Dignidade tolhida

Município deve indenizar por morte de paciente atendida por falso médico

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16 de fevereiro de 2022, 21h17

O município é o responsável primário pelo serviço de saúde local e, nesta condição, é responsável pelos danos causados pelas pessoas jurídicas de direito privado prestadoras do serviço público de saúde.

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ReproduçãoMunicípio deve indenizar filhos de paciente que morreu após ser atendida por falso médico

Assim entendeu o juiz Fernando José Alguz da Silveira, da 2ª Vara Cível de Tatuí (SP), ao condenar o município a indenizar em R$ 150 mil os dois filhos de uma mulher que morreu após ser atendida por um falso médico na Santa Casa de Misericórdia da cidade.

A mãe dos autores sofreu um infarto e foi atendida por um médico plantonista na Santa Casa. Os filhos alegaram se tratar de um falso médico, que vinha atendendo de forma indevida há seis meses. Na ação, eles relacionam a morte da mãe a falhas no atendimento e citam, por exemplo, a recusa do médico em transferir a paciente para a UTI.

Além disso, destacaram a demora para realização de exames imprescindíveis e a ausência de prescrição médica por muitas horas após a entrada da paciente no hospital, "o que certamente foi crucial para o agravamento de seu quadro". Os autores são representados pelo advogado Levi Avila.

Ao condenar o município, o magistrado ressaltou que o médico foi posteriormente identificado como integrante de uma organização criminosa que aplicava golpes. O grupo teria indicado pessoas sem formação em medicina para trabalhar em hospitais da região, incluindo o médico que atendeu a mãe dos autores.

"A perícia realizada atestou que o atendimento efetuado pelo suposto médico foi deficitário, pontuando que 'houve falha no diagnóstico' e 'consequentemente, falha na devida condita médica. Em que pese o perito tenha relatado não ser possível afirmar que a paciente teria sobrevivido caso o tratamento oferecido fosse o adequado, é inegável que a conduta agravou o estado de saúde e, se não extinguiu as suas chances de recuperação, certamente as reduziu", disse.

De todo modo, afirmou o magistrado, o simples fato de a paciente ter sido atendida por um falso médico em um hospital a serviço da município "é deveras absurdo". Silveira disse que houve falha no momento da contratação, da checagem de informações, da análise da vida pregressa do médico, entre diversos outros aspectos.

"Um hospital tem em suas mãos o mais importante bem jurídico: a vida. A Constituição Federal assegura a inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput), considerado o mais importante direito fundamental, que condiciona todos os demais direitos. Desta feita, é inadmissível que qualquer instituição hospitalar permita que uma pessoa imperita atue como se profissional da saúde fosse, colocando em risco a vida dos cidadãos", acrescentou Silveira.

Para ele, o fato de o falso médico ter atuado por meses na Santa Casa de Misericórdia já configura risco à saúde pública, gerando o dever de indenizar os autores: "Evidente a existência de dano moral, já que no momento mais importante, ao procurar a ajuda do hospital que acreditava ser qualificado, a genitora dos autores foi submetida a um falsário, que a diagnosticou errado e falhou em seu atendimento".

Silveira disse que, ainda que não se possa falar em certeza de sobrevivência da paciente, é possível falar em melhores condições nos últimos momentos de vida, isto é, em dignidade. "A Santa Casa de Misericórdia de Tatuí, ao permitir que um falso médico atendesse em seu pronto-socorro, emitindo diagnósticos errados e oferecendo tratamentos inadequados, tolheu a dignidade da paciente", disse.

A conclusão do juiz foi de que os autores sofreram "incontestável abalo psíquico", não somente pela perda repentina da mãe, mas pela "situação absurdamente insólita". Assim, afirmou, o município, na condição de responsável primário pela saúde local e contratante dos serviços da Santa Casa de Misericórdia, deve responder pelos danos causados.

"Está devidamente comprovado que houve erro de diagnóstico por parte do falso médico e, em decorrência disto, erro na escolha do tratamento, o que leva à conclusão de que a Santa Casa de Misericórdia não atuou de acordo com o que prevê a melhor técnica médica", finalizou Silveira, fixando a indenização em R$ 75 mil para cada autor.

Estado foi absolvido
Os autores também buscavam a responsabilização do Estado de São Paulo, o que foi rejeitado pelo magistrado. Isso porque os fatos aconteceram na Santa Casa de Misericórdia de Tatuí, pessoa jurídica de direito privado conveniada ao SUS, contratada pelo município, situação que afasta a responsabilidade do Estado, já que não tem qualquer vínculo com a instituição hospitalar ou com o falso médico.

"Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a ilegitimidade passiva da União em demanda indenizatória ajuizada em decorrência de erro médico cometido em hospital privado, mediante atendimento pelo SUS, sujeito a controle e avaliação do município", pontuou Silveira, citando o julgamento do EREsp 1.388.822 pelo STJ.

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1005067-41.2016.8.26.0624

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