Defesa da Concorrência

Previsibilidade e segurança jurídica nos acordos do Cade

Autores

  • Mauricio Oscar Bandeira Maia

    é advogado parecerista na área de Direito Concorrencial e auditor do Tribunal de Contas da União. Foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica entre 2017 e 2021. É Mestre em Direito pelo Instituto de Direito Público (IDP).

  • Isabel Jardim

    é advogada no escritório Vilanova Advocacia e ex-assessora no tribunal do Cade.

14 de fevereiro de 2022, 8h00

As soluções negociadas têm sido muito estimuladas em diversas searas em nosso país, especialmente no Poder Judiciário, com o propósito de desafogar os tribunais, sempre assoberbados de processos e litígios, ante o seu potencial de redução dos custos processuais e da pacificação da lide entre as partes. Não obstante, a evolução dessas soluções ainda é lenta e pouco expressiva naquele Poder.

ConJur
No âmbito do direito concorrencial, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) tem sido um precursor no uso desse mecanismo, utilizando-o como ferramenta poderosa para a implementação de uma política concorrencial reconhecidamente exitosa.

Um dos principais instrumentos de composição utilizado pelo Cade é o Termo de Compromisso de Cessação (TCC), o qual consiste em um acordo firmado entre a Autoridade da Concorrência e as empresas ou pessoas físicas investigadas por infrações à ordem econômica, por meio do qual os signatários se comprometem a cessar as práticas ainda em apuração, dentre outras obrigações possíveis.

Já em casos de TCCs celebrados em investigações de cartel, os signatários também assumem o compromisso obrigatório de recolherem ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos uma contribuição pecuniária, cuja base de cálculo é o valor da multa esperada caso fossem condenados, com a incidência de um desconto concedido segundo critérios objetivos estabelecidos no Regimento Interno[3] e no Guia de TCCs do Cade[4].

Nesse contexto, o TCC assume papel de grande importância para a política de defesa da concorrência no Brasil, pois se tornou um dos principais instrumentos do Cade para o cumprimento de sua função repressiva, no que se refere ao controle de condutas.

Embora o primeiro TCC tenha sido firmado pelo Cade em 1995, somente a partir de 2013 — após, portanto, a entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 — é que houve um aumento significativo no número de acordos dessa natureza celebrados pela autarquia[5]. Segundo Saito (2021), 349 TCCs foram celebrados entre 2012 e 2019, enquanto na vigência da lei anterior, Lei nº 8.884/1994, foram celebrados apenas 38 ajustes semelhantes.

O sucesso do programa de TCC parece se justificar pelo fato de que o instituto gera diversos benefícios, tanto para os administrados quanto para a Administração Pública. Para a última, o TCC é utilizado com vistas a coibir a conduta anticompetitiva sob investigação, permitindo a aplicação imediata da política antitruste e a cessação do ilícito, sem a necessidade de se esperar a finalização do processo administrativo, o que pode demorar muitos anos. Além disso, os TCCs também podem funcionar como meio para obtenção de provas sobre as condutas investigadas[6].

No que diz respeito aos administrados, a celebração de TCC garante que o processo administrativo ficará suspenso enquanto estiver sendo cumprido o compromisso e será arquivado ao término do prazo fixado, se atendidas todas as condições estabelecidas no termo, consoante o artigo 85, § 9º, da Lei nº 12.529/2011. Outrossim, os signatários de TCC também obtêm redução do valor da multa a qual seriam obrigados a pagar em caso de eventual condenação ao final do processo administrativo.

A negociação do termo de compromisso pode ocorrer perante a Superintendência-Geral (SG/Cade) ou perante o tribunal, a depender da fase em que se encontrar a investigação[7].

De seu turno, a decisão sobre as condições do acordo e sobre a homologação de sua proposta ocorrerá de acordo com o juízo de conveniência e oportunidade do Cade, a depender das circunstâncias do caso concreto. A homologação das propostas, no entanto, deverá acontecer apenas quando o Termo proposto atender aos interesses protegidos pela Lei de Defesa da Concorrência e aos seus requisitos.

Como se nota, trata-se de ato discricionário da Administração Pública, sujeito aos critérios de conveniência e oportunidade, porém sem margem para confundi-lo como ato arbitrário ou de mera voluntariedade do ente público.

Os requisitos mínimos para a celebração de TCC estão previstos no art. 85 da Lei nº 12.529/2011 e nos artigos 179 e seguintes do Regimento Interno do Cade, quais sejam, a) compromisso, por parte do representado, de não praticar a conduta investigada; b) fixação do valor da multa para o caso de descumprimento, total ou parcial, das obrigações compromissadas; c) obrigações que o Cade julgar cabíveis para alcançar a finalidade específica do TCC a ser firmado e, apenas para casos de condutas coordenadas, d) fixação do valor da contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Nos casos que investigam acordo, combinação, manipulação ou ajuste entre concorrentes e a negociação ocorrer perante a SG/Cade, também será exigida a colaboração do signatário com a instrução processual como requisito para celebração do TCC, elemento esse que tem sido bastante útil para diversas investigações de cartel.        

Conforme mencionado acima, embora esses requisitos sejam obrigatórios, a definição dos seus parâmetros ocorrerá a juízo de conveniência e oportunidade da autoridade antitruste, a depender das circunstâncias de cada caso. Conquanto o Regimento Interno do Cade determine limites à discricionariedade na definição de alguns desses parâmetros, como o faz, por exemplo, ao definir as faixas mínimas e máximas de descontos a serem concedidos sobre o valor da contribuição pecuniária a depender da ordem de apresentação dos requerimentos de TCC e do órgão responsável pela negociação, outros requisitos, a exemplo da fixação do valor da multa para o caso de descumprimento de obrigações compromissadas carecem de definição objetiva sobre seus limites.          

Como consequência disso, os requisitos deixados em aberto variam substancialmente conforme o caso. No estudo intitulado "TCC na Lei nº 12.529/11", publicado pelo Cade em 2021, foi identificada grande disparidade nos valores das multas por descumprimento total das obrigações firmadas no âmbito dos TCCs. Também foram obtidos resultados díspares "para os percentuais de comparação entre as contribuições pecuniárias e as multas por descumprimento total", que variaram de 1.500% até o mínimo de 0,10% (SAITO, 2021, p. 63)[8].

Também é possível notar, com relação a parâmetros que, à primeira vista, pareceriam mais objetivos, como a contribuição pecuniária dos TCCs, pouca previsibilidade na sua definição. Sobre este ponto, o estudo supramencionado identificou que na definição da base de cálculo material para as contribuições pecuniárias de TCCs apenas 38 requerimentos, num universo de 349, seguiram os termos da Lei nº 12.529/2011. Por outro lado, "diferentemente da base de cálculo material, a temporal parece ter maior padronização" (SAITO, 2021, p. 35).

Levando-se em conta que a contribuição pecuniária é apurada com base na "multa esperada" em caso de condenação, as inovações hoje vistas na forma de cálculo das multas aplicadas nos processos administrativos, defendidas por alguns membros do Tribunal, possuem o condão de tornar ainda mais difícil a previsibilidade desse cálculo, especialmente pela falta de critérios mais objetivos sobre sua metodologia e também ante a possibilidade de se ultrapassar o limite máximo de 20% previsto na lei.

Por um lado, a discricionariedade na definição dos parâmetros que regem as obrigações de um TCC permite à autoridade uma melhor adequação aos interesses perseguidos em cada investigação[9], bem como permite o balizamento dos benefícios concedidos aos signatários conforme a utilidade da sua colaboração. Ao mesmo tempo, isso também oportuniza ao signatário mais espaço para negociar as obrigações compromissadas de forma a atingir condições mais aderentes aos seus interesses e capacidades.

Em sentido oposto, a disparidade na definição destes parâmetros pode gerar insegurança aos administrados, os quais encontram dificuldades ao tentar prever minimamente as condições necessárias para o sucesso na celebração de um acordo com o Cade.

Levando-se em conta a importância do TCC como meio pelo qual a autoridade frequentemente alcança diversos benefícios, como a já citada possibilidade de aplicação imediata da lei antitruste, a cessação da conduta competitiva, além da possível colaboração com a investigação e o menor dispêndio de recursos financeiros e humanos por parte da Administração Pública, parece-nos indispensável que o Cade continue adotando uma postura incentivadora à celebração deste tipo de acordo.

Segundo a OCDE[10], a clareza e a certeza são características fundamentais para um programa de leniência efetivo, o que também se aplica ao programa de TCC do Cade. A previsibilidade, igualmente, também se revela essencial para este fim.

Cumpre destacar que o Cade vem demonstrando esforços para garantir maior segurança jurídica aos administrados interessados na celebração de TCCs, o que se verifica, por exemplo, pelas publicações do Guia Termo de Compromisso de Cessação para casos de cartel e do documento de Trabalho "TCC na Lei 12.529/2011".

No entanto, para se atingir o intuito destas publicações, as quais buscaram consolidar e orientar as práticas e procedimentos usualmente empregados pelo Cade na celebração de TCCs com vistas a garantir maior previsibilidade e segurança jurídica ao programa[11], somente serão concretizados se houver, de fato, a aplicação destas diretrizes pelos membros do Conselho.

Por óbvio, não se pretende, aqui, defender que a jurisprudência do Cade ou de outros tribunais deva permanecer inalterada de forma irrestrita e vitalícia, ao contrário, reconhece-se que as mudanças são vitais para que seja possível para o Direito tentar acompanhar as constantes novidades que sempre surgem nas variadas estruturas da sociedade. Busca-se, na realidade, propor que essas mudanças sejam feitas com cautela e reflexão, levando em conta seus efeitos na política de defesa da concorrência como um todo, e não apenas seus efeitos em cada caso de maneira isolada.


[4] CADE. Guia: Termo de Compromisso de Cessação para casos de cartel. Brasil. Maio de 2016. Disponível em: < https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-tcc-atualizado-11-09-17.pdf> Acesso em: 10 fev. 2022.

[5] SAITO, Carolina. Documento de Trabalho TCC na Lei 12.529/11. P. 10. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 2021. Disponível em:

<https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/TCC%20na%20Lei%20n%C2%BA%2012.52911/TCC%20na%20Lei%20n%C2%BA%2012.529-11.pdf> Acesso em: 5 fev. 2022.

[6] ZARZUR, Cristiane; GARRIDO, Marcos; SILVA, Leda.  Admissão de culpa em TCC não configura reincidência. 2013. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2013-mar-26/admissao-culpa-tcc-nao-configura-reincidencia >. Acesso em: 5 fev. 2022.

[7] Art. 179, do Regimento Interno do Cade.

[8] Ibid. p. 63.

[9] VILANOVA, Polyanna; JARDIM, Isabel. O TCC e a discricionariedade do Cade: algumas reflexões. 2021. Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-jun-04/defesa-concorrencia-tcc-discricionariedade-cade> Acesso em 7 fev. 2022.

[10] OECD. 2001. Disponível em: <https://www.oecd.org/daf/ca/1890449.pdf>  Acesso em: 10 fev. 2022.

[11] Ibid. 2021.

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