Consultor Jurídico

O direito de votar dos infectados pela Covid-19: o caso português

21 de fevereiro de 2022, 8h00

Por Gustavo Bohrer Paim

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Chegando a Portugal para meu pós-doutorado na Universidade de Lisboa, sob orientação dos professores Jorge Miranda e Carlos Blanco de Morais, deparei-me com a notícia de que em torno de um milhão de eleitores portugueses estavam em isolamento obrigatório em decorrência da Covid-19, representando cerca de 10% do eleitorado. Esse dado era ainda mais relevante porque naquele domingo (30/1) ocorreriam as eleições para Assembleia da República.

Quando saí do Brasil, a discussão era sobre passaporte vacinal para votar nas eleições gerais de outubro. Obviamente se tratava de mero boato, porque não se poderia exigir tal requisito para o exercício do direito fundamental de sufrágio. Pois bem, a notícia em Portugal era em sentido oposto: os eleitores em isolamento obrigatório pela Covid-19, mesmo que infectados, poderiam votar presencialmente. Mas e o direito à saúde? E o risco de contágio? E as restrições da pandemia? Será que os portugueses estavam subestimando a situação?

Essas dúvidas foram dissipadas pelo Parecer nº 1, de 18/1/2022, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que respondeu consulta formulada pela ministra da Administração Interna de Portugal, responsável pela administração das eleições.

Os questionamentos formulados eram: os eleitores que se encontrem em regime de confinamento por estarem infectados pelo coronavírus podem sair do domicílio para efeitos de exercerem o direito de voto? E na afirmativo, que condições devem observar?

As respostas foram dadas em parecer de 75 páginas, homologado em 19/1/2022, sendo aplicado às eleições para Assembleia da República. Sua análise é relevante em razão da importância do tema e das eleições brasileiras que se avizinham.

No primeiro tópico, o conselho consultivo se debruçou sobre o direito fundamental ao sufrágio, analisando sua consagração na ordem jurídica internacional e na Constituição de Portugal. Os direitos de participação política são direitos dos indivíduos enquanto cidadãos, sendo uma garantia do princípio democrático. Trata-se do direito de sufrágio em sua dimensão subjetiva, como direito de votar. Nos termos do parecer, o direito de sufrágio é considerado o mais importante de todos os direitos de participação política, visto que, por meio dele, os cidadãos escolhem os governantes e, assim, direta ou indiretamente, as coordenadas principais de política do Estado [1].

Claro que a universalidade do sufrágio não exclui a possibilidade de incapacidades eleitorais, mas cujas excepcionais restrições deveriam respeitar a necessidade, a adequação e a proporcionalidade [2].

Os direitos políticos seriam direitos fundamentais cujas normas que preveem são perceptivas, incondicionadas, não sujeitas à reserva econômica do possível [3], e por isso não dependeriam de fatores econômicos e financeiros. Sendo o direito de sufrágio um direito fundamental, o parecer opinou que os preceitos constitucionais vinculam diretamente as entidades públicas e que as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos com base na proporcionalidade.

O segundo tópico analisou o direito à saúde, também fazendo referência ao reconhecimento internacional e à Constituição, que consagrou a saúde como direito subjetivo e como objetivo programático, pressupondo obrigações de respeito, proteção e promoção. O direito à saúde implica tanto em vertente positiva, direito de prestação pelo Estado, como negativa, direito em relação ao Estado e particulares para que se abstenham de prejudicar o bem jurídico. Assim, em casos de doenças transmissíveis o direito de sufrágio pode colidir com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como a saúde.

O terceiro tópico abordou a Covid-19 e as medidas de confinamento obrigatório em Portugal. Após a autorização da Assembleia da República, o estado de emergência foi decretado pelo presidente em 18/1/2020. A partir de então se estabeleceu o confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respectivo domicílio, para os doentes com Covid-19 e os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde tivesse determinado a vigilância ativa.

Ao longo da pandemia, as resoluções do conselho de ministro alternaram entre estado de emergência, situação de calamidade e situação de contingência, sempre mantendo a determinação de confinamento obrigatório [4]. Atualmente, está em vigor a Resolução do Conselho de Ministros nº 157/2021, que declarou situação de calamidade em todo território nacional continental, mantendo-se o confinamento obrigatório.

O parecer analisou, no quarto tópico, o regime legal de exercício do direito de voto pelos eleitores em confinamento obrigatório. E destacou que, ciente da necessidade de harmonização do direito fundamental de sufrágio com as medidas de confinamento obrigatório para salvaguarda da saúde, foi aprovada a Lei Orgânica nº 3/2020, que estabeleceu um regime excepcional e temporário de exercício de direito de voto antecipado pelos eleitores que estivessem em confinamento obrigatório nos atos eleitorais de 2021.

A Lei Orgânica nº 1/2021 estabeleceu que, para o exercício do voto antecipado, o eleitor deveria estar sujeito ao confinamento obrigatório até ao oitavo dia anterior ao sufrágio e por um período que impedisse o deslocamento à assembleia de voto, e que o domicílio de confinamento teria de situar-se na área geográfica do concelho onde o eleitor se encontra inscrito no recenseamento eleitoral, normativa que foi prorrogada pela Lei Orgânica nº 4/2021 e vigorou para as eleições de 2022.

Essa norma não abarcou todos os eleitores confinados, mormente em razão do período estabelecido e do domicílio eleitoral. Permanecia a dúvida de qual seria o regime aplicável aos eleitores que não tivessem abrangidos pelo direito de voto antecipado. E o que determinava a maior relevância da questão era a previsão de que seriam centenas de milhares os eleitores que, no dia designado para a eleição dos deputados à Assembleia da República, estariam nessas condições.

Restaria a dúvida se os eleitores sujeitos ao confinamento obrigatório não abrangidos pelo direito de voto antecipado, que seriam senão todos a grande maioria dos confinados, poderiam ou não votar presencialmente. Concluiu-se que não poder votar impediria o exercício do direito de sufrágio, conduzindo a uma inconstitucional suspensão de direito. E, mesmo que se entendesse não se tratar de suspensão, mas, sim, restrição, a inconstitucionalidade subsistiria por afetar o conteúdo essencial do direito. Opinou-se, então, que os eleitores em confinamento obrigatório, que não estivessem sob o âmbito do regime de voto antecipado, poderiam votar de forma presencial no dia da eleição.

Por fim, o quinto item tratou das condições de exercício do direito de voto pelos eleitores confinados, entendendo que não poderia ser imposta privação do direito de sufrágio, mas que, em razão das contingências pandêmicas e do direito à saúde pública, o eleitor estaria submetido a restrições gerais impostas à população e a restrições especiais decorrentes da sujeição a confinamento, com exceção daquela única que se mostra indispensável para tomar parte ativa no sufrágio: a saída do domicílio pelo tempo estritamente necessário. Deveria o eleitor sair exclusivamente para exercer seu direito de sufrágio, respeitando as normas de higiene e sanitárias. E as autoridades públicas deveriam zelar pelo cumprimento.

Quanto a condições diferenciadas para o voto, o parecer referiu que a lei eleitoral regula o processo eleitoral, não se podendo determinar restrição do horário de funcionamento para determinada categoria de eleitores. No entanto, o fato de não poder determinar não impediria de a Administração recomendar, buscando diminuir o contato entre confinados e não confinados. E, a partir desse entendimento, a Administração recomendou que os eleitores em confinamento obrigatório votassem no horário compreendido entre 18h e 19h.

Buscou-se compatibilizar os direitos fundamentais em jogo. Ocorre que, ao contrário de outros direitos, o voto é exercido apenas periodicamente, pelo que a participação aberta a todos concentra-se de modo singular e irrepetível no dia da votação. Consoante o parecer, o direito de sufrágio não se prestaria a recuos significativos que redundassem na sua privação. Já o direito à saúde pública e o dever de a proteger permitiriam "uma acomodação que, apesar de não neutralizar, em absoluto, os riscos de propagação (…) seria idônea a reduzir substancialmente esses riscos".

Essa solução à portuguesa teria ambiência institucional e jurídica para ser adotada no Brasil?

 

Referências bibliográficas
CANOTILHO, J. J. Gomes; VITAL MOREIRA. Constituição da República Portuguesa Anotada, v. 1, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

GUEDES, Neviton. Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 718-753.

MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2019.

 


[1] Conforme GUEDES, Neviton. Dos direitos políticos. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar; SARLET, Ingo; STRECK, Lenio. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 724, os direitos políticos seriam essenciais à preservação dos demais direitos, ou como os americanos denominam, preservative of all rights.

[2] GOMES CANOTILHO, J. J.; VITAL MOREIRA. Constituição da República Portuguesa Anotada, v. 1, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 671.

[3] MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2019, p. 149-150.

[4] As eleições presidenciais de 2021 ocorreram sob estado de emergência, tendo sido permitido que os idosos pudessem votar no próprio lar, bem como se permitiu o voto antecipado.