Combate a nulidades

Envio de 10 terabytes de documentos da CPI à PGR pode cercear defesa

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16 de fevereiro de 2022, 20h20

Ao encerrar os seus trabalhos, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 enviou 10 terabytes de documentos ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Agora, os senadores estão cobrando o PGR por uma suposta demora em abrir investigações e processos contra integrantes do governo Jair Bolsonaro, incluindo o próprio presidente.

Rosinei Coutinho/STF
Augusto Aras busca evitar nulidades em eventuais processos decorrentes da CPI
Rosinei Coutinho/STF

Contudo, ao enviar um grande número de arquivos desorganizados, os parlamentares podem ter incorrido na prática de document dump (despejo de documentos). Nos Estados Unidos, a medida pode configurar cerceamento de defesa.

A CPI da Covid-19 apresentou o relatório final em 27 de outubro. Em 4 de novembro, enviou as provas à Procuradoria-Geral da República — um arquivo com dez terabytes de documentos. No entanto, a PGR ainda não promoveu a abertura de inquéritos e ações.

Augusto Aras afirmou à CNN, nesta terça-feira (15/2), que a PGR recebeu "um HD com 10 terabytes de informações desconexas e desorganizadas". De acordo com ele, isso fez com que a PGR protocolasse dez petições ao STF para "manter a validade da prova para evitar que nulidades processuais venham a resultar em impunidade, como aconteceu recentemente em vários processos".

Senadores acusam o procurador-geral de omissão na investigação. "Está havendo uma utilização da Procuradoria-Geral da República para fins políticos, e nós vamos agir", criticou Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, durante a inauguração do Memorial das Vítimas da Covid-19, no Senado, nesta terça.

O vice-presidente da CPI da Covid, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse à CNN nesta quarta (16/2) que o arquivo enviado à PGR estava organizado. Segundo ele, o formato do documento enviado ao órgão faz com que cada nome dos indiciados corresponda a uma página específica com as provas a respeito de suas condutas investigadas.

Entretanto, ressaltou Randolfe, a equipe de Aras foi até o seu gabinete pedir a individualização das provas — ou seja, que apontassem quais elementos do material correspondiam às acusações feitas pela CPI. O senador aceitou o pedido, e sua equipe deve entregar o detalhamento até sexta (18/2) — data proposta por eles, e não por Aras, declarou Randolfe.

O senador acusou Aras de ser inerte e não descartou pedir seu impeachment ou investigação contra ele no Supremo Tribunal Federal.

Document dump
A inclusão de uma quantidade desproporcional de documentos em uma investigação ou processo é denominada document dump (despejo de documentos) nos EUA. Em ações cíveis, a prática é considerada irregular e pode gerar sanções à parte. Em processos penais, a medida pode configurar cerceamento de defesa.

A doutrina Brady estabelece a necessidade de a acusação entregar todas as evidências que têm, mesmo aquelas favoráveis à defesa. Além disso, a Constituição norte-americana consagra os princípios do devido processo legal e da celeridade das ações. Em conjunto, os dois buscam assegurar decisões justas e precisas.

No entanto, document dumps vão de encontro a tais princípios. Afinal, a juntada de excessivos documentos causa atrasos e ônus exagerados às partes. E isso pode dificultar o trabalho delas, especialmente da defesa.

Precedente brasileiro
Em maio de 2021, o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal do Distrito Federal, absolveu sumariamente Michel Temer, Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves, Geddel Vieira Lima, Rodrigo da Rocha Loures, Eliseu Padilha, Moreira Franco, José Yunes e Lúcio Funaro da acusação de integrarem organização criminosa — suposto esquema que ganhou na imprensa o apelido de "quadrilhão do MDB". Também foram absolvidos João Baptista Lima Filho, Altair Alves Pinto e Sidney Norberto Szabo.

Segundo o juiz, a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, por meio do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não passa de uma tentativa de "criminalizar a política". Por isso, julgou improcedente a ação, por considerar que os fatos narrados não constituem crime.

O juiz apontou que, no caso, houve cerceamento de defesa, pois o MPF anexou à denúncia cerca de quatro terabytes de documentos. Para piorar, jamais especificou o que seriam eles e não deu condições aos réus de os acessar na íntegra. Conforme o juiz, essa conduta do MPF constitui "abuso de direito de acusar".

"Esse procedimento evidencia, a um só tempo, abuso do direito de acusar e ausência de justa causa para a acusação. É que, ao somar às irrogações genéricas contidas na denúncia uma quantidade indiscriminada e invencível de documentos, o Ministério Público Federal impede possam os denunciados contraditar os fatos e as provas que lhes dão supedâneo", avaliou.

"O princípio da legalidade estrita e a garantia constitucional da ampla defesa demandam proceda o Ministério Público Federal à exata descrição da conduta tida por ilícita na inicial acusatória e à especificação das provas que pretende apresentar. A imputação sub examine, contudo, faz tábua rasa destas exigências constitucionais, como se lhe fosse lícito atribuir aos demandados o ônus de se defender de acusação indeterminada, pretensamente apoiada em documentos jamais especificados e apresentados de forma tal que impede possam ser identificados e contraditados", concluiu o julgador.

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