O futuro é agora

Especialistas discutem os desafios de intepretação do Direito Digital

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21 de fevereiro de 2022, 12h50

"O acesso ao mundo digital é uma garantia fundamental do cidadão e um estímulo ao exercício da cidadania, pois uma pessoa sem esse acesso está alijada da sociedade." Essa premissa foi levantada pelo professor de Direito Civil da FGV-RJ José Roberto de Castro Neves para ajudar o público e os aplicadores do Direito a entender a magnitude dos desafios atuais do Direito Digital, durante o seminário "Desafios da interpretação do direito digital: debates para a IX Jornada de Direito Civil".

Divulgação/CIAPJ-FGV
No debate foram levantadas diversas questões que ainda não foram reguladas dentro do Direito Digital

Divulgação/CIAPJ-FGV

O evento é um preparativo para a edição deste ano da jornada promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), que trará pela primeira vez, nos dias 19 e 20 de maio, discussões sobre temas ligados ao direito digital. A abertura do debate foi feita pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, e pela juíza federal Caroline Tauk.

Os coordenadores da comissão de direito digital da jornada Danilo Doneda, advogado e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados e Privacidade (CNPD), e a professora Laura Schertel Mendes, da Universidade de Brasília e do IDP, foram os moderadores da discussão.

Danilo Doneda afirmou que o Direito Digital vem sendo discutido há duas décadas, mas apenas recentemente passou a ocupar grande centralidade no debate jurídico. Há diversos conceitos e institutos que precisam de refinamento conceitual, em relação aos quais a proposição de enunciados será muito relevante, destacou.

Laura Schertel disse que o campo do Direito Digital ainda não é uniforme: não há um código próprio, e sim leis esparsas; assim, diversos temas ainda não são regulados. Por isso, ela diz considerar importante que a comunidade jurídica encaminhe enunciados para discussão na IX Jornada.

Marco Civil
As primeiras exposições foram sobre os desafios de interpretação do Marco Civil da Internet. A professora da PUC-Rio e conselheira suplente do CNPD, Caitlin Mulholland, trouxe uma provocação sobre os artigos 19 e 21 do Marco Civil que tratam sobre a responsabilidade civil dos provedores de aplicações. Para ela, ainda não há uniformização sobre o tema e existem pontos controvertidos.

O primeiro deles é a classificação da responsabilidade dos provedores como objetiva ou subjetiva, diante da lacuna legal. Depois, ela destacou que um dos critérios legais para responsabilização do provedor é a necessidade de uma notificação judicial, mas que não há conceituação desse critério. Além disso, deve ser debatida a natureza solidária ou subsidiária da responsabilidade civil. Por fim, também considera importante o debate sobre a aplicação ou não do MCI aos fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor.

Segundo o professor José Roberto de Castro Neves, o Marco Civil possui uma regra específica que trata da intepretação da própria norma. O artigo 6º indica que para interpretar a lei deve se levar em consideração seus próprios princípios, fundamentos e objetivos. "Nesse sentido, a lei é muito inteligente. No artigo 2º já indica seu fundamento: a liberdade de expressão. No artigo 3º estão seus princípios. E o objetivo da lei é o acesso à internet", explicou o especialista.

LGPD
Em seguida, o debate se voltou para a interpretação da Lei Geral de Proteção de Dados. O advogado Bruno Bioni explicou que o Direito Digital deve ser trabalhado sob as lentes do direito privado, de acordo com a teoria de diálogo das fontes. Essa perspectiva pode ser interessante na discussão da autonomia privada do titular de dados, segundo o especialista. Ele usou como exemplo o fato de que, uma das bases legais da autonomia trazida pela LGPD é o consentimento, e a definição do que seria o consentimento válido pode ser extraído do Código Civil. Bioni considera que é importante construir uma dogmática da LGPD que não se dê no vácuo, mas sim dentro de um sistema.  

A advogada Patricia Peck falou sobre o início e o fim do exercício de direitos com a LGPD. Na lei brasileira não teria ficado claro se os dados pessoais só seriam protegidos no caso da pessoa viva. Além disso, pontuou a importância da harmonização entre os pedidos de apagamentos de dados e o direito à memória nos futuros enunciados propostos.

O desembargador aposentado e professor da PUC-RS, Ingo Sarlet, defendeu que deve se dar uma interpretação não taxativa ao rol de direitos do titular dos dados em face de terceiros, seja poder público ou particulares.  Esse é um âmbito de proteção aberto e existe uma lacuna sobre o direito à desindexação dos mecanismos de busca na internet, que não está previsto nesse rol da LGPD, mas tem sido reconhecido em diversos tribunais estrangeiros.

Propriedade intelectual
Por fim, os desafios de aplicação do Direito em relação à propriedade intelectual e a inteligência artificial (IA) foram os temas do último bate-papo. Para o professor da PUC-MG Dierle Nunes, há uma carência normativa sobre a vinculação do direito e a inteligência artificial, em especial ao chamado "aprendizagem de máquina". Esses modelos de IA estão sendo usado para tomada de decisão em âmbitos de grande risco, como na justiça criminal.

Assim, há necessidade de discutir a normatização dessas tecnologias. Nunes deu exemplo de um algoritmo dos EUA que ajuda juízes a analisar a periculosidade de pessoas, mas se verificou que esse algoritmo aumenta o risco de periculosidade diante de pessoas negras. Segundo ele, isso demonstra que a IA é tão boa quanto dos dados que a alimentam. A criação de enunciados preocupados com todas as etapas de desenvolvimento da tecnologia e sua regulação é relevante.

Caroline Tauk trouxe alguns exemplos de temas importantes que podem gerar propostas de enunciados. O primeiro é sobre a proteção às bases de dados utilizadas para treinamento da inteligência artificial. Em segundo lugar, questionou em que medida seria possível abrir os códigos fonte para dar transparência às tecnologias de IA. Também se perguntou em que circunstâncias os algoritmos utilizados por empresas podem ser protegidos.   

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