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Nas mãos do Supremo, a chance de impedir a consolidação do homem de vidro

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22 de fevereiro de 2022, 8h39

Novidade para poucos, o Decreto presidencial 10.046, de 2019, dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal, instituindo o chamado "Cadastro Base do Cidadão" e o "Comitê Central de Governança de Dados". O seu escopo é estabelecer normas e diretrizes para o compartilhamento de dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e os demais Poderes da União.

ConJur
Ponto central do Decreto, o Cadastro Base do Cidadão é uma espécie de "cadastro geral nacional", que corresponde a um verdadeiro data lake (posto que a expressão data pool revelar-se-ia um tanto quanto redutiva) a ser usufruído livremente pela administração pública. Nos termos do seu art. 16, o Cadastro tem, dentre outras, as finalidades de aprimorar a gestão de políticas públicas, viabilizar a criação de meio unificado de identificação do cidadão, realizar o cruzamento de informações das bases de dados cadastrais oficiais a partir do número de inscrição do cidadão no CPF e facilitar o compartilhamento de dados cadastrais do cidadão entre os órgãos da administração pública. Trata-se, trocando em miúdos, da criação de um sofisticado sistema de controle, baseado no tratamento de dados pessoais dos cidadãos, aos quais diferentes órgãos do governo terão acesso (quase) livremente.

Nas últimas décadas, pudemos observar a expansão dos sistemas de vigilância, sobretudo os baseados em dados pessoais, tanto em nome da luta contra o terrorismo (a nível global) ou contra a violência urbana (se pensarmos no contexto brasileiro, por exemplo), quanto em nome da eficiência econômica (mais dados geram melhores serviços, etc.), tanto no âmbito privado quanto público. O ponto é que essa expansão, por ter como pressuposto a coleta massiva de dados pessoais, torna concreta a metáfora do "homem de vidro" (tradução literal da expressão alemã Gläserner Mensch)i, o cidadão sempre visível para os detentores do poder político e econômico, e que seria, na realidade, "o verdadeiro cidadão desse novo mundo"ii. Nas palavras de Stefano Rodotà, a imagem do homem de vidro é "uma imagem que, não por acaso, provém diretamente do tempo do nazismo e que propõe uma forma de organização social profundamente alterada, uma espécie de transformação irrefreável da 'sociedade da informação' em 'sociedade da vigilância'".

A metáfora do homem de vidro, em outras palavras, simboliza a ideia de um Estado que pode (ou quer) inteirar-se completamente da vida das pessoas, de modo que seus jurisdicionados não possuem o status de cidadãos, mas de súditosiii. As consequências desse fenômeno são "dramáticas para as pessoas e destrutivas para a democracia"iv, pois "se uma pessoa deseja preservar uma esfera mínima de privacidade e intimidade, e deseja que ninguém saiba certas informações sobre si mesma, ela se torna, segundo o Estado, 'alguém que tem algo a esconder' e automaticamente torna-se um suspeito, um 'inimigo do povo'". Tal lógica é típica dos regimes totalitários e, portanto, contrária à própria essência da democraciav.

Não é coincidência, aliás, que o termo Gläserner Mensch tenha vindo à tona durante a discussão sobre a Lei do Censo Alemã de 1982, quando Friedrich Graf v. Westphalen publicou o artigo intitulado "A caminho de nos tornarmos cidadãos transparentes? A Lei do Censo de 1982"vi. Naquele contexto histórico e cultural, os alemães viram-se assombrados pela experiência vizinha de uma "burocracia eficiente de vigília comportamental, baseada no processamento computacional de dados dos cidadãos, em nome de uma ‘Segurança do Estado’ (Staatssicherheit) cujos contornos não eram bem definidos"vii.

Quarenta anos atrás, portanto, já existia a preocupação de que a ausência de salvaguardas contra a má utilização de dados pessoais por parte do Estado poderia implicar violações a uma série de direitos, sobretudo os direitos à privacidade e à autodeterminação informativa. Segundo Westphalen, não havia garantia de que o Censo de 1982, nos moldes que Governo alemão pretendia que ocorresse, não seria apenas um meio de, através do emprego da computação, consolidar a figura do homem de vidro. Hoje, não nos parece haver quaisquer motivos para acreditar que o Decreto 10.046/19 resultará em qualquer coisa senão a total transparência do cidadão.

À época, a acertada decisão do tribunal constitucional da (então) Alemanha Ocidental, em firme reação contra o “controle indiscriminado” da vida privada por meio de uma “inteligência informacional”, cunhou o direito fundamental à autodeterminação informativa. Entendeu-se, novamente nas palavras de Westphalen, que o direito das pessoas à proteção de seus dados pessoais deve ter um valor maior que a curiosidade do Estado. Ademais, seguindo a tradição das constituições democrático-liberais do pós-guerra de vincular um regime de liberdades fundamentais dos cidadãos "a um regime organizacional de competências e atribuições, evitando a concentração de poder, a pioneira decisão pioneira já apontou para a necessidade de reconceituação da divisão de poderes na nova sociedade da informação"viii.

Isso implica que, seguindo a lógica da divisão informacional dos poderes, a finalidade de coleta e processamento de dados pessoais por parte de determinado órgão público deve circunscrever-se à estrita definição de sua competência legal, sendo vedado (via de regra) o desvio de finalidade do tratamento desses dados, ainda que dentro da própria Administração Públicaix. Spiros Simitis alerta para o perigo de que, em um contexto no qual o controle da informação se confunde com o próprio conceito de poder, a administração pública e o Estado se tornem uma "unidade informacional"x.

Nesse perspectiva, importante apontar ainda que, sob o regime do capitalismo de vigilânciaxi, as pessoas não cedem seus dados por escolha ou obrigação, mas sim por ignorância ou por causa da falta de alternativas viáveis. Nesse processo de extração de dados, o "poder instrumentário" se vale do aparato digital, que é contínuo, autônomo, onipresente, para alimentar os interesses do capitalxii, o que é tanto almejado quanto compartilhado pelos entes públicos (sobretudo aqueles com tendências totalitárias), que passam a se valer das técnicas e ferramentas desenvolvidas por corporações do ramo da tecnologia para a vigilância de seus cidadãos. Tudo isso fortalece o poder de vigilância dos Estados e corporaçõesxiii, ao mesmo tempo em que enfraquece as bases democráticas e torna exangue nossa subjetividade.

O debate que se deve travar em torno da constitucionalidade do Decreto 10.046/19 é, inclusive, mais complexo do que nos damos conta à primeira vista. Para além das patentes violações ao direito à privacidade e à autodeterminação informativa (que poderiam, aqui, ser resumidos no direito à proteção de dados, já reconhecido como um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro), outros direitos e princípios basilares do Estado Democrático de direito são afetados pelo decreto. Por exemplo, com a ânsia do Estado por todos os dados pessoais possíveis de seus cidadãos, que nada mais é que a busca por um "direito geral à verdade"xiv (qual verdade?), a própria ideia de nemo tenetur se detegere resta esvaziada. Nesse mesmo sentido, Frank Pasqualexv afirma que devemos reclamar nosso direito à presunção de inocência: pode ser que não possamos impedir a coleta de nossos dados pessoais, mas devemos ao menos tentar regular a maneira como são utilizados.

O caminho trilhado pelo governo brasileiro, via Decreto e com a criação do Cadastro Base do Cidadão, um verdadeiro data lake a ser livremente usufruído pelos órgãos da administração pública, vai na contramão da salvaguarda de garantias e direitos do regime de proteção de dados moderno. Por um lado, colocando o indivíduo como refém da obscuridade por meio da qual a burocracia estatal pode interligar uma variedade de dados pessoais coletados em diversas esferas da administração pública, em nome de uma maior eficiência para políticas públicas que não foram previamente esclarecidas. Por outro, colocando em risco a própria democracia liberal, ao ignorar, no contexto da sociedade da informação, a divisão informacional de poderes e as consequências nefastas dessa ignorância para o livre desenvolvimento dos cidadãos.

A esta altura, resta claro que a vigilância, tal qual ocorre hoje, engendra novas relações de poder, que acabam por afetar até mesmo a construção da subjetividade individual e, consequentemente, da sociedade como um todo. Frente às inovações tecnológicas, "hoje muito mais que ontem necessitamos de uma reflexão contínua sobre os valores básicos da democracia, para distinguir entre os muitos usos da tecnologia que são democraticamente admissíveis e os que não são"xvi. Somente com a regulação adequada — i.e., mais restrita — das novas tecnologias de vigilância e com o respeito à divisão informacional dos poderes será possível impedir a consolidação da metáfora do homem de vidro, que resultaria na completa perda dos direitos à privacidade e à autodeterminação informativa.

Se a metáfora do homem de vidro pôde ser invocada adequadamente quando a Alemanha, no início da década de 1980, discutia a realização de um censo populacional que culminaria na criação de uma base de dados demasiada grande para ser confiável, hoje a metáfora parece revelar-se ainda mais apropriada. Quarenta anos atrás, sequer se vislumbravam as possibilidades do big data, e, mesmo assim, a decisão do Tribunal Constitucional Alemão foi vetar a coleta massiva de dados dos cidadãos alemães, e seu posterior processamento automatizado, dado o potencial mau uso daquelas informações. Imaginemos, então, os riscos que a coleta de dados pessoais operada mediante as novas tecnologias, somada ao compartilhamento desses dados entre diferentes órgãos da administração pública, traria.

Quem chegou até este ponto deste texto certamente percebeu semelhanças entre o contexto alemão, de quarenta anos atrás, e o brasileiro, de hoje. E, assim como o Censo de 1982, o Decreto 10.046/2019 foi questionado quanto à sua constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal julgará, nesta semana, a Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) 695 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.649, ambas versando sobre o Cadastro Base do Cidadão. Vimos nascer, há quatro décadas, aquele que viria a ser um dos direitos fundamentais de maior relevância para os indivíduos. Talvez o julgamento que irá se travar por aqui não adquira tamanhas proporções, mas nem por isso será menos importante. Em uma democracia, a existência do cidadão de vidro não é aceitável, tampouco tolerável. Nas mãos do Supremo, resta a possibilidade de quebrar, de uma vez por todas, essa figura.


i A expressão Gläserner Mensch, que também pode ser traduzida como "homem transparente", remonta aos anos 1920, quando o Museu Alemão de Higiene, em Dresden, começou a utilizar modelos anatômicos feitos de plástico transparente.

ii RODOTÀ, S. A vida na sociedade da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 113.

iii RODOTÀ, S. Democracia y protección de datos. Cuadernos de Derecho Público, maio, 2011.

iv Id., ibid.

v Id., ibid.

vi Tradução livre. Ver: GRAF V. WESTPHALEN, F. Auf dem Weg zum gläsernen Bürger?: das Volkszählungsgesetz 1982. Die neue Ordnung, v. 37, n. 2, 1983.

vii CAMPOS, R.; MARANHÃO, J. A divisão informacional de Poderes e o Cadastro Base do Cidadão. JOTA Info, 18 out. 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/2cy2sf2a. Acesso em: 22 fev. 2022

viii Id., ibid.

ix O princípio da finalidade não é absoluto. Os dados pessoais recolhidos uma vez para determinados fins podem, sob certas condições, ser (posteriormente) processados para outros fins. O critério decisivo é a compatibilidade. A finalidade original e a nova finalidade não devem ser incompatíveis. (CAMPOS, MARANHÃO, op. cit.)

x SIMITS, S. Die informationelle Selbstbestimmung – Grundbedingung einer verfassungskonformen Informationsordnung. NJW, 1984, 398, p. 403.

xi ZUBOFF, S. The age of surveillance capitalism. New York: Public Affairs, 2019.

xii Id., ibid.

xiii O monitoramento e o controle ininterruptos de cada passo da vida das pessoas, realizados tanto pelo Estado quanto por entes privados, não são uma coincidência, projetos individualmente pensados e que, por acaso, possuem um fim em comum. São, na realidade, a concretização do chamado capitalismo de vigilância, causa e efeito da sociedade de vigilância.

xiv RODOTÀ, S. Il diritto alla verità. In: Il diritto di avere diritti. Bari: Laterza, 2012.

xv PASQUALE, F. The black box society. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

xvi RODOTÀ, 2013.

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