Breves considerações sobre as tragédias na região serrana e o caso de Petrópolis
22 de fevereiro de 2022, 16h11
Mais uma vez, infelizmente, vemos nos noticiários imagens tristes. Vidas perdidas, perdas materiais, prejuízos para a economia. Novamente, o cenário da tragédia é a região serrana do Rio de Janeiro, desta vez, a cidade de Petrópolis.
No momento em que finalizo este artigo, temos na cidade de Pedro mais de 176 mortos, mais de cem desaparecidos e 967 pessoas sem abrigo [1] [2]. E a previsão para os próximos dias é de mais chuva. Mas toda essa dor, todo esse horror, isso tudo pode ser atribuído apenas as fortes chuvas?
Não parece que seja o caso. Primeiramente, nem as chuvas podem ser consideradas totalmente naturais. Estamos vivenciando fenômenos meteorológicos com um plus trazido pelas mudanças que nós, humanos, impomos ao Planeta Terra.
Se Giddens já nos alertava no final do século passado para o fim da natureza [3], querendo expressar que não existe mais aquilo que chamamos de natural enquanto intocado ou sem influência humana, hoje podemos considerar seriamente a possibilidade de uma nova era, chamada de antropoceno. Os locais mais recônditos do planeta (zonas transfronteiriças e o fundo dos oceanos, apenas para citar dois exemplos) acumulam resíduos plásticos e de outros tipos produzidos pela nossa civilização. As mudanças no clima e a perda acelerada da nossa biodiversidade também ilustram essa nova fase do planeta [4].
Dessa forma, processos climáticos, segundo o consenso da maior parte da comunidade científica, sofrem impactos das emissões antrópicas de gases de efeito estufa. Uma das consequências disso é a intensificação dos chamados extremos climáticos (secas prolongadas, chuvas acima da média concentradas em curtos períodos são os exemplos que nos interessam aqui) [5]. Isso quer dizer que tais eventos extremos tendem a ser cada vez mais intensos e recorrentes.
Feitas essas considerações iniciais, cabe esclarecer que tragédias como as da região serrana do Rio de Janeiro (1981, 1987, 1988, 2001, 2003, 2009, 2011, 2022…) ganham proporções letais desnecessárias não somente em função de chuvas torrenciais. Concorre para isso de forma significativa a total falência do poder público em regular o uso do solo e implementar as normas ambientais (vide os artigos 23, 30 e 225 da Constituição).
Desde o revogado Código Florestal de 1965 [6], margens de rios, encostas muito íngremes e topos de morros são considerados áreas de preservação permanente (APPs), cujo regime ordinário é o de área não passível de ser suprimida ou receber intervenções, independentemente de estar ou não coberta por vegetação nativa. E desde 1979 a Lei de Parcelamento do Solo trazia disposições que buscavam evitar situações de risco [7].
O Código Florestal Atual (Lei 12.651/2012) foi aprovado após um ano e alguns meses da tragédia da região serrana de 2011 (pouco considerada no debate legislativo). E o que tivemos foi o enfraquecimento do instituto das APPs, tanto no regime ordinário quanto no famigerado regime temporário, este último voltado para as áreas consideradas consolidadas.
Com alguns poucos ajustes constitucionais, a lei foi em sua grande parte validada no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, julgadas juntamente com a ADC 42. Desde então, o desmatamento na Amazônia Legal voltou a crescer de forma assustadora. Mesmo recentemente, passando o mundo por uma crise sanitária em razão da Sars-Covid-19, que implicou na diminuição da atividade econômica mundial, o desmatamento não arrefeceu.
Por outro lado, a Política Nacional de Defesa Civil (Lei 12.608/2012), que surge pouco após a tragédia de 2011, atenta aos desastres "naturais", trouxe alguns avanços importantes. Do ponto de vista do ordenamento urbano, a Lei 12.608 realizou uma série de atualizações no estatuto da cidade [8].
Por exemplo, o plano diretor passou a ser obrigatório também no caso de cidades inseridas no cadastro nacional para aquelas que possuem "áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos" [9].
Nesses casos, além do conteúdo mínimo, esse importante instrumento passa a incluir outros, tais como: o mapeamento de áreas de risco, considerando as razões do cadastro supracitado; ações preventivas e realocação de pessoas; drenagem urbana preventiva ou mitigadora dos riscos de desastre [10]. Por fim, destacamos que fora inserida como função do ordenamento territorial evitar "a exposição da população a riscos de desastres" [11].
Recentemente, pouco antes da mais recente tragédia, dessa vez em Petrópolis, na mesma região serrana, houve nova mudança no panorama legislativo. Em dezembro de 2021, foi editada a Lei nº 14.285, produzindo alterações na atual legislação florestal [12].
Além de trazer um novo conceito de área urbana consolidada (artigo 3º, inciso XXVI), o citado diploma criou a possibilidade de municípios, ouvidos o Conselho Municipal de Meio Ambiente, estabelecerem limites distintos (metragens menores) para as APPs de cursos d'água, desde que observados alguns requisitos, com destaque para "a não ocupação de áreas com risco de desastres". Também foi alterada a já aludida Lei do Parcelo Urbano, de 1979, com vistas a prever essa possiblidade [13].
Ocorre que, salvo pontuais exceções, a simples diminuição das APPs nas áreas que margeiam os rios possibilitará a ocupação desses espaços. Considerando os debates técnicos feitos quando da edição do Código Florestal atual, a simples ocupação dessas "novas áreas" constitui um risco para populações, em especial para as pessoas com baixa renda, cuja casa é construída sem projeto de engenharia ou mecanismos de drenagem [14].
Para os que enxergam nisso um "preciosismo ambientalista", vale recordar os estragos que cheias de rios e córregos geram todos os anos em todo o pais, destruindo o patrimônio daqueles que possuem morada ou negócios dentro dos limites do que deveria ser uma APP, uma área não edificável pelas suas próprias características. Seria essa pouca atenção devida ao fato de estarmos tratando, na grande maioria dos casos, de pessoas pobres?
Ainda, sobre essas ultimas alterações na legislação florestal, cabe dizer ser, em tese, juridicamente possível, por exemplo, considerar como área consolidada em APP urbana um terreno ocupado que não possua nem drenagem, nem tampouco coleta de lixo, desde que possua dois dos demais serviços listados no artigo 3º, inciso XXVI, da Lei 12.651, em sua redação atual: esgotamento sanitário, abastecimento de água e fornecimento de energia.
Isso poderia acontecer, por exemplo, numa encosta íngreme ou no terço superior de um morro, monte ou montanha. E essas áreas consolidadas podem ser objeto de projetos de regularização, nos termos do artigo 64 do mesmo diploma normativo. É bem verdade que o artigo exige do projeto de regularização fundiária contenha estudo técnico contemplando "a não ocupação das áreas de risco". Por outro lado, a mesma lei prevê a possibilidade de se caracterizar como de interesse social a intervenção em APP ou a supressão de vegetação nessas áreas nos casos de "regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda" [15]. O que pode parecer positivo, estimular a regularização fundiária, poderia ser visto, à luz de tantas tragédias, como um incentivo perverso.
Conforme aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) em 2011, algumas das principais causas para tragédias desse tipo com um alto número de perdas de vidas humanas são: a falta de um sistema de drenagem de águas pluviais e as utilização dos cursos d'água para o escoamento dessas águas e dos esgotos, o assoreamento dos rios cujos leitos comportam menos volume de água, a impermeabilização excessiva do solo, a retificação e canalização de cursos d'água, a ocupação de áreas especialmente vulneráveis (exemplos: APPs de topo de morro, encostas íngremes e faixas marginais de cursos d’água). Os mapeamentos e estudos feitos à época demonstraram que parte considerável das áreas atingidas envolviam espaços de APPs não respeitados, ocupados de forma irregular por populações de baixa renda. E foi essa camada da sociedade que mais sofreu com os impactos da tragédia como, por exemplo, impactos diretos nas residências [16].
É preciso implementar, de fato, de forma efetiva, a legislação ambiental/urbanística, de forma a prevenir que chuvas acima da média se transformem frequentemente em tragédias com dezenas ou centenas de vidas perdidas, dezenas ou centenas de desaparecidos e centenas de pessoas desabrigadas. Para isso, além de termos um orçamento suficiente para essas atividades de prevenção, devem os municípios, com apoio dos demais entes federados se preciso, efetivar políticas habitacionais capazes de retirar pessoas de áreas de risco e garantir que os espaços considerados como APPs estejam, de fato, desocupados e com vegetação nativa que ajuda a regular o fluxo hidrológico.
Do contrário, continuaremos a naturalizar a perda de vidas e os prejuízos concentrados naquelas camadas da sociedade que pouca opção têm diante da dura e arriscada realidade. Quantas tragédias mais precisaremos para perceber e realizar o óbvio? Eis a pergunta inquietante que permanece nas nuvens….
[1] Informações disponíveis em https://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2022/02/19/chuva-em-petropolis-quinto-dia-de-buscas-por-vitimas-da-tragedia-deve-ser-chuvoso-na-serra.ghtml. Acesso em 20/2/2022.
[2] Informações disponíveis em https://g1.globo.com/globonews/conexao-globonews/video/tragedia-em-petropolis-tem-176-mortos-buscas-entram-no-setimo-dia-10320872.ghtml. Acesso em 21/2/2022.
[3] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unifesp, 1991.
[4] Confira-se a matéria "Antropoceno: a era do colapso ambiental". Disponível em https://cee.fiocruz.br/?q=node/1106. Acesso em 18/2/2022.
[5] Confira-se: IPCC. Mudança do Clima 2021: a base científica. Sumário para formuladores de políticas, p. 19. Versão brasileira. Disponível em https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/IPCC_mudanca2.pdf. Acesso em 20/2/2022.
[6] BRASIL. Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, artigo 2º.
[7] Idem. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979, artigo 3º.
[8] Idem. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Texto compilado disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em 20/2/2022.
[9] Idem. Ibidem, artigo 41.
[10] Idem. Ibidem, artigo 42-A.
[11] Idem. Ibidem, artigo 2º, inc. VI.
[12] Idem. Lei 14.285, de 29 de dezembro de 2021. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2021/lei-14285-29-dezembro-2021-792179-publicacaooriginal-164251-pl.html. Acesso em 20/2/2022.
[13] Idem. Ibidem.
[14] Confira-se AVZARADEL, Pedro C. Saavedra. Novo Código Florestal: enchentes e crise hídrica no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, cap. 6.
[15] Idem. Ob. Cit., artigo 3º, IX, alínea d.
[16] AVZARADEL, Pedro C. Saavedra. Desastres "naturais" às margens dos rios e legislação florestal na sociedade de risco: uma análise da tragédia de 2011 em Teresópolis. In: Revisa Quaestio Juris, vol. 8, nº 3, Rio de Janeiro, 2015. pp. 1781-1814. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/18823/14146. Acesso em 20/2/2022.
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