Trabalho Contemporâneo

Supremo Tribunal Federal e 'pejotização': o rei está nu!

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15 de fevereiro de 2022, 8h00

Quem não se lembra da história infantil "A Roupa Invisível do Rei"? Nele, o soberano, segundo a versão de Hans Crhistian Andersen, encomenda de um bandido uma rara vestimenta, que somente poderia ser vista por pessoas inteligentes. Para resumir, o malandro recebe diversos materiais raros e exóticos, começa a fingir que tece algo e apresenta o resultado para o rei, que finge ver o resultado, assim como todos os súditos, pois admitir o contrário seria passar atestado de burrice e, em consequência, perda do posto de líder do povo.

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A situação da pejotização na área trabalhista é bastante semelhante. Trata-se de fenômeno relativamente recente, em que, ao invés de se contratar um ser humano trabalhador com vínculo de emprego, constitui o próprio trabalhador uma pessoa jurídica para, através dela, prestar seus serviços a uma empresa.

Juridicamente, ao menos para serviços intelectuais, já decidiu o Supremo, em decisão vinculante, a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, que dispõe: "Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil".

A questão, então, do ponto de vista trabalhista, ficou resumida à indagação se, em cada caso concreto, a contratação de trabalhador através da sua própria pessoa jurídica seria ou não fraude, ou seja, se tal expediente estaria servindo apenas para mascarar a relação de emprego.

Em caso negativo, o trabalhador não obteria o desejado vínculo de emprego. Na situação inversa, o vínculo seria reconhecido, sendo que o valor pago mensalmente à pessoa jurídica, através de nota fiscal, seria considerado como o valor do salário do empregado agora fixado como tal, incidindo sobre este montante todos os direitos trabalhistas (férias, 13ºs, FGTS etc.).

O problema, a bem da verdade, seria verificar se as partes de tal negócio estariam violando o ordenamento jurídico, seja unilateralmente, quando o suposto empregador impõe tal medida ao empregado coagido, seja bilateralmente, quando ambos desejam essa nova modalidade de contratação, basicamente para evitar encargos tributários de parte a parte (só de Imposto de Renda um trabalhador pode ter retidos na fonte 27,5% do salário).

E, nesse ponto, vem o grande tema por trás de todo esse debate: a configuração do vínculo de emprego é obrigatória? Deve o julgador levar em conta a vontade das partes na escolha da relação jurídica que os vincula ou deve simplesmente verificar se os requisitos do vínculo de emprego estão presentes e, caso positivo, reconhecer a fraude para declaração da relação empregatícia? A forma de contratação pode ser objeto de livre disposição de trabalhadores e tomadores dos serviços?

A jurisprudência trabalhista já se dividia. E o STF, com a recente decisão proferida na RCL 47.843 (cujo acórdão ainda não foi publicado), parece escancarar essa divisão. São dois grupos bem definidos: os que aplicam cegamente os requisitos da relação de emprego e os que levam em conta a vontade do trabalhador e dotomador dos serviços.

O primeiro grupo não faz distinção das situações em jogo. Tanto faz o trabalhador não ter instrução ou possuir nível superior, perceber pagamentos equivalentes ao salário mínimo ou valores vultosos (eu mesmo já vi casos de pagamento de R$ 70 mil por mês através de pejotização).

O resultado é que nem sempre o tiro parece acertar o alvo. Enquanto muitos trabalhadores de baixa renda precisam, de fato, se submeter a coações dos tomadores dos serviços para laborarem através de PJs, o que obviamente configura fraude à CLT, extirpada pela aplicação do seu artigo 9º ("Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação"), aquele primeiro grupo acaba permitindo que trabalhadores de alto nível intelectual, com renda elevadíssima, obtenham, após o fim da relação jurídica por uso da PJ, condenações literalmente milionárias na Justiça do Trabalho.

Aplica-se a proteção criada para o trabalhador hipossuficiente, lembrando que a construção histórica do Direito do Trabalho levou em consideração essa gama de trabalhadores, para quem dela não necessita. Cria-se, assim, uma fábrica de milionários.

Essa percepção, que o primeiro grupo prefere não ver, ou apenas elogiar a roupa invisível do rei, gera uma enorme distorção, pois direitos básicos criados para garantir o mínimo existencial, a dignidade da pessoa humana do trabalhador, se transformam em panaceia de uma riqueza imoral.

A fórmula é simples. O trabalhador de alto nível e renda prefere a contratação através de pessoa jurídica porque, na sua contabilidade, ganhará muito mais com um regime tributário simplificado, recolhendo a própria previdência como bem entender, percebendo do tomador dos serviços o valor cheio diretamente através de nota fiscal.

Após alguns anos utilizando de tal expediente, que, repito, lhe é favorável, ao término dessa relação jurídica busca a Justiça do Trabalho sob as vestes de um trabalhador hipossuficiente, vilipendiado em seus direitos. Ganhando o vínculo, consegue o passe mágico para amealhar alguns milhões que, pela via normal, jamais conseguiria obter, a iniciar pelo fato de que seu salário, tivesse o vínculo de emprego sido pactuado, jamais seria naquele mesmo valor, pois a empresa precisaria reduzir o montante para fazer frente a todos os encargos tributários e trabalhistas.

Utiliza-se, portanto, de uma proteção duramente conquistada para um tipo de trabalhador com nítido dolo de aproveitamento. E escolher ficar cego para tal realidade é ainda duplamente constrangedor.

O STF, portanto, alinhou-se ao segundo grupo de entendimento que, antes de tudo, verifica se a escolha feita pelo trabalhador lhe foi vantajosa. Parece estranho ter de escrever sobre isso, mas como se poderia imaginar algum tipo de vício de consentimento se a escolha resultou em vantagem para o titular do direito?

O que muitos seguem não querendo perceber é que o trabalhador também pode agir com má-fé, buscando se locupletar através de uma legislação protetiva que não foi criada para tal finalidade. Aliás, aplicar o Direito do Trabalho cegamente contribui para a desconstrução dos seus preceitos.

O divisor de águas que o STF começa a construir revela, portanto, que o primeiro passo para se dirimir a questão é verificar se o trabalhador é hipo ou hipersuficiente, ou seja, se se enquadra dentro dos moldes tradicionais de proteção trabalhista ou se cuida de um sujeito capaz de decidir seus próprios interesses com autonomia.

Aliás, muitos confundem a questão da subordinação inerente à relação de emprego com a hipossuficiência do empregado em decidir o seu próprio destino. Subordinação constitui apenas uma forma de se trabalhar, em que o empregado coloca sua energia de trabalho à disposição do empregador.

Hipossuficiência está ligada à debilidade de forças perante o empregador, geralmente em razão da dependência econômica, o que afeta a autonomia individual de vontade. Justamente por tal motivo, o Direito do Trabalho efetua sua intervenção limitando a autonomia de vontade no contrato de trabalho através da imposição de um conteúdo mínimo obrigatório (artigo 444 e 611-B da CLT).

Ora, se o trabalhador não apresenta a característica de debilidade que justifica a limitação da autonomia da vontade, simplesmente não há razão de ser a imposição da relação de emprego, principalmente quando tal modelo sequer traria vantagem para o próprio trabalhador.

A área trabalhista precisa, para se renovar e continuar justificando sua existência, começar a admitir certas obviedades que a sociedade já percebeu. Quando não é uma criança, mas o próprio STF que grita "o rei está nu!", o mínimo que se pode fazer é parar para refletir e reconsiderar a forma obtusa de se impor direitos a quem não precisa.

A segurança jurídica, o investimento, a liberdade econômica e a livre iniciativa agradecem.

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