentais é fatal e inconclusivamente passível de correção, inclusive judicial, por ser desrespeitosa à negativa de eficácia imediata do mínimo existencial.

Assim, até mesmo o último orçamento total do Estado-Defensor no Brasil de pouco menos de 0,3% é escolha orçamentária que impede a eficácia de direitos fundamentais e que diretamente inobserva a dignidade da pessoa humana (expresso no artigo 1º, III, da CF/1988) e, por conseguinte, também o próprio Estado Democrático de Direito, que é realizado com a garantia de acesso igualitário a direitos fundamentais para fins de uma ordem jurídica justa dentro do conceito de Justiça emancipatória apresentado por Amartya Sen.

Desse modo, nos termos do decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Ruano Torres [4], não só há violação aos direitos fundamentais, mas também o estado de coisas inconstitucional orçamentário do Estado-Defensor no Brasil tem verdadeira qualidade jurídica de violação grave de direitos humanos.

Não à toa, desde o ano de 2011 [5], também a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos  OEA vem reiteradamente emitindo resoluções para exortar os países interamericanos a fortalecer as Defensorias Públicas internas.

Causa ainda maior estranheza o estado de coisas inconstitucional orçamentário do Estado-Defensor no Brasil dentro do contexto atual que conjuga maior empobrecimento da população nos últimos 100 anos e, ainda, pauperização das políticas públicas diante da vigência de teto de gastos públicos (sem destaque para os voltados aos direitos fundamentais) e de reformas que afetam direitos irretrocessíveis e protegidos sob o manto das cláusulas pétreas.

Assim, como o público destinatário das atribuições dos órgãos de execução defensorias corresponde a cerca de 79% da população nacional, com exponencial crescimento e crônica possibilidade de litigiosidade coletiva diante do empobrecimento e do enfraquecimento das políticas públicas (notadamente as sociais), o aumento de apenas 19% é muito aquém do cumprimento da obrigação constitucionalmente assumida desde 1988 de realização pelo Estado do direito fundamental (e, portanto, de aplicação imediata, frise-se) de assistência jurídica gratuita e integral.

A realidade apresentada em números no decorrer deste artigo, notadamente no comparativo com as instituições simétricas constitucionalmente, denota, por conseguinte, que o estado de coisas inconstitucional orçamentário do Estado-Defensor no Brasil é patologia constitucional criada pela NÃO obediência às balizas de Estado dignificador delineado pelos constituintes de 1988.

Escudar-se em argumentos de reserva orçamentária não justificáveis diante da qualidade jurídica de direito fundamental das Defensorias Públicas é se negar a cumprir a obrigação constitucional criada em 1988 de desconstrução do processo de "subcidadanização" dos vulnerabilizados. Não por outra razão, GIUDICELLI (2018, p. 148) diz que "[…] não é exagero afirmar que a Defensoria Pública hodiernamente assume a função de casa da cidadania".      

Portanto, a criação de condições adequadas para instalação e desenvolvimento da instituição defensorial no Brasil, combatendo o vazio defensorial e reduzindo a patologia constitucional do estado de coisas inconstitucional orçamentário do Estado-Defensor no Brasil, é tributária da possibilidade de emancipação cidadã dos vulnerabilizados. É aqui que entra a pergunta retórica certa feita pela ministra do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia: "a quem interessa enfraquecer a Defensoria Pública?".

O respeito à autonomia da atuação defensorial em âmbito coletivo, judicialmente ou extrajudicialmente (via educação em direitos, por exemplo), e o seu crescimento (ampliação de recursos humanos e materiais via maior orçamento) significam muito mais que fortalecimento da Defensoria Pública enquanto instituição de Estado, mas, em verdade, são expressão de fortalecimento do próprio modelo constitucional de democracia jurídica voltado à dignidade humana [6].

 


[5] Fala-se aqui da Resolução 2656/2011, da Resolução 2821/2014 e da Resolução 2928/2018, além de Resoluções aprovadas na 50ª Reunião em outubro de 2020 e na 51ª Reunião em novembro de 2021.

[6] Lembrar que a Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório de encerramento de trabalhos, expressamente recomendou o crescimento da Defensoria Pública como um dos pontos fundamentais para garantir um igualitário acesso à justiça e uma maior efetividade dos direitos e garantias individuais.

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