Público & Pragmático

Implementação de whistleblowing no Brasil e proteção ao reportante

Autor

  • Daniel Ribeiro Barcelos

    é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e em Direito pela UFMG e doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo.

20 de fevereiro de 2022, 8h00

Com a introdução da Convenção Interamericana de Combate à Corrupção, em 1997, a agenda anticorrupção ganhou grande destaque na América Latina. Vários países da região passaram a executar internamente os vários comandos emanados daquela convenção e, para que haja o seu devido cumprimento, foi composto um mecanismo de acompanhamento de implementação da convenção.

É importante mencionar que a internacionalização da agenda anticorrupção é uma importante estratégica para que governos locais, muitas das vezes envolvidos eles próprios em corrupção, sejam cobrados por seus pares internacionais e, assim, constrangidos a implantar internamente mecanismos de combate à corrupção. Porque se fossem implementados por eles mesmos, os grupos internos beneficiados pela corrupção fariam grande pressão para que esta agenda fosse bloqueada. Por isso a importância de estruturas administrativas nestes organismos internacionais de acompanhamento da efetivação das convenções e emissão de relatórios periódicos.

Na esteira da internacionalização da agenda anticorrupção na América Latina, vários países da região também foram signatários da Convenção contra a Corrupção da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2003. Entre eles, o Brasil.

Dentro de uma série de ferramentas de combate à corrupção prescritas por essas duas convenções, destacamos o whistleblowing, que envolve o inter-relacionamento da estrutura estatal e do setor privado, ambos com participação da sociedade civil.

Em primeiro lugar, é importante começar pelo significado de whistleblowing, por meio de uma conceituação clássica. Whistleblowing é a divulgação por membros da organização (antigos ou atuais) de práticas ilegais, imorais ou ilegítimas para o controle delas pelos empregadores, pessoas ou organizações que podem ser capazes de realizar tais ações [1].

Na maioria dos casos, os whistleblowers (reportantes) são a principal fonte de detecção de fraudes. Nos Estados Unidos, eles representam 40% da fonte de informações, em comparação com 15% da auditoria interna, segundo dados de 2020 da Association of Certified Fraud Examiners [2].

Globalmente, há dados que indicam que dos três mais relevantes métodos de exposição de fraudes, os whistleblowers encabeçam a lista, representando 41% dos mecanismos em uso, seguido da auditoria externa, com percentual de 31%, segundo o Global Fraud and Risk Report 2019/2020 [3].

Assim, o whistleblowing é o mecanismo mais eficiente do que a auditoria (interna ou externa) para detecção de fraudes em uma organização.

É importante esclarecer que whistleblowers, que aqui chamaremos de reportantes, não se restringe a membros de organizações. São cidadãos, membros da sociedade em geral, jornalistas, você e eu. Somos todos potenciais reportantes e precisamos receber proteção. Os Estados devem nos fornecer proteção legal.

O Brasil tem avançado nesta agenda nos últimos anos, apesar de vários relatórios do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana contra a Corrupção (Mesicic) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que faz inúmeras recomendações aos países no sentido de efetivarem um aprimoramento de seus mecanismos, principalmente no que tange à proteção do reportante.

Inicialmente temos uma evolução da jurisprudência nos anos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, que inicialmente rejeitou a denúncia anônima em 2003 (MS 24.405-4/DF, DJ 23.04.2004), mas que, agora, vem reconhecendo a admissibilidade da denúncia anônima em seus julgados (a citar para ilustração: 2ª Turma — HC nº 107.362/PR — relator ministro Teori Zavaski — j. em 10/2/15 — DJe 039 de 27/2/2015; RO em HC nº 161.146/MG relator ministro Marco Aurélio, DJe 22/3/2021), em que se admite que a denúncia anônima na persecução penal, assentada, claro, em ulteriores diligências para averiguar os fatos nela narrados. Ou seja, a autoridade policial deve, para a formal instauração de inquérito, realizar a prévia análise de plausibilidade do relato apócrifo.

Nessa esteira, além dos posicionamentos da mais alta corte nacional, tivemos a importante inovação legislativa, tanto para o setor público, quanto o setor privado, nos últimos dez anos.

No setor privado, foi editada a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que só entrou em vigor em 2014, conhecida como Lei Anticorrupção, com uma timidez tremenda em fomentar uma política de whistleblowing, pois tornou os programas de integridade no mundo corporativo, que previam canais de denúncias e uma eventual política de proteção aos reportantes, facultativos pela iniciativa privada.

No setor público, com a edição da Lei nº 13.608, de 10 de janeiro de 2018, houve o reconhecimento de alguns institutos importantes componentes da política de whistleblowing para a prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos:

a) Garantia do anonimato (artigo 1º, inciso II);

b) Sigilo dos dados do informante (artigo 3); e,

c) Recompensa (artigo 4).

Em 2019, passa-se a ter mais alguns complementos no âmbito dessa política na esfera pública, com a edição da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, proveniente do pacote "anticrime" como:

a) Um canal institucionalizado para receber os relatos;

b) Proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal do reportante em relação ao relato;

c) Revelação da identidade do reportante somente será efetivada mediante comunicação prévia a ele e com sua concordância formal;

d) Demissão a bem do serviço público por falta disciplinar grave do agente cometedor das retaliações;

e) Ressarcimento em dobro ao reportante por eventuais danos materiais causados por ações ou omissões praticadas no âmbito da retaliação sofrida, sem prejuízo de danos morais; e,

f) Recompensa em favor do reportante em até 5% do valor recuperado.

No âmbito do Poder Executivo federal, a política de proteção ao denunciante, em âmbito administrativo, tem se materializado por meio de regulamentos editados ao longo dos anos de 2019 a 2021, por meio dos Decretos nº 10.153, de 3 de dezembro de 2019, e nº 10.890, de 9 de dezembro de 2021. O primeiro de proteção da identidade do reportante e o segundo, por sua vez, de proteção a retaliações.

No primeiro se encontra a regulamentação da confidencialidade, chamada pelo decreto de pseudonimização, que é o tratamento por meio do qual um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo, senão pelo uso de informação adicional mantida separadamente pelo controlador em ambiente controlado e seguro. Ou seja, o reportante tem sua identidade preservada por meio da dissociação entre sua identidade/elementos identificadores e o seu relato pelo sistema de ouvidoria federal.

Dá-se destaque ao artigo 6º do referido decreto, o qual menciona que o reportante terá seus elementos de identificação preservados desde o recebimento da denúncia, nos termos do disposto no §7º do artigo 10 da Lei nº 13.460, de 2017, devendo a unidade de ouvidoria responsável pelo tratamento da denúncia providenciar a sua pseudonimização para o posterior envio aos órgãos de apuração competentes.

Também é conferida restrição de acesso aos elementos de identificação do reportante, que deve ser mantida pela unidade de ouvidoria, pelo prazo de cem anos, conforme o disposto no inciso I do §1º do artigo 31 da Lei de Acesso à Informação.

Além da pseudonimização, que é o procedimento de operacionalização da confidencialidade, um ponto de importante destaque é que as unidades de ouvidoria que fizerem o tratamento da denúncia, em relação aos elementos de identificação do reportante que estão depositados nos sistemas informatizados de recebimento dela, terão controle de acesso que registre os nomes dos agentes públicos que acessem as denúncias e as respectivas datas de acesso a elas.

Já o segundo decreto, o de final de 2021, veio a estabelecer competência da Controladoria-Geral da União para proteção ou mitigação das retaliações sofridas pelos reportantes.

Assim, compete agora à Controladoria, em âmbito federal, receber e apurar as denúncias relativas às práticas de retaliação contra reportantes, praticadas por agentes públicos dos órgãos e das entidades federais, instaurando e julgando os processos para responsabilização administrativa resultantes de tais apurações, além de suspender atos administrativos praticados em retaliação ao direito de relatar.

Outrossim, a par das medidas repressivas disciplinares, poderá proceder a Controladoria federal à adoção ou determinação, de ofício, das medidas de proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou negativa de fornecimento de referências profissionais positivas, previstas no caput do artigo 4º-C da Lei nº 13.608, de 2018.

Assim, verifica-se nos anos recentes, mais especificamente os dois últimos, significativo avanço na política de whistleblowing no Brasil, ainda que restrita ao setor público sem uma medida legislativa mais incisiva em relação ao setor privado, como adotou a França, por meio de sua Lei Sapin II [4], de 9 de dezembro de 2016 , que tornou obrigatória a política de whistleblowing em grandes corporações ou setores com maior risco de corrupção.

Essa concepção na política whistleblowing no Brasil significa que a política de combate a corrupção ainda é entendida como um problema de Estado (problema de agência), ainda caracterizando um déficit no tratamento da corrupção como um problema de ação coletiva que deve envolver e criar condições de confiabilidade na política de combate em todos os setores da sociedade, ainda mais o setor corporativo.

 


[1] Near, J.P., Miceli, M.P. Organizational dissidence: The case of whistle-blowing. J Bus Ethics 4, 1–16 (1985). https://doi.org/10.1007/BF00382668. Acesso em dezembro de 2021.

[2] Global Study on Occupational Fraud and Abuse intitulado Report to the Nations. Disponível em: https://www.acfe.com/report-to-the-nations/2020/. Acesso em dez. 2021.

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    é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU), mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais.

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