Garantias do Consumo

2022 é o ano do consumo sustentável

Autor

  • Ana Paula Atz

    é advogada professora de Direito pós-doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e visiting scholar pela Fordham University School of Law NY/USA.

16 de fevereiro de 2022, 8h00

O ano de 2021 foi marcado pelo alerta da crise climática global, conforme demonstrado cientificamente pelo último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na siga em inglês) [1]. O documento foi claro: o planeta já sofre consequências adversas extremas em razão do aumento da temperatura global em 1,1°C acima dos níveis pré-industriais, devido à inércia e falta de medidas concretas por parte dos Estados em conter a emissão de gases de efeito estufa (GEE), de causas eminentemente antrópicas, sobretudo vinculadas aos processos de produção e consumo.

Essa preocupação comum da humanidade foi o tema da Conferência sobre Mudança Climática das Nações Unidas (COP26), que ocorreu em Glasgow, em novembro, e resultou em uma série de agendas e a regularizações de medidas adotadas no Acordo de Paris [2]. Para restringir o aumento da temperatura e garantir um planeta habitável por seres humanos, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pontuou que ações concretas são necessárias para reduzir as emissões globais em 45% até 2030. Investir em uma economia resiliente e de zero emissões de carbono é a melhor maneira de reverter essa situação [3].

A neutralidade climática e o almejado consumo e produção sustentáveis são objetivos perseguidos pelas Nações Unidas, elencados na Agenda 2030 [4], diretamente relacionados aos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) 12 e 13 [5]. O ODS 12 vai ao encontro das Diretrizes das Nações Unidas para a Proteção do Consumidor de 1985, revisadas em 1999 para incluir uma seção sobre o consumo sustentável [6]. Segundo a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, consumo sustentável é o uso de serviços e produtos que respondam às necessidades básicas de toda população e tragam "a melhoria na qualidade de vida, ao mesmo tempo em que reduzem o uso dos recursos naturais e de materiais tóxicos, a produção de lixo e as emissões de poluição em todo ciclo de vida, sem comprometer as necessidades das gerações futuras" [7].

Por certo, é preciso desenvolver uma cultura de consumo sustentável no Brasil no século 21, inclusive para dialogar e cumprir com os ODS e as diretrizes para proteção do consumidor, por meio de "fontes legislativas constitucionais e infraconstitucionais nacionais, regionais e locais, além das políticas públicas a serem implementadas pela União, pelos Estados e pelos municípios brasileiros"[8]. Vários atores são responsáveis pelo cumprimento dessa agenda: os estados, no âmbito dos três poderes, o Ministério Público, as ONGs, o setor privado e o consumidor.

O comportamento do consumidor está diretamente ligado a formas de ameaça ambiental e de emissões de GEE. Estima-se que grande parte da utilização da terra seja destinada a agricultura e moradia, o que resulta em perda de biodiversidade. O consumo da água sofre importante impacto pelo cultivo de alimentos, pelo uso doméstico e pela indústria que fornece bens, energia ou serviços aos consumidores. Os poluentes do ar e da água estão relacionados a mobilidade urbana e geradores de energia [9].

É necessário oferecer subsídios para que o consumidor possa ter escolhas sustentáveis e mudar seu estilo de vida, o que se justifica por ter efeitos benéficos na saúde humana e no ambiente, gerando um bem-estar social. Estudos demonstram a importância da atuação dos atores envolvidos em três grandes frentes: 1) infraestrutura sustentável; 2) informação e educação ao consumidor e uma política de rotulagem de produtos e serviços; 3) promoção de incentivos econômicos [10].

No Direito Comparado, percebem-se algumas linhas de promoção do consumo sustentável. A União Europeia endereçou ao Parlamento Europeu e Conselho diretrizes de proteção aos Estados-membros no documento "Nova Agenda do Consumidor de 2020", que tem como objetivo principal reforçar o quadro de defesa do consumidor e uma transição ecológica do consumo. O documento propõe: 1) reduzir a pegada ambiental e climática dos sistemas alimentares da UE e capacitar os consumidores para fazerem escolhas informadas e sustentáveis em matéria alimentícia; 2) plano de ação para poluição zero; 3) informar melhor o consumidor quanto aos produtos nocivos a sua saúde e incentivar a fabricação de produtos químicos mais sustentáveis [11].

No Brasil, segundo Marques [12], a atualização do CDC pela Lei 14.181, de julho de 2021, inaugura a positivação do tema do consumo sustentável na legislação consumerista, ao acrescentar um novo princípio de "fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores" à Política Nacional de Defesa do Consumidor (PNDC), previsto no artigo 4, inciso IX [13]. Em 2021, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) declarou que a educação ambiental deve ser um componente curricular básico até 2025 [14].

É importante mencionar o Projeto de Lei 3.514/2015 de atualização do CDC, que tramita na Câmara dos Deputados, e inclui a sustentabilidade no artigo 6°, inciso XIII, do CDC como direito básico [15]. O PL 3.514 procura fornecer aportes para o diálogo entre o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental ao estabelecer a "proteção do meio ambiente" entre os objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo, alterando a redação do caput do artigo 4° e prevê de forma expressa o consumo sustentável como princípio [16] da PNRC [17].

Conforme se depreende da leitura do projeto, existe a imposição normativa ao Estado do dever de promover "padrões de produção e consumo sustentáveis". Aqui há evidente espaço para criação de mecanismos de comando e controle em várias frentes para assegurar e viabilizar o consumo sustentável no Brasil. Tais ações variam desde regulamentar o Plano Nacional de Eficiência Energética até coibir a prática da obsolescência programada [18] e greenwashing [19], bem como promover uma maior transparência das informações dos produtos por meio da rotulagem e investimentos em infraestrutura verde [20]. Não se desconhece, no arcabouço legislativo brasileiro, outras leis importantes que podem e devem ser instrumentalizadas para esse fim [21].

O ano de 2021 foi marcado pelo reconhecimento da ONU que o acesso ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano [22] e, dado os esforços de toda a comunidade internacional para a transição de uma sociedade mais sustentável, 2022 se coloca como um marco para a promoção do consumo sustentável. Diante do contexto apresentado da necessidade de construção do consumo sustentável no Brasil, cabe discutir o papel do Direito e daqueles que atuam no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental neste cenário desafiador. Temos um longo caminho a percorrer, mas a hora de começar é agora.

 


[1] IPCC, 2021: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Masson-Delmotte, V. et al. Cambridge University Press.

[2] UNITED NATIONS. Paris Agreement. New York: UM, 2015. Disponível em: https://unfccc.int/process-and-meetings/the-paris-agreement/the-paris-agreement. Acesso em: 15/2/2021.

[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Guterres faz desabafo na COP 26: "Chega de tratar a natureza como toalete". ONU News. 1/11/2021.

[4] UNITED NATIONS. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. 2015. Disponível em: https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/70/1&Lang=E. Acesso em: 5/1/2022.

[5] ODS 12: "Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis"; ODS 13: "Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima".

[6] Incluiu-se nas Diretrizes a letra 'G' sobre "Promoção de modalidades sustentáveis de consumo" que assim o caracteriza "Consumo sustentável compreende satisfazer as necessidades de bens e serviços das gerações presentes e futuras para que sejam satisfeitas de modo tal que possam sustentar-se desde o ponto de vista econômico, social e ambiental". UNITED NATIONS. Departament of Economic and Social Affairs. United Nations Guidelines for Consumer Protection. New York, 2003. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official-document/UN-DESA_GCP1999_en.pdf. Acesso em: 4/2/2021.

[7] COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1991.

[8] WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. E-book.

[9] FARBER, Daniel A. Sustainable Consumption, Energy Policy and Individual Well-Being. Vanderbilt Law Review, v. 65, p. 1488, 2012.

[10] FARBER, Daniel A. Sustainable Consumption, Energy Policy and Individual Well-Being. Vanderbilt Law Review, cit., p. 1482.

[11] COMISSÃO EUROPEIA. COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E AO CONSELHO. Nova Agenda do Consumidor: Reforçar a resiliência dos consumidores para uma recuperação sustentável. Bruxelas, 13 nov. 2020, p. 02-03. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0696&from=EN. Acesso em: 20/1/2022.

[12] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços Simbióticos" do Consumo Digital e o PL 3.514/2015 de Atualização do CDC. Revista de Direito do Consumidor, vol. 132, p. 91-118, nov./dez 2020.

[13] Se percebe a preocupação com o meio ambiente em outras passagens do CDC, como o tema da publicidade (artigo 37, § 2°) que considera abusiva aquela que desrespeita os valores ambientais. Da mesma forma, no plano contratual, o artigo 51, inciso XIV, declara como nula as cláusulas que permitam a violação de normas ambientais.

[14] Em conferência realizada, acompanhada por mais de 2.800 atores envolvidos, foi adotada a Declaração de Berlim sobre Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS). (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA – UNESCO. UNESCO declara que a educação ambiental deve ser um componente curricular básico até 2025. 25 maio 2021. Disponível em: https://pt.unesco.org/news/unesco-declara-que-educacao-ambiental-deve-ser-um-componente-curricular-basico-ate-2025. Acesso em: 3/11/2021).

[15] "Artigo 6º, inciso XIII – a informação ambiental veraz e útil, observados os requisitos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei n º 12.305, de 2 de agosto de 2010".

[16] "Artigo 4º – II, e) pelo incentivo a padrões de produção e consumo sustentáveis; IX – promoção de padrões de produção e consumo sustentáveis, de forma a atender às necessidades das atuais gerações, permitindo melhores condições de vida e promovendo o desenvolvimento econômico e a inclusão social, sem comprometer a qualidade ambiental e o atendimento das necessidades das gerações futuras" (NR).

[17] No texto atual do Projeto também consta o acréscimo do art. 10-A ao CDC que tem como objetivo melhorar o sistema de qualidade e segurança de produtos e serviços ao ampliar o cuidado dos fornecedores no que tange aos riscos ambientais, conforme: "Artigo 10-A. As regras preventivas e precautórias dos artigos 8º, 9º e 10 deste Código aplicam-se aos riscos provenientes de impactos ambientais decorrentes de produtos e serviços colocados no mercado de consumo". O texto também contempla no rol exemplificativo de práticas abusivas previstas no artigo 39 do CDC "oferecer produto ou serviço com potencial de impacto ambiental negativo, sem tomar as devidas medidas preventivas e precautórias", acarretando impacto em circunstância agravante dos crimes contra as relações de consumo gerar "graves danos ao meio ambiente". MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços Simbióticos" do Consumo Digital e o PL 3.514/2015 de Atualização do CDC. Revista de Direito do Consumidor, cit.

[18] Preferências por novos produtos e a obsolescência prematura de eletrodomésticos deve afetar adversamente o consumo e a produção sustentáveis (ODS 12) com ramificações para a eficiência do uso de recursos. (ECHEGARAY, F. Consumer's reactions to product obsolescence in emerging markets: the case of Brazil. Journal of Cleaner Production, v. 134, p. 191-203, 2016).

[19] Greenwashing (lavagem verde) significa a inapropriada publicidade e marketing de produtos que apresentam uma falsa aparência de sustentabilidade, seja por meio de rótulos, certificados ou publicidade. Sobre o tema: MÉO, Letícia Caroline. Greenwashing e Direito do Consumidor: como prevenir (ou reprimir) o marketing ambiental ilícito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[20] COMISSÃO EUROPEIA. COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E AO CONSELHO. Nova Agenda do Consumidor, cit., p. 06-07).

[21] Veja-se a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC), instituída pela Lei n° 12.187 de 2009, como resposta do Estado para reduzir as vulnerabilidades dos sistemas naturais e humanos frente a mudança do clima; A Lei 12.305 de 2010 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e dentre outros benefícios, introduz a logística reversa e o princípio da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, materializando a política pós-consumo e os deveres das partes, incluindo o consumidor, neste ciclo de descarte de resíduos sólidos.

[22] NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Meio Ambiente saudável é declarado direito humano por Conselho da ONU. [S. l.], 8/1/2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/150667-meio-ambiente-saudavel-e-declarado-direito-humano-por-conselho-da-onu. Acesso em: 20/1/2022.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora de Direito, pós-doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e visiting scholar pela Fordham University School of Law, NY/USA.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!