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Balanço do primeiro ano da autonomia do Banco Central na LC 179/2021

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22 de fevereiro de 2022, 8h00

Nesta quinta-feira (24/2), o regime jurídico de autonomia do Banco Central alcança seu primeiro ano de vigência. Para quem observa as finanças públicas brasileiras, trata-se da maior alteração normativa de caráter estrutural, que foi empreendida durante a pandemia no país.

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Legenda

Em 24 de fevereiro de 2021, foi promulgada a Lei Complementar 179, que "define os objetivos do Banco Central do Brasil e dispõe sobre sua autonomia e sobre a nomeação e a exoneração de seu Presidente e de seus Diretores; e altera artigo da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964".

Três foram, de fato, as nucleares finalidades da LC 179/2021, tal como se depreende da ementa acima:

1) Fixação de pluralidade de objetivos (zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego), com prevalência do objetivo fundamental de assegurar estabilidade de preços, conforme dispõe o artigo 1º da LC 179;

2) Concessão de "autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira", mediante a natureza jurídica de "autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica", com garantia de investidura a termo dos dirigentes do BC (mandato de quatro anos), na forma dos artigos 4º a 6º da LC 179/2021;

3) Redefinição da relação do BC com o Conselho Monetário Nacional, por meio da alteração da Lei 4.595/1964, sobretudo para limitar o papel estratégico do CMN à estrita atribuição de fixar as metas de política monetária, na forma do artigo 2º. Em contrapartida, foram conferidas àquela autarquia maiores competências de regulação infralegal sobre as políticas cambial, creditícia e monetária e também foram revogados diversos dispositivos que fixavam competências do CMN, à luz dos artigos 7º e 13 da citada lei complementar.

Tamanha majoração de liberdade decisória em favor do BC, porém, somente veio acompanhada de duas condicionantes:

1) Curta quarentena posterior fixada no artigo 10, III, da LC 179/2021, segundo o qual é vedado aos dirigentes do BC "participar do controle societário ou exercer qualquer atividade profissional direta ou indiretamente, com ou sem vínculo empregatício, junto a instituições do Sistema Financeiro Nacional, após o exercício do mandato, exoneração a pedido ou demissão justificada, por um período de 6 (seis) meses".

2) Dever de apresentação no Senado, em arguição pública semestral, de relatório de inflação e relatório de estabilidade financeira, para motivar as decisões tomadas no semestre anterior, tal como previsto no artigo 11 da LC 179.

Muito embora o senso comum realce particularmente o mandato fixo conferido aos dirigentes do Banco Central, a bem da verdade, a maior autonomia decorrente da LC 179/2021 reside na ampliação das suas competências normativas para regular as políticas cambial, creditícia e monetária em sede de atos infralegais.

Foi adotada uma fórmula genérica para que o Congresso delegasse a competência de editar normas sensíveis sobre finanças públicas ao Banco Central. Trata-se da seguinte locução inserida ao final dos incisos V, XII e XV do artigo 10 da Lei 4.595/1964 pelo artigo 7º da LC 179/2021: "Consoante remuneração, limites, prazos, garantias, formas de negociação e outras condições estabelecidos em regulamentação por ele editada".

É temerário conferir tanto poder regulamentar a uma instância supostamente autônoma em relação aos influxos da democracia, tamanha a sua capacidade de impactar os custos e riscos da ação governamental e, sobretudo, de arbitrar perdas e ganhos nos mercados cambial, creditício e monetário. O ônus da motivação imposto ao Banco Central é proporcionalmente pequeno em face dos riscos de captura a que a autarquia está exposta institucionalmente, sendo pragmaticamente cosméticas as condicionantes acima mencionadas de uma quarentena posterior de seis meses e dos relatórios semestrais a serem apresentados ao Senado.

Vale notar que outro considerável movimento de expansão de poder normativo do BC ocorreu recentemente na Lei 14.286, de 29 de dezembro de 2021, a qual, segundo seu artigo 1º, "dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no País e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil, para fins de compilação de estatísticas macroeconômicas oficiais".

Na nova lei cambial houve mais de 30 remissões à regulamentação posterior pelo BC em temas extremamente sensíveis, como a possibilidade de manter contas em moeda estrangeira no Brasil. O risco é de que sejam ampliadas as oportunidades para ataques especulativos contra a nossa moeda (o real) e, por conseguinte, seja majorada a volatilidade cambial que tanto impacta a economia do país, em tendência de dolarização socialmente onerosa e tragicamente irreversível como a ocorrida na Argentina.

Como bem avalia José Paulo Kupfer, o novo marco cambial brasileiro traz mais riscos do que benefícios:

"Por enquanto, são apenas teóricos os riscos de que, numa crise, no mercado interno, os reais sejam jogados ao mar e ocorra uma corrida para os dólares, com as catastróficas consequências imagináveis. Tudo vai depender do BC (Banco Central), encarregado no novo texto legal de administrar o ritmo da liberalização dos fluxos de capitais.
Mas, também nesse aspecto, há riscos, uma vez que o texto legal transfere do CMN (Conselho Monetário Nacional) para o BC o poder de ditar, como e quando quiser, as regras e a marcha de sua implantação. Bem ou mal, o CMN tem em sua composição e na presidência representantes do governante de turno eleito pelo voto popular, o que não é o caso dos dirigentes do BC, agora independente.
(…) O projeto de lei aprovado abriu caminho para uma liberalização sem filtros dos fluxos de capitais, que vai na contramão da moderação nesse campo hoje recomendada mundo afora. Mesmo nas crises inflacionárias e cambiais mais agudas e intensas, essa moderação permitiu à economia brasileira escapar da dolarização. Agora, pelo menos nas possibilidades legais, houve uma radicalização liberalizante fora do tempo. Tudo considerado, os benefícios do novo marco legal do câmbio parecem bem menores do que os riscos".

É importante destacar o quanto o Banco Central impacta a vida de todas as pessoas físicas ou jurídicas no país. A definição da taxa básica de juros para gerir as expectativas acerca da inflação, por exemplo, tem ampla aptidão de majorar rápida e abruptamente o endividamento público. Em 2022, a repercussão fiscal da recente escalada dos juros para a dívida pública tende a superar o montante de todos os créditos extraordinários abertos pela União e efetivamente pagos [1] no período de 2020 a 2022 para fazer face à pandemia da Covid-19. Conforme avaliado pela agência de risco Moody's, "as despesas com juros fecharão o ano entre R$ 600 bilhões e R$ 700 bilhões, em torno de 7% do PIB, maior nível em sete anos. Em 2021, essas despesas ficaram em R$ 449 bilhões, o equivalente a 5,2% do PIB, segundo dados do Banco Central".

A escolha sobre a intensidade e a velocidade na escalada recente dos juros tem sido alvo de várias críticas, entre as quais cabe destacar, em especial, a de André Lara Resende:

"Tem-se consciência de que a política de juros precisa ser coordenada com a política fiscal, sob pena de ser inócua ou mesmo contraproducente. A alta dos juros agrava o desequilíbrio fiscal, como reconhece a própria macro convencional, é distributivamente regressiva e pode elevar as expectativas de inflação, como sustenta a conjectura Neo-Fisheriana. (…) há razões para crer que a alta dos juros, independentemente do efeito sobre as expectativas, eleve também a própria inflação.
(…) É preciso um novo arcabouço teórico que reconheça o que, há décadas, se sabe na prática: a taxa de juros é uma variável de política do banco central. É uma variável de política pública com implicações que transcendem as reconhecidas pela macroeconomia convencional.
(…) A verdadeira responsabilidade fiscal e monetária consiste em assegurar que a contabilidade financeira da economia seja pautada pelos valores, no sentido de crenças e princípios, da sociedade. A contabilidade financeira deve procurar recompensar a produtividade e promover o bem estar coletivo.
(…) A combinação de hipertrofia financeira, concentração de riqueza e persistência de uma parcela expressiva da população abaixo da linha de pobreza, mesmo nos países mais avançados, deixa claro que há algo errado na gestão das economias capitalistas contemporâneas. A opção por restringir a ação do Estado, obrigando-o a se financiar integralmente através de receitas tributárias, enquanto a expansão do crédito para o setor financeiro ficar irrestrita, é muito provavelmente a principal razão deste estado das coisas.
Por um lado, a restrição indiscriminada ao poder financeiro do Estado limita a sua capacidade de criar poder aquisitivo para explorar as potencialidades da sociedade através do investimento em áreas críticas, como educação, saúde, infraestrutura, pesquisa e tecnologia e o meio ambiente. Por outro lado, completa delegação da expansão do crédito para o sistema bancário provoca ciclos recorrentes de euforias, inflação de ativos e crises financeiras que obrigam a intervenção do Estado como emprestador de última instância. A intervenção do Estado termina por ratificar a inflação dos ativos financeiros criada pela expansão do crédito bancário às custas da expansão da dívida pública. O liberalismo econômico acusa então o aumento do passivo do Estado de ser a razão da crise e reforça a camisa de força ideológica da necessidade de restringir o seu poder financeiro. É imperativo romper a camisa de força ideológica da macroeconomia convencional para poder repensar e superar as distorções do capitalismo financeiro que ameaça a sua própria sobrevivência".

A pergunta que fica, em face dos consideráveis custos e riscos decorrentes da autonomia do BC, é se a dívida pública brasileira poderia ser afetada e, assim, expandida — ilimitadamente — em decorrência das ações dessa autarquia nas políticas monetária, cambial e creditícia. O argumento de que se trata de âmbito de absoluta discricionariedade técnica não é suficiente, nem adequado para responder à pergunta sobre se a autoridade monetária pode — sem confronto com qualquer limite, baliza ou necessidade de fonte de custeio — gerar despesas financeiras e, assim, implicar avanço continuado e irrestrito da dívida pública.

É preciso que lhe sejam impostos maiores ônus argumentativos em relação à sustentabilidade da capacidade de financiamento estatal e à transparência das suas ações, para evitar conflito de interesses entre a autoridade monetária e o mercado financeiro por ela regulado.

Selene Nunes [2] considera que "um banco central independente poderia transformar-se num quarto poder, em virtude da sua atuação histórica em operações de natureza quase-fiscal, com o agravante de que não teria suporte ou aprovação da sociedade". Segundo tal autora, a demanda por maior autonomia (já que juridicamente é impossível falar-se em "independência") do Banco Central é marcada pela noção equivocada de que essa autarquia tudo poderia fazer — mesmo sob o custo do avanço ilimitado da dívida pública — em nome da gestão da política monetária e da sua "discricionariedade técnica", porque caberia "à política fiscal todo o ônus do ajuste" [3].

A perda de transparência, a redução da capacidade governamental de intervir nas políticas monetária, cambial e creditícia, a submissão da política fiscal à monetária e a impossibilidade do debate sobre alternativas são fortes indícios de que a credibilidade que se busca alcançar com a autonomia do BC não é critério referido à sociabilidade democrática, mas apenas aos mercados financeiros.

Do ponto de vista jurídico, fato é que, na ausência de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União, na falta de previsão na LDO de meta vinculante de resultado nominal e montante da dívida pública, e diante da possibilidade de o BC ilimitadamente lançar os custos de sua atuação sobre a política fiscal, efetivamente todo o orçamento federal tem restado submetido — de forma desarrazoada — à instável e "discricionária" definição das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia.

Essa tensão tem gerado, por maior que seja o ajuste fiscal obtido com a contenção de despesas primárias pelo teto dado pela Emenda 95/2016, profundo agravamento da dívida pública e, consequentemente, irresponsabilidade fiscal que asfixia, no médio prazo, a capacidade estatal de promover políticas públicas. O Boletim nº 8 do Ipea de Políticas Sociais-Análise e Acompanhamento [4] assim descreve o histórico conflito distributivo na nossa seara orçamentário-financeira:

"No Brasil, os direitos sociais e culturais estão em segundo plano, e o Estado não os garante plenamente. As questões sociais, como a violência, a fome, a miséria, o desemprego, a escola e os serviços de saúde de qualidade, cedem lugar às prioridades do ajuste fiscal. (…) Mesmo na presença da melhor das intenções e dos diagnósticos mais precisos, os esforços de reforma apresentam-se como o trabalho de Sísifo diante da ausência de recursos e das prioridades das políticas econômicas".

Constitucionalmente não é razoável que a dívida pública avance de forma ilimitada contra os direitos e garantias fundamentais, sob o fundamento de que as políticas monetária, cambial e creditícia devem ser mantidas nos moldes atuais, ou seja, sem qualquer questionamento pelos demais poderes da República. A autonomia do BC e sua discricionariedade técnica são poderes atrelados a deveres inscritos na própria norma que lhe atribuiu competência para cumprir todos os objetivos arrolados pelo artigo 1º da LC 179/2021.

Todavia, neste primeiro ano de autonomia formal percebemos o quão pouco discursiva tem sido a gestão da dívida pública e, notadamente, o quão opacos são os impactos da atuação do Banco Central. Eis um tema sobre o qual precisamos nos debruçar em busca de uma compreensão sistêmica e mais equitativa das finanças públicas brasileiras.

 


[1] Cujo painel de monitoramento mantido pelo Tesouro Nacional é o seguinte: https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-monitoramentos-dos-gastos-com-covid-19.

[2] NUNES, Selene Peres Peres. Relacionamento entre tesouro nacional e banco central: aspectos da coordenação entre as políticas fiscal e monetária no Brasil. 1999. 159f. Dissertação (Mestrado em Economia) — Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, 1999, p. 35.

[3] NUNES, 1999, p. 146.

[4] POLÍTICAS SOCIAIS: ACOMPANHAMENTO E ANÁLISE. Rio de Janeiro: Ipea, nº 8, fev. 2004, p. 67. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps_08.pdf.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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