Seguros Contemporâneos

Os NFTs e o contrato de seguro

Autores

  • Priscila Mathias Fichtner

    é doutora em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia no escritório Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Claudio Miranda

    é advogado e sócio do escritório Chalfin Goldberg Vainboim.

17 de fevereiro de 2022, 8h00

O crescimento da comercialização de ativos digitais, entre os quais os atualmente tão badalados NFTs ("non fungible tokens" ou "tokens não fungíveis"), tem movimentado a economia e gerado o desejo pela aquisição de produtos novos e exclusivos, dando ensejo a golpes, agora aplicados no "metaverso". Recentemente foi noticiado que as fraudes com NFTs e outros crimes envolvendo criptomoedas somaram US$ 14 bilhões em 2021, representando um aumento de quase 80% em relação a 2020 [1]. Os dados assustam e chamam a atenção para a necessidade de criação de mecanismos de proteção contra os riscos digitais.

A equação envolvendo a soma dos elementos riscos e proteção certamente trará, como produto, o contrato de seguro, cuja base conceitual já é conhecida, mas que está diante de desafios novos, advindos de uma realidade paralela, em construção.

A revolução tecnológica atual, de fato, traz outras problemáticas a serem enfrentadas pelos seguros. Os riscos tornaram-se mais complexos, sofisticados e desafiadores. Coube à Ulrich Beck desenvolver a noção de "sociedade de risco" (Risikogesellschaft) como forma de conceptualizar as modificações estruturais perceptíveis na modernidade quando contrastada com a "sociedade industrial" (Industriegesellschaft) prevalente outrora [2].

A inserção da tecnologia no cotidiano promoveu uma virtualização da vida, da economia e da sociedade. Em um mundo que se discute um "metaverso", riscos digitais não podem ser encarados como uma ilusão, a la Dom Quixote.

Ao contrário, como já adiantado linhas atrás, são economicamente relevantes, sendo necessário que se discuta a sua alocação e distribuição. O Direito, diante de sua natureza de se fazer presente onde novos desafios sociais aparecerem, há de oferecer respostas. Em um futuro de volatilidade generalizada, a atividade econômica necessita, até para fins de desenvolvimento, de instrumentos jurídicos adequados para assegurar eficiência, rentabilidade e delimitação de riscos [3].

O seguro contra riscos digitais é uma primeira ferramenta que visa a oferecer uma resposta a esses novos problemas. Ocorrências como vazamento de dados, roubos de senha, hackeamentos, são cada vez mais frequentes, e têm impacto econômico significativo. Por exemplo, em pesquisa coordenada pela IBM Security, analisando fatos entre maio de 2020 e março de 2021, constatou-se que o custo total médio global de uma violação de dados é de US$ 4,24 milhões, indicando quão expressivos podem ser o seu impacto econômico [4].

A Circular nº 638, de 27 de julho de 2021, da Superintendência de Seguros Privados (Susep) dispõe sobre os requisitos de segurança cibernética a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradoras locais. A Resolução nº 451, de 20 de julho de 2021, do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), que versa sobre open insurance, elenca a segurança cibernética como requisito essencial para o credenciamento e funcionamento das sociedades iniciadoras de serviço de seguro [5], bem como para garantir a autenticação do cliente [6].

A segurança cibernética vem intensamente sendo buscada pelo mercado segurador, o que facilita o desenvolvimento de proteção à comercialização de NFTs.

Os NFTs são uma espécie de certificado digital de propriedade, amparado pela tecnologia de blockchain. Dessa forma, um NFT representa a propriedade de um ativo que lhe é subjacente.

As potencialidades práticas dos NFTs ainda estão sendo exploradas. Desde o mercado da arte, música, produtos colecionáveis, mercado financeiros e indústria de jogos são apenas alguns dos usos correntes dos tokens não fungíveis. O mercado imobiliário também tem se aquecido pelo uso dos NFTs, propiciando venda de percentuais de imóveis [7] ou de casas virtuais para experimentação e não moradia [8].

A ideia de haver um bem representando outro não é uma novidade. Desde o Direito romano se reconhecia que a transferência de propriedade sobre bens imóveis deveria ocorrer mediante a tradição de outro bem que o simbolizaria. Posteriormente, como forma de facilitar a circulação do crédito, a técnica jurídica dos títulos de crédito permitiu a corporificação de um direito em um documento que o representaria. Dessa forma, o conceito subjacente ao NFT já é conhecido e trabalhado faz séculos, havendo, especialmente, uma roupagem diferenciada, considerando a sua natureza digital e a facilidade vendida com a aquisição desse bem.

Em sendo um certificado de titularidade sobre outro bem, o NFT — como indicado pelo próprio nome — é infungível, diferenciando-se de outros produtos digitais que também se valem da tecnologia do blockchain, como as criptomoedas, que são fungíveis. Por sua função econômica precípua, após o seu registro em blockchain, o NFT passará a ser imutável e único, podendo ser comercializado individualmente.

Dada a sua própria natureza, estão subjacentes ao NFT riscos comuns aos demais bens representativos, como o extravio ou fraude do token e extravio do bem subjacente. Ao corporificar e representar direito real sobre ativos, o NFT carrega duplo valor tutelável, como ativo representativo e sobre o seu respectivo lastro, de forma que os riscos a serem cobertos também se perfazem em ambas as camadas. Esses riscos se encontram potencializados pelo elemento tecnológico, trazendo circunstâncias novas, como a possibilidade de perda de acesso à carteira digital, atuação de hackers, falha de hardware, erro humano, violações de segurança, entre outros. E onde há riscos, há a possibilidade de se cogitar a contratação de um seguro.

Na prática, portanto, já há interesse legítimo a ser segurado.

Paralelamente, constata-se no mercado o crescimento da comercialização do seguro de riscos cibernéticos ou seguro contra riscos digitais, de aplicação mais ampla. Essa modalidade de seguro oferece cobertura a riscos de violação de privacidade, de confidencialidade, reparação por danos causados por ataques cibernéticos, dentre outros. Riscos estes semelhantes àqueles que os NFTs estão expostos.

Na medida em que o mercado vem aderindo à utilização dos NFTs em variados tipos de transação, a tendência é o desenvolvimento de respostas jurídicas aos problemas enfrentados na prática, existindo uma facilitação à identificação do risco pela própria natureza infungível do bem. Em abril de 2021, foi lançado no mercado de Hong Kong o NFTY, espécie de microsseguro, pioneiro na cobertura do NFT correspondente à canção "Nobody Gets Me", uma canção à época ainda não lançada de Hanjin Tan. A cobertura proposta abarca eventual roubo e perda do referido NFT [9].

Apesar da experiência embrionária, seguros de NFTs ainda não são uma realidade corriqueira de mercado. Está-se, mormente, em um plano de expectativas e de projeção da sua utilidade econômica, considerando os desafios trazidos pela era digital. As sementes para o seu desenvolvimento, contudo, já estão plantadas. Os riscos cibernéticos já são conhecidos e vêm sendo precificados, e o blockchain vem se mostrando tecnologia com potencial disruptivo ainda não totalmente explorado. A união entre a necessidade econômica e a necessidade de encontrar soluções para problemas concretos é o cenário ideal para o florescimento de respostas jurídicas.

O aparato normativo-institucional atualmente em vigor parece ter o ferramental necessário para enfrentar o problema. Obras de arte são seguráveis. Determinados riscos digitais também são seguráveis. Eventual bem material subjacente a um NFT também tende a ser segurável. A Susep vem mostrando adaptabilidade e receptividade a tais desafios impostos pela prática, bem como vem endossando o desenvolvimento de novos produtos dentro do mercado de seguros.

Dessa forma, tornar um NFT segurável parece ser mais uma questão de tempo do que, propriamente, de superação de um obstáculo endógeno ao arcabouço normativo institucional vigente hoje no Brasil. Assim, os questionamentos iniciais, aparentemente, se prendem mais a questões relacionadas ao dimensionamento do risco e viabilidade comercial do que à viabilidade jurídica.

De fato, tornar um NFT segurável traz o desafio de precificação, de avaliação do ativo que lhe é subjacente e, em certa medida, do próprio NFT em si. A sua autonomização em relação ao bem que comprova propriedade é um elemento adicional de complexidade, ainda mais considerando que, frequentemente, esse bem também apresenta uma natureza virtual e imaterial.

Em maio de 2021, a obra "Doni Tondo", de Michelangelo, criada em 1505, teve a sua representação em um NFT vendida por US$ 170 mil [10]. Apesar das dificuldades de precificar arte, por envolver aspectos não materiais, já há know-how sobre o tema. Diferentemente, por exemplo, do que ocorre no mercado de jogos digitais ou, até mesmo, no que seria a precificação da representação digital.

No final de 2021, a desenvolvedora Ubisoft foi pioneira na introdução de NFTs em um jogo digital de grande alcance — conhecidos como AAA, que trabalham com o conceito de "tecnologia de energia eficiente". O elemento da colecionabilidade, que tem como pilares a qualidade, escassez, autenticidade e valor percebido, está presente em vários jogos e dialoga com o universo dos NFTs. Logo, essa indústria pode ser um campo fértil para o seu desenvolvimento. Mas o problema central do dimensionamento do risco permanece, até mesmo pelo caráter dinâmico do risco tecnológico. A sua precificação e o seu alcance são questões que desafiam essa nova roupagem do contrato de seguro. Isso porque a tecnologia de armazenamento de imagens traz em si riscos de perda de qualidade em curto espaço de tempo.

Acrescente-se que o NFT certamente envolverá produtos de uso e economia compartilhada, em típica relação de copropriedade, realidade já vivenciada, por exemplo com os jogos digitais. A interação com o contrato de seguro nesse contexto reclamará a emissão de apólice coletiva, na qual cada proprietário conste como cossegurado.

A heterogeneidade dos ativos atrelados aos NFTs constitui, dessa forma, um dos grandes desafios a serem enfrentados quando da estruturação jurídica de um modelo de contrato de seguros. O mesmo pode ser dito a respeito da inovação quanto ao seu conteúdo.

Registre-se, a esse respeito, a relevância de que os mecanismos de registro e de proteção das criações intelectuais relacionadas ao blockchain e aos NFTs em si sejam objeto de atualização por parte das autoridades competentes. Uma demonstração inequívoca dessa realidade, a impactar na cobertura securitária dos NFTs, sobretudo com relação à legitimidade para contratação do seguro. Dessa nova realidade, infere-se a necessidade de investimento e desenvolvimento de registros próprios de criptografia, por parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) a fim de que a propriedade imaterial referente a esses ativos digitais seja objeto de proteção específica e especializada, o que sem dúvidas poderá resvalar na cobertura securitária do bem. Percebe-se, assim, que há fundamentos jurídicos para o desenvolvimento do seguro em tela, sendo importante, contudo, a atualização dos mecanismos disponíveis, a fim de assegurar a base necessária para que tais conceitos possam se desenvolver.

Outro aspecto relevante diz respeito à fundamentalidade da ethereum, segunda criptomoeda mais famosa do mundo, atrás somente do bitcoin, para o NFT, uma vez que a chave criptográfica do NFT é armazenada no blockchain ethereum, que serve de base para a gravação de informações extras responsáveis por diferenciar uma ETH (moeda virtual) de um NFT (ativo único). É importante antecipar os reflexos desse cenário específico para a contratação do referido seguro, à medida em que poderá delimitar o contexto pertinente à criação e execução das normas pertinentes ao seguro.

A segurança jurídica sempre buscada pelo Direito foi desafiada a se adaptar à disrupção provocada pela tecnologia. Mas o medo do novo não pode ser um empecilho para a criação e o desenvolvimento de soluções legais diante de um problema real jurídico e econômico. É nesse contexto que se insere o pretenso seguro de NFT. Diante do valor do ativo subjacente, de seu valor econômico próprio e dos crescentes riscos digitais, haverá interesse legítimo a validar a sua proteção. Cabe ao mercado segurador encontrar a melhor conformação negocial.

Se, outrora, o risco de naufrágio era motivo de preocupações para os comerciantes genoveses, hoje, o risco de fraude e extravio (lato senso) de um NFT traz inquietações, no fundo, não tão diferentes quanto àquelas dos antepassados da Itália renascentista. Por certo, a roupagem e os riscos são diversos, mas o legítimo interesse segurável aparece em ambas as situações, desafiando a criação de modalidade nova de contrato de seguro que ofereça garantia contra os riscos advindos da aquisição de NFTs.

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[2] BECK, Ulrich. Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt am Main: Surkamo, 1986, p. 15-20.

[3] WALD, Arnoldo. A Contratualização do Direito Societário. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 26, p. 21, out./2004, DTR n.º 2004/597.

[4] IBM Security. Relatório do Custo de uma Violação de Dados 2021, p. 12.

[5] "Artigo 8º – A Susep disciplinará os requisitos para o credenciamento e o funcionamento das sociedades iniciadoras de serviço de seguro, que são participantes, de forma obrigatória, do Open Insurance, devendo ser observada, entre outras, segurança cibernética, governança, inclusive sobre dados, práticas de conduta no que se refere ao relacionamento com o cliente e capacidade financeira".

[6] "Artigo 19 – Os procedimentos e controles para autenticação de que trata esta seção devem ser compatíveis com a política de segurança cibernética da sociedade ou de gestão de riscos e controles, previstas na regulamentação em vigor".

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    é advogada, sócia no escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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    é doutorando e mestre em Direito de Empresa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e sócio no escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

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