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Mariano: Sobre a retroatividade da norma sancionadora mais benéfica

22 de fevereiro de 2022, 6h34

Por Jonathan de Mello Rodrigues Mariano

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É bom de antemão afirmar que a opinião a seguir não revela a posição institucional do órgão a que é vinculado este articulista. Trata-se de visão exclusivamente pessoal. Pois bem.

Sustenta-se, de maneira geral, que, no Direito Administrativo Sancionador vige o princípio constitucional da retratoatividade da norma administrativa sancionadora mais benéfica. O raciocínio deriva da lógica de que a tal ramo deve ser aplicado o regime constitucional do Direito Penal, como é o caso da garantia fundamental do artigo 5º, inciso XL, da CRFB/1988.

Alega-se que, com a edição de norma mais benéfica, não poderia o cidadão punido ser mantido nessa circunstância mais gravosa, pois seria inseri-lo em condição mais prejudicial a de seus pares. Argumenta-se, ainda, que a tese compatibiliza-se com a necessidade de as garantias fundamentais serem interpretadas de maneira extensiva para situações correlatas. Essa lógica parece, porém, não se encaixar à pretensão do próprio constituinte, assim como violar técnica de hermenêutica constitucional.

Sob o primeiro aspecto, é necessário entender qual foi o objetivo do constituinte ao inserir a garantia fundamental do artigo 5º, inciso XL, da CRFB/1988. Utiliza-se, então, a linha norte-americana do legislative history, ainda pouco explorada no Brasil, para investigar os debates ocorridos na Subcomissão de Direitos e Garantias Fundamentais da Assembleia Constituinte de 1987-1988.

Ao analisá-los, vê-se que o objetivo foi constitucionalizar o dispositivo do Código Penal (CP) que indicava a retroatividade da lei ao abolir algum crime, assim como quando favorecesse de alguma maneira o réu (artigo 2º, caput e parágrafo único, do CP). A redação adotada pelos constituintes foi mais simples do que a prevista no artigo 2º do CP, qual seja, "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".

A primeira parte dessa garantia incorpora a teoria geral da irretroatividade da lei, que, aliás, compõe o sistema jurídico desde a CRFB/1891 (artigo 11, item 3º). A irretroatividade tem relação direta com o princípio fundamental da segurança jurídica, em específico a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, prevista no artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB/1988. Pois, através dela, busca-se promover a segurança nas relações jurídicas travadas entre particulares, entre esses e o Estado e entre entidades públicas diversas.

A exceção criada pelos constituintes  que, na verdade, é adotada no Brasil há tempos, como se percebe da CRFB/1934 (artigo 113, item 27) e da CRFB/1946 (artigo 141, §29)  circunscreve-se à lei penal. A razão parece ser simples: a liberdade é um dos valores inerentes à condição humana. Não há como manter a privação da liberdade dos cidadãos quando o Estado não deseja mais tolhê-la.

Essa pretensão de não limitar mais a liberdade acontece ao deixar de criminalizar determinada conduta, reduzir a pena aplicável e, até mesmo, prever alguma circunstância penal mais favorável. Em todos os casos, a norma penal deve retroagir para desconstituir total ou parcialmente a situação jurídica.

A pretensão dos constituintes foi, desse modo, permitir tão somente a retroatividade legal mais benéfica na esfera penal. Nada obstante, poder-se-ia sustentar que a conclusão nessa direção para impedir a extensão da garantia fundamental da retroatividade da lei mais benéfica a outras hipóteses derivaria apenas de uma interpretação originalista da Constituição, o que violaria a técnica da máxima efetividade das normas constitucionais.

Sucede que o impedimento para a adoção da tese vai além de vontade constitucional originária, pois, ao adotá-la, deseja-se dar emprego apenas à máxima efetividade em prejuízo aos princípios da unidade e da concordância prática componentes também da hermenêutica constitucional, que exigem uma visão sistêmica e harmônica dos dispositivos constitucionais. Explica-se melhor.

Como visto, a primeira parte do artigo 5º, inciso XL, da CRFB/1988 incorpora a teoria da irretroatividade da norma jurídica derivada do princípio da segurança jurídica, em especial do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB/1988).

Essa última garantia fundamental somente pode ser excepcionada por outra norma constitucional, como é o caso da retroatividade máxima da lei penal mais benéfica. A redação do artigo 5º, inciso XL, da CRFB/1988 restringe o âmbito normativo da garantia à norma penal, já que a ressalva (salvo para beneficiar o réu) se relaciona com a parte anterior (a lei penal não retroagirá).

Segundo as técnicas gerais de hermenêutica jurídica, a norma de exceção deve ser interpretada restritiva e estritivamente. A ampliação dessa norma de exceção para toda e qualquer norma sancionadora mais benéfica, como a do Direito Administrativo Sancionador, cria hipóteses não desejadas e não compatíveis com o próprio texto legal.

Trata-se de tese criadora de nova hipótese de exceção à garantia fundamental do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, que não poderia ocorrer por meio de lei e, muito menos, por interpretação, porquanto somente poderia ser excepcionada por outra norma constitucional.

A argumentação aqui posta no sentido da violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito não é abstrata. Senão veja-se. Os tipos sancionadores administrativos, no geral, culminam multas pecuniárias como penalidades. Com a aplicação da multa, surge para a Fazenda Pública o direito adquirido de constituir o crédito no valor e nas condições até então vigentes.  As receitas passam, na verdade, a integrar a estimativa orçamentária do ente público, que configura importante elemento, sobretudo, para as que dependem de arrecadação dos próprios créditos para a execução independente de suas atividades, como é o caso das agências reguladoras.

Além disso, com o término do contencioso administrativo, a penalidade (multa ou outra sanção restritiva de direitos) encontra-se definitivamente constituída, caracterizando-se como ato jurídico perfeito. Saliente-se que o fato de ser possível a discussão, perante o Poder Judiciário, sobre a existência, a validade ou a eficácia da sanção não lhe retira essa qualidade, porque, se assim o fosse, nem mesmo os contratos poderiam se qualificar como atos jurídicos perfeitos.

A tese da retroatividade da norma administrativa sancionadora mais benéfica viola, portanto, a garantia fundamental de proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, já que, com a sua admissão, admitir-se-ia a ampla da retroatividade das leis, em confronto à posição do STF de que, para a tutela do artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB/1988 não se deve admitir a retroatividade de lei (ADCs 29 e 30, ADI 4.578 e ADI 493), nem mesmo a retroatividade média e máxima de norma constitucional (RE 161.320, RE 242.740 e RE 136.926).