Opinião

Garantia do contraditório vs. litigantes-sombra nos casos repetitivos

Autores

14 de fevereiro de 2022, 18h12

O fordismo foi um modo de produção disseminado nos Estados Unidos durante a Segunda Revolução Industrial. O modelo teve como características marcantes a produtividade alta e redução do tempo de produção. Não é para menos que, no início de sua implementação, teve grande sucesso, porém, o seu declínio veio logo. O período, demarcado por alienação do operário quanto às fases precursoras, tinha a qualidade da produção controlada apenas ao final, no último estágio da "esteira". A produtividade era a finalidade primordial.

Os julgamentos repetitivos correm o risco de incidir na mesma lógica, guardadas as devidas proporções e ressalvada a alta qualificação de nossos órgãos jurisdicionais: paradigmas são julgados para firmar tese vinculante que valerá para inúmeros outros casos semelhantes, com o fito de maior celeridade e eficiência do Judiciário. Mas será que essa técnica garante a qualidade de julgamento exigida para a fixação de tese a ser aplicada por demais órgãos jurisdicionais? Será que o julgamento de casos repetitivos, em alguma medida, segue lógica "fordista" de julgamentos?

A participação no sistema de precedentes, sob a perspectiva do acesso à Justiça, nunca foi algo tão necessário a ser discutido. Os efeitos do julgamento de casos repetitivos vêm mostrando cada vez mais a necessidade de se debater a respeito da amplitude do contraditório e ampla defesa nessas técnicas de julgamento.

Um desses debates, que merece atenção, diz respeito à atuação dos "litigantes-sombra". A jurisprudência [1] denomina assim os sujeitos que sofrerão os efeitos de uma decisão firmada em processo repetitivo, sem que tenham oportunidade efetiva de participação no processo paradigma. Refere-se a tais como "a plateia silenciosa que apenas assiste à partida, sem ao menos ter conhecimento de que ela está ocorrendo" [2].

Não há dúvidas de que, num sistema tão sobrecarregado e congestionado como o nosso  com um índice médio total de 73% em 2020 [3] , os julgamentos repetitivos, sob o viés de se pretender mais céleres, entregaram alguma rapidez a custo de certos sacrifícios. Será que a uniformização foi acompanhada de melhora qualitativa? Como se garantir o contraditório e ampla defesa dessa plateia silenciosa que sofrerá dos efeitos do julgamento e da tese firmada em repetitivo, mesmo que não tenha participado do processo paradigma que deu origem à tese?

A lei de antemão prevê algumas possibilidades. No incidente de resolução de demandas repetitivas, o relator poderá ouvir as partes e demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, além do Ministério Público (artigo 983, CPC). Também é cabível a designação de audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria (artigo 983, §1º, CPC). Regras semelhantes são previstas para o julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos (artigo 1038, CPC) e para as ações de controle concentrado de constitucionalidade (artigos 9º, Lei nº 9.868/99, e 6º, Lei nº 9.882/99).

Entretanto, será que esses mecanismos legais são suficientes para garantia da participação adequada dos denominados "litigantes-sombra"?

De plano, a qualificação do contraditório em julgamentos de precedentes é menor quando comparado ao processo coletivo. Já é constatada empiricamente a grande disparidade técnica e econômica entre os litigantes no sistema de precedentes, tendo em vista a afetação de casos individuais para a resolução da controvérsia [4], ao passo que no processo coletivo os legitimados institucionais equilibram um pouco mais o "jogo".

Ademais, mesmo com a participação do Ministério Público no procedimento de formação dos precedentes, fato é que a questão controvertida é debatida coletivamente apenas na segunda instância ou em sede de tribunal superior, sem ampla margem de produção de provas, utilizando-se daquelas produzidas para o processo individual. No processo coletivo, todos os atos já são produzidos sob perspectiva coletiva desde o inquérito civil ou, ao menos, desde a primeira instância, qualificando-se mais o contraditório para formação da coisa julgada erga omnes.

A fixação de teses jurídicas com repercussão coletiva, para a sua perfeita legitimação democrática, depende da observância rigorosa ao devido processo legal e somente isso permite ao juiz compreender a questão coletivamente e, então, decidir. E os mecanismos de intervenção do sistema de precedentes, como amicus curiae e de interessados em audiências públicas, mostram-se insuficientes.

Em realidade, verifica-se clara vantagem dos litigantes habituais que têm melhores condições econômicas e jurídicas de trazerem informações aos julgadores [5], inclusive por meio desses instrumentos. Aptos, portanto, a sobrepujar seus interesses e influenciar o julgamento a ponto de firmar suas teses pretendidas.

Um exemplo desse cenário é IRDR julgado em 2017 [6] que decidiu nove temas relacionados aos requisitos e efeitos do atraso de entrega de unidades autônomas de imóveis em construção, tais como a cláusula de tolerância e parâmetros indenizatórios. No caso em questão, houve apenas sustentação oral em defesa das incorporadoras e construtoras, visando à interpretação das cláusulas mais favoráveis a essas.

No entanto, pelas partes contrárias do feito, como consumidores e compradores, não havia sequer representante presente e o processo transcorreu sem qualquer participação desses entes. Isto é: aos litigantes com poucos recursos, basta apenas assistir ao andar da carruagem, e com sorte, diferenciar seu caso futuro com o distinguishing, à semelhança de um controle qualitativo do estágio final como o fordismo.  

Algumas soluções para esse cenário são trazidas pela doutrina e sobre algumas passa-se a discorrer, sem exclusão de outras que eventualmente surjam.

Primeira solução é enfrentar a raiz do problema: efetivar o contraditório desde logo nos casos-piloto que darão origem ao paradigma, o qual firmará a tese a ser utilizada aos casos pendentes e futuros [7]. Assim, objetiva-se selecionar aqueles processos que buscam a vitória de teses opostas, com a finalidade de equilibrar argumentos postos. Solução apta a demonstrar que não basta um critério quantitativo para avaliar o contraditório, mas deve-se também realizar a análise qualitativa do caso.

Segunda solução já posta no ordenamento: distinguishing no caso concreto (artigo 927, § 4º, CPC), possibilitando aos ausentes, em relação ao caso-piloto, que venham a demonstrar a diferença fática do seu caso em relação ao paradigma. Todavia, a realização da técnica depende de fundamentação adequada pelo órgão julgador do precedente, do contrário torna-se dificultoso diferenciar um caso de outro.

Terceira solução viável é o incentivo ao uso de audiências públicas no Poder Judiciário, tal como é frequente no âmbito do Executivo. Embora a lei processual não regule o seu processamento, não há dúvidas de que a tecnologia favorece o uso desses instrumentos. Com ela  apesar das diferenças regionais marcantes de acesso que afetam o país  é possível notificar grupo mais abrangente de pessoas para qualificar o debate de determinado caso repetitivo ou para revisão de tese anteriormente firmada.

Em alguns casos, principalmente em decorrência da pandemia da Covid-19, já há a possibilidade de audiências públicas online envolvendo meio ambiente, tal como a Resolução nº 494/2020 do Conama, que regulou a matéria. Outros envolvendo o sistema eleitoral, em que o TSE realizou audiências públicas para receber sugestões para minutas de resoluções a serem aplicadas às eleições de 2022 [8]. Alguns municípios também já vêm disponibilizando audiências públicas online para o cidadão opinar nos mais variados temas propostos pela Administração Pública [9].

Mesmo assim, nem sempre a audiência pública "porta aberta" é a melhor solução. É indispensável a ampla publicidade pelos meios de comunicação existentes e emergentes com as novas tecnologias da informação, sem contar que o julgador deve efetivamente ponderar as manifestações trazidas em audiência. Por vezes, a realização de mais de uma sessão, para os julgadores ouvirem de forma segmentada cada subclasse de interessados, pode ser mais eficiente.

Quarto mecanismo é o estímulo à participação do amicus curiae (artigo 138 CPC). É figura que fomenta o debate e garante processo mais democrático. Todavia, também tem suas limitações, como o caráter discricionário de sua admissão com base na "relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia". Para que funcione, sua inadmissão há de ser excepcional e devidamente fundamentada na falta de pertinência ou representatividade do amicus.

Ainda, na fundamentação do acórdão, os julgadores devem efetivamente sopesar os argumentos ventilados pelo amicus curiae, sob pena de nulidade da decisão (artigo 489, §1º, IV, CPC) e é indispensável, de lege ferenda, a previsão mais clara dos poderes dessa figura e não somente discricionária.

Quinta solução é justamente aprimorar o processo coletivo, como alternativa viável ao sistema de precedentes. Atualmente, há projetos legislativos em andamento para melhor desenvolvimento da tutela coletiva, notadamente o PL nº 1.641/2021, que visa a aumentar a participação em mais de um dispositivo legal, como os seguintes:

1) Consulta pública, audiência públicas e outras formas de participação direta (artigo 2º, II);

2) Ampla publicidade mediante adequada informação social a respeito das ações, decisões ou acordos de tutela (artigo 2º, VII);

3) Efetivo diálogo entre juiz, partes e demais poderes do Estado e sociedade (artigo 2º, X);

4) Escolha da ação coletiva preferencialmente como representativo da controvérsia para julgamento de casos repetitivos (artigo 6º, parágrafo único);

5) Ampliação do rol de legitimados ativos (artigo 7º), apesar de ausente o debate acerca da inclusão do cidadão como legitimado;

6) Critérios para avaliação da representatividade adequada (artigo 7º, §2º) e seu controle ao longo de todo o processo (artigo 7º, §4º), o que poderia ser estendido hermeneuticamente aos intervenientes com interesse relevante e utilidade de atuação (artigo 20);

7) Técnicas de participação na autocomposição coletiva (artigo 37, III);

8) Consulta a órgãos e entidades públicas com reconhecida capacidade técnica acerca da viabilidade das obrigações assumidas em autocomposição coletiva (artigo 40).

Mesmo no projeto, remanesce o velho problema acerca da falta de previsão dos poderes do amicus curiae e de demais intervenientes, que será definido discricionariamente em cada caso concreto (artigo 22, §1º, IV).

Conjuga-se com isso a aplicação mais ampla e racional do artigo 139, X, CPC, pelos tribunais, especialmente quando se verificar que o contraditório efetuado nos processos individuais não corresponde à dimensão coletiva da controvérsia, limitando-se a contraditórios esparsos para cada caso, ou mesmo quando as provas produzidas refletirem apenas cada realidade individual, e não a realidade coletiva do litígio.

Por fim, deve-se ressaltar que a participação não deve ser disfuncional, devendo ser sempre avaliado o interesse e a utilidade de manifestação dos intervenientes previamente à sua atuação e ao longo de todo o processo.

Postas algumas soluções, não se deve buscar uma eficiência apenas quantitativa dos processos existentes, garantindo-se somente celeridade processual. A injustiça do célere, a pressa pelo julgamento e a tentativa de diminuir o assoberbamento do Judiciário não podem ser motivos para que se tenha uma prestação jurisdicional sem a devida legitimação, entregue em modelo "fordista" de produção de decisões.

Deve-se, sim, ponderar as vantagens dos julgamentos repetitivos, mas sem se olvidar de suas mazelas: a participação processual dos litigantes-sombra deve ser muito bem discutida e refletida, a fim de não se permitir a exclusão de sujeitos que, na prática, sofrerão as consequências do provimento jurisdicional.

 


[1] Expressão utilizada pelo Min. Herman Benjamin no STJ, REsp nº 911.802/RS, Primeira Seção, ministro relator José Delgado, j. 24.10.2007. Em suas palavras: "Como juiz, mas também como cidadão, não posso deixar de lamentar que, na argumentação oral perante a seção e em visitas aos gabinetes, verdadeiro monólogo dos maiores e melhores escritórios de advocacia do País, a voz dos consumidores não se tenha feito ouvir. Não lastimo somente o silêncio de dona Camila Mendes, mas sobretudo a ausência, em sustentação oral, de representantes dos interesses dos litigantes-sombra, todos aqueles que serão diretamente afetados pela decisão desta demanda, uma gigantesca multidão de brasileiras (mais de 30 milhões de assinantes) que, por bem ou por mal, pagam a conta bilionária da assinatura básica (…)".

[2] ASPERTI, Maria Cecilia. [O silêncio dos "litigantes-sombra" e a vitória da eficiência sobre o contraditório no julgamento de casos repetitivos. In: Direito processual civil contemporâneo  estudos em homenagem ao professor Walter Piva. Org. Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo; Daniel Zveibil; Luiz Dellore; Julio Cesar Bueno; Marco Antônio Perez de Oliveira. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2020, p. 555-556].

[3] A taxa de congestionamento da Justiça é o índice que resulta da divisão do número de processos existentes no Judiciário pelo número de processos julgados. O índice varia de acordo com o Tribunal, mas a média de 2020 foi de 73%. Dados em: CNJ. Justiça em números  Sumário Executivo, 2021. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/justica-em-numeros-sumario-executivo.pdf>. Acesso: 11/02/2022.

[4] ASPERTI, Maria Cecilia., op. cit., p. 566.

[5] GABBAY, Daniela Monteiro; COSTA, Susana Henriques da; ASPERTI, Maria Cecília Araujo. Acesso à justiça no Brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa. Revista Brasileira de Sociologia. v.6. nº 3. set-dez. 2019, p.175.

[6] TJSP, IRDR 0023203-35.2016.8.26.0000, Turma Especial, relator desembargador Francisco Eduardo Loureiro, j. 31.08.2017.

[7] Sobre a temática: CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo. v. 231. mai. 2014.

[9] Em São Paulo, por exemplo, é possível se inscrever em várias audiências públicas com temas abertos previamente delimitados para auxílio de propostas legislativas: <https://www.saopaulo.sp.leg.br/audienciapublicavirtual/> Acesso: 11/02/2022.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!