Controvérsias Jurídicas

Nazismo: conhecer para não propagar

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

17 de fevereiro de 2022, 8h00

Durante podcast veiculado no último dia 7, um dos apresentadores do Flow, o influenciador Monark, defendeu a legalização do partido nazista, causando revolta nas redes sociais, levando-o a se retratar publicamente, admitindo que estava bêbado e que repudiava qualquer ação ou opinião nesse sentido. Diante da repercussão, seu nome foi imediatamente desligado do podcast e inúmeros patrocinadores retiraram seu apoio. Por fim, o Ministério Público do Estado de São Paulo requereu a abertura de investigação sobre suposta prática do crime de racismo e apologia ao nazismo, contido no artigo 20, §1º, da Lei nº 7.716/89.

A defesa do nazismo como livre expressão do pensamento deve despertar a máxima atenção. O nazismo foi um dos mais vergonhosos capítulos da história da humanidade e deve ser repudiado sob todas as formas. A expressão tem sido vulgarmente empregada em debates político-ideológicos por pessoas que desconhecem sua história, essa banalização do termo configura verdadeiro desrespeito à memória de suas vítimas. Outros confundem nazismo com comunismo. Por essa razão, devemos nos debruçar sobre as condições que levaram ao seu nascimento, consolidação na sociedade alemã da década de 30 e seus desdobramentos até os dias atuais.

As raízes da radicalização encontram-se na derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial e na humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, as quais provocaram êxito na disseminação dos ideais nazistas. Com o fim da guerra, o regime monárquico foi substituído pelo semipresidencialismo republicano de Weimar, fortemente identificado pela população como a representação da humilhação das reparações de guerra. O crack da Bolsa de Nova York, em 1929, provocou a desvalorização da moeda, o fechamento de pequenas e médias empresas e mais de seis milhões de desempregados. Dez anos antes, líderes comunistas, como Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, tentaram derrubar o governo, aglutinando grupos antimarxistas formados por veteranos da 1ª guerra, os Freikorps, e contribuindo para a popularização do partido nacional-socialista como alternativa à revolução bolchevique. A humilhação pela derrota na guerra, a crise econômica e a reação ao levante comunista forjaram a tempestade perfeita para fortalecer a ideologia anticapitalista, antimarxista e nacionalista.

Em uma cervejaria de Munique, fundou-se, em 1919, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (National-Socialistche Deutch Arbeiter Partei — NSDAP). Com apelo populista e nacionalista, o nascente partido ganhou adeptos e passou a intimidar fisicamente seus opositores por meio da milícia paramilitar chamada Tropa de Assalto (Sturmabteilung — SA). Diante do agravamento da crise econômica de 1923, os militantes do partido liderado por Adolf Hitler tentaram derrubar a República de Weimar por um golpe que ficou conhecido como o Putsh de Munique. O insucesso da empreitada freou temporariamente as ambições do partido, principalmente com a prisão de seu principal expoente, o recuo, porém, foi momentâneo e seu ressurgimento, definitivo.

Na prisão, Hitler escreveu "Mein Kampf" ("Minha Luta"), propagando as repulsivas ideias nazistas pautadas na pseudociência de uma raça superior e no antissemitismo. Em um de seus trechos, Hitler culpa o povo judeu pelo fracasso alemão na guerra e defende seu extermínio, atribuindo o insucesso do conflito mundial a pouco mais de dez mil judeus: "Se no início e durante a guerra, 12 ou 15 mil desses hebreus tivessem sido expostos a gás venenoso, como aconteceu com centenas de milhares de nossos melhores trabalhadores alemães nos campos de batalha, o sacrifício de milhões no front não teria sido em vão"[1]. Essa "livre expressão do pensamento" não foi coibida à época, cresceu e levou a uma das maiores tragédias humanitárias: o Holocausto.

Ao invés de ser reprimido por seu pensamento genocida, Hitler acabou premiado, recebendo do presidente Hindenburg a chancelaria de Estado em 1932. A composição política ficou acima dos ideais de respeito ao ser humano. No poder, o partido nazista forjou um incêndio na sede do parlamento (Reischtag), culpando os comunistas e judeus com o fito de colocá-los na clandestinidade e implementar sua segregação. Além de grupos paramilitares, o partido nazista estruturou a segurança pessoal de Hitler com a criação da Waffen-SS (Schutzstaffel) e também criou a polícia-política para identificar e prender judeus e opositores ao regime, a Gestapo (Geheime Staatspolizei). A farsa do incêndio do Reischtag culminou na prisão de opositores, líderes dos partidos de esquerda e judeus, constituindo a primeira leva de presos políticos destinados aos campos de concentração.

Com a morte do presidente Hindenburg, Hitler vislumbrou as condições perfeitas para unificar os postos de comando do Estado e, em 21 de março de 1933, autoproclamou-se Führer (líder), dando início ao Terceiro Reich. Com o auxílio de seu ministro da propaganda, Joseph Goebbels, implementou uma política de inferiorização dos povos eslavos e judeus, colocando-os em destaque negativo em filmes, canções e pinturas como povos que deveriam ser exterminados em prol da supremacia da raça ariana.

Campos de concentração, tais como Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Belzec, Chelmno, Sobibor e Majdanek, entraram para sempre como um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade. A "solução final", ordem dada aos organizadores dos campos para matar o máximo possível de presos, levou ao holocausto, com a morte de milhões de judeus. A política nazista de ódio e inferiorização de um povo permeou toda a sociedade alemã por mais de uma década. Além da política de extermínio, o nazismo também representou o subjugo de povos vizinhos, com invasão de Polônia, Tchecoslováquia, Áustria, Holanda, França, entre outros.

A experiência nazista e os horrores da Segunda Guerra Mundial serviram como ponto de inflexão na diplomacia internacional. Para tanto, foi criada a Organizações das Nações Unidas, órgão internacional responsável pela solução de conflitos pela via diplomática. Também merece destaque os julgamentos ocorridos no Tribunal de Nuremberg, ocasião na qual foi tipificado o crime contra a humanidade com efeito retroativo, visando à condenação dos líderes nazistas capturados com o final do conflito.

Em linhas gerais, os povos de todo o planeta e seus respectivos ordenamentos jurídicos sofreram influência com os horrores da guerra. O direito à liberdade de expressão foi mitigado, no sentido de ser inadmissível qualquer opinião que negue ou minimize o holocausto. A intolerância ao nazismo é justificada pelas conclusões de David Cesarani, que afirmava que: "Nunca antes na história, penso eu, um líder decidiu que dentro de um período de tempo concebível um grupo étnico religioso seria fisicamente destruído, e que seria concebido e criado um equipamento para consegui-lo. Isso foi sem precedentes" [2].

A legislação brasileira tipificou a figura contida no artigo 20, §1º, da Lei nº 7.716/89, que pune com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa quem "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos, propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo". Trata-se de delito que tem como objetividade jurídica a tutela da dignidade da pessoa humana [3]. Cruz suástica é o símbolo de origem brâmane e budista que representava sorte e felicidade [4]. Subvertendo seu real significado, os nazistas inverteram e inclinaram o logo, querendo dar uma impressão de movimento perpétuo. A cruz gamada é a condecoração militar destinada aos soldados que se destacavam no campo de batalha.

O debate que se coloca é: até que ponto o direito fundamental da liberdade de expressão e opinião resguarda discursos de ódio com conteúdo discriminatório e segregatório, tais como o da inferiorização do povo judeu? O embate entre o direito de expressão e dignidade do povo judeu e a limitação legítima ao exercício de opinião e combate à pratica de racismo foi objeto de análise do STF no caso Ellwanger, que se tornou paradigmático na temática.

Em 12 de novembro de 1991, o MP-RS ofereceu denúncia contra Siegfried Ellwanger como incurso no artigo 20, caput, da Lei nº 7.716/89, por ter comercializado o livro "Holocausto: judeu ou alemão: nos bastidores da mentira do século". A condenação a dois anos de reclusão foi mantida pelo pleno do STF em 17 de dezembro de 2003, por maioria de votos, com o reconhecimento da imprescritibilidade do delito e abuso no exercício da liberdade de expressão.

O Supremo apontou que o fundamento da doutrina nazista, baseado na distinção de raças entre humanos, é incompatível com os padrões do mundo contemporâneo, consagrados na Constituição Federal. Estigmas de inferiorização de um povo, por si só evidenciam o crime de racismo e atentam aos princípios edificadores do Estado democrático de Direito, pautado na dignidade da pessoa: "Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. O direito à livre expressão não pode abrigar manifestações de conteúdo imoral e não consagra o direito à incitação ao racismo. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica" [5].

É o entendimento das legislações de Bélgica, Alemanha, França, Espanha, Polônia, Suíça e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos [6].

Na contramão da maioria das legislações ocidentais, a Suprema Corte dos EUA no julgamento dos casos Brandenburg vs. Ohio [7], National Socialist Party vs. Skokie [8] e R.A.V vs. City of St. Paul [9], entendeu que os discursos discriminatórios e segregacionistas são abarcados pelo direito da liberdade de expressão. Tal visão absoluta é perigosa e fomenta a intolerância. A defesa do extermínio de um povo é apologia a fato criminoso, sendo inaceitável sua exteriorização. Se a liberdade de expressão fosse ilimitada não haveria criminalização da ofensa à honra.

No caso brasileiro, Monark criticou a criminalização do nazismo no Brasil, colocando-se como adepto da teoria da neutralidade de conteúdo, tal qual vigora nos EUA. Errou. Colocar o nazismo na mesma prateleira de todas as outras concepções políticas é ignorar a perversidade elevada ao mais alto grau da insanidade.

O comunismo de Stálin levou à morte mais de 20 milhões de seus compatriotas, o que o coloca entre os mais sanguinários estadistas da história, mas há uma particularidade no regime nazista, consistente no extermínio premeditado de povos em escala industrial como política de Estado. As experiências dos campos de concentração, dos assassinatos em massa, das câmaras de gás, da separação de pais e filhos, dos experimentos sombrios de Josef Menguele, entre outros, não podem ser esquecidas. A criminalização do nazismo e a proibição de sua disseminação, mais do que uma limitação ao direto de liberdade de expressão, é a proteção para as futuras gerações de que nada similar aos horrores do Holocausto voltará um dia a acontecer.

 


[1] HITLER, Adolf. Mein Kampf. Massachusetts: Houghton Mifflin, 1971, p. 679, in REES, Laurence. O Holocausto, 1ª edição, São Paulo. Ed. Vestígio, 2018, p. 49/50.

[3] STJ, REsp 157.805/DF — rel. min. Jorge Scartezzini, 5ª Turma, j. 17/8/1999, FJ 13/09/1999, p. 87.

[4] ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. 14ª edição. Ed. SaraivaJur, 2019, p. 144.

[5] STF, HC 82424/RS, Tribunal Pleno. Min. rel. Moreira Alves, j. 17/9/2003, publicado em 19/3/2003.

[6] MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso de ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 149/150.

[7] Caso referente a um cidadão norte-americano pertencente ao Ku Klux Klan, que em um discurso realizado em uma fazenda, manifestou suas ideias defendendo a discriminação de negros.

[8] Possibilidade de realização de passeata de neonazistas, vestidos com uniforme da SS, em um bairro de Chicago reduto de judeus sobreviventes do holocausto.

[9] Inconstitucionalidade da lei municipal de St. Paul que criminalizava a exposição, pública ou privada, de símbolos, objetos, grafites, incluindo cruzes em chamas, notória insígnia da Ku Klux Klan, ou da suástica nazista, que pudesse gerar raiva, alarde ou ressentimento a outros com base na raça, cor, credo, religião ou gênero.

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