Opinião

O ex-juiz Sergio Moro é vítima de lawfare?

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  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

13 de fevereiro de 2022, 7h12

"La guerre! C’est une chose trop grave pour la confier à des militaires". Na frase que se atribui a Georges Clemenceau, estadista e militar francês, registra-se a inerente complexidade da questão dos conflitos militares, políticos e sociais.

Diante dos fenômenos da globalização acelerada, da difusão massiva de fake news e da velocidade no intercâmbio de informações, o campo de batalha se expande para além dos meios judiciais ou extrajudiciais de solução de conflitos, permeando todo o sistema político, jurídico, econômico e cultural.

O estudo do tema é interdisciplinar e multidisciplinar, há diversidade de ângulos nos campos das ciências sociais, jurídicas e humanas. A definição do campo de estudos de guerra de acordo com os tons do Direito é muito mais complexa, especialmente quando o assunto é a lei, a "guerra legal" através da lei.

O neologismo lawfare é uma contração das palavras law (direito) e warfare (guerra), e foi criado no âmbito do relatório "Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Conflicts" pelo general americano Charles Dunlap, em 2001, para definir l'art de faire la guerre.

Contudo, um dos primeiros registros do termo lawfare, enquanto perseguição política de grupos mais vulneráveis (lawfare insurgente), remonta a um artigo de John Carlson e Neville Yeomans publicado em 1975 (Carlson, John; Yeomans, Neville). No texto se afirma que: "Lawfare replaces warfare and the duel is with words rather than swords"   no vernáculo, "lawfare substitui a guerra e o duelo é com palavras, e não com espadas".

Segundo John Comaroff, as teorias da guerra sempre têm três dimensões: a geografia, o armamento e as externalidades.

A geografia se caracteriza pelo uso estratégico da cartografia política ou jurídica, a jurisdição. O armamento, por sua vez, é a ideia de criar uma legislação ou jurisprudência visando a combater um inimigo político com o objetivo de atingir fins pessoais. A violência da lei substitui a violência da arma. E essa é a diferença crucial entre o Estado de Direito e o Estado pela lei do lawfare. Por fim, as externalidades se caracterizam pelo ambiente criado pela mídia e pelas agências de informação, ambientes em que existem profundas colaborações entre o estado e o capital (a entrevista espetacularizada do promotor, a coletiva de imprensa de juízes). Essa é a terceira dimensão do lawfare.

Nesse contexto, qual seria a semelhança entre Jean-luc Mélenchon (presidente do grupo parlamentar France Insoumise), Rafael Correa, ex-presidente do Equador, Cristina Kirchner, ex-presidente da Argentina, e o ex-juiz Sergio Moro? Todos alegam que foram vítimas de lawfare.

O ex-juiz Sergio Moro figura no polo passivo do processo que investiga eventual conflito de interesses na sua contratação pela empresa de consultoria Alvarez & Marsal, que administra judicialmente a recuperação judicial de firmas que foram alvo da operação "lava jato".

Em sua manifestação defensiva, o ex-juiz Sergio Moro enviou manifestação ao Tribunal de Contas da União contra o pedido de bloqueio de seus bens, apresentado pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, que atua no Ministério Público junto à corte, mencionando que seria vítima de lawfare.

Na obra "Lawfare: Uma introdução", Cristiano Zanin, Valeska Teixeira e Rafael Valim defendem que o lawfare não é um mero rótulo, nem um modismo a serviço de determinada ideologia política. Trata-se, em verdade, de um fenômeno complexo, interdisciplinar e que ocupa um lugar central na reflexão sobre as democracias constitucionais contemporâneas, na medida em que é capaz de solapar, de um só golpe, o princípio majoritário e o Estado de Direito (Zanin Martins, Cristiano; Zanin Martins, Valeska Teixeira; Valim, Rafael).

Contudo, não é recente a alegação por diversas autoridades no sentido de que são supostamente vítimas de lawfare.

Jean-luc Mélenchon alegou que sofreu a prática do lawfare após ter as contas de sua campanha presidencial rejeitadas em 2017.

Da mesma forma, Rafael Correa, ex-presidente do Equador, alegou ter sido vítima de lawfare após a condenação a oito anos de prisão e suspensão de seus direitos políticos por 25 anos.

Cristina Kirchner também alegou o lawfare e acusou o Poder Judiciário de perseguição em um processo conhecido como "dólar futuro", que, segundo ela, foi "manipulado e armado no calor do processo eleitoral" de 2015. "O lawfare (guerra judicial) segue em pleno andamento. (Este processo) não apenas é um caso exemplar de lawfare, mas da interferência e manipulação do Poder Judiciário nos processos eleitorais e na política argentina", declarou a ex-presidente.

Para evitar a banalização do uso do termo, é essencial estabelecer critérios objetivos para a definição da prática de lawfare.

Há três dimensões de uso da lawfare: 1) a escolha, conforme a lei, da jurisdição onde serão julgados os agentes; 2) a escolha da lei para aniquilar o inimigo; 3) uso da mídia e das redes sociais, criando uma guerra de informação e psicológica.

Alguns exemplos de lawfare seriam a judicialização da política, a promoção de acusações sem provas, influenciar a opinião pública para obter publicidade negativa, inflar a desilusão popular, a utilização do Direito como forma de constranger o adversário, a promoção de ações judiciais para desacreditar o oponente e a retaliação às tentativas dos adversários de utilizarem normas legais disponíveis para defender seus direitos.

A persecução política através do lawfare pode ser considerada a "normalização" da Justiça de exceção, é a busca de interesses ilegítimos através de meios supostamente legítimos, pois previstos em lei. A prática de perseguir um inimigo político por meio do Direito é o método mais eficaz e rápido de se livrar de um inimigo político através do uso desproporcional da força da lei.

As externalidades jamais ocorrerão sem a cumplicidade da mídia (estado, subvenções, poder), o que se caracteriza pela plutocracia latino-americana, através da extensão do grande capital financeiro, pois o que importa não é condenar ou não, mas levantar a suspeição pública. Essa é a importância da espetacularização das operações policiais, ministeriais e judiciais, travestidas de respeito ao princípio da transparência e da publicidade. Uma mídia alimentada por informações concedidas pela política ou pelo Parquet desequilibra a balança da justiça.

Segundo Ferey, a investigação sobre a lei é parte de uma reflexão a longo prazo sobre a renovação da arte da guerra no século 21, visível no ambiente estratégico e na doutrina de utilização das forças armadas, nas quais identifica uma importante mutação: "As democracias liberais estão caminhando para um legalismo assertivo, o que afeta a sua ordem normativa. Este fenómeno foi brilhantemente descrito já em 1964 pela professora de direito de Harvard Judith Shklar, que mostra como os debates que levantam questões políticas e morais são abordados e formulados em termos jurídicos. Em sociedades pluralistas e conflituosas, a lei fornece uma linguagem supostamente neutra e consensual para a resolução de disputas. Os tribunais tendem a atuar como árbitros entre atores com interesses conflituosos. A confusão entre legalidade e legitimidade é reforçada".

Portanto, é imperativo evitar a banalização do termo lawfare, considerando que a caracterização da prática, demanda não apenas o preenchimento dos três elementos referentes às respectivas dimensões, mas também a finalidade política de excluir um inimigo político, o que não se verifica, a priori, no caso do ex-juiz.

A verdadeira caracterização do lawfare
O presságio político das manifestações de 2013, o impeachment em face da ex-presidente Dilma em 2015 e as eleições de 2018 foram três fatores fundamentais no desenho da prática do lawfare em face do Partido dos Trabalhadores, e notadamente do ex-presidente Lula.

O procedimento orquestrado no âmbito da denominada operação "lava jato" pelos meios de comunicação e pelo poderio bélico estatal em face do ex-presidente Lula caracterizou e caracteriza a prática do lawfare, notadamente pelo fato de que restou configurada a violação de diversos  artigos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9 (1 e 4)  proteção contra a prisão ou detenção arbitrário; artigo 14 (1)  direito a um tribunal independente e imparcial; artigo 14 (2)  direito de ser presumido inocente; e artigo 17  proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais da privacidade, família, casa ou correspondência, e contra ataques ilegais à honra ou a reputação).

O ex-juiz Sergio Moro sempre defendeu a ideia de que os fins justificam os meios, considerando a gravidade da acusação relativa à corrupção. É a ideia de que a hostilidade pública deve ser lançada contra suspeitos políticos poderosos, cuja acusação se tornará mais fácil se for apoiada por uma multidão.

A questão da suspeita de atos de corrupção legitima a intervenção dos Estados Unidos por meio da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA), o que caracteriza também o primeiro critério relativo à cartografia jurídica (uma jurisdição universal), que supostamente concede o direito de espionar, investigar e processar qualquer pessoa física ou jurídica, atacando concorrentes em qualquer país do mundo ("caso Boeing x Embraer").  

Em 17 de agosto de 2018, o Comitê de Direitos Humanos da ONU proferiu uma decisão histórica para a defesa das garantias fundamentais ao acolher o pedido de liminar em benefício de Luiz Inácio Lula da Silva para assegurar o seu direito de participar das eleições de 2018 do Brasil, com acesso adequado à imprensa e aos membros do seu partido político, o que não foi respeitado no território brasileiro.

Inclusive, os fatos foram ratificados por reportagem do jornal francês Le Monde de fevereiro de 2021 que confirmou a atuação de agentes do FBI e do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), em parceria e até no comando de operações da "lava jato", totalmente fora das leis brasileiras e dos tratados internacionais, o que foi registrado nas mensagens secretas divulgadas pelo site Intercept.

A mencionada operação foi permeada pela prática de diversas violações de direito material e processual configurando as três dimensões do lawfare:

1) O erro concernente à cartografia jurídica, haja vista que o próprio Supremo Tribunal Federal revisou o seu entendimento e reconheceu a incompetência da 13˚ Vara Federal de Curitiba;

2) O armamento, no que concerne às diversas leis relativas à delação premiada, utilizando-se da técnica "da cenoura e do porrete", stick-and-carrot approach e do denominado "dilema dos prisioneiros", a fim de exercer forte pressão sob os investigados garantindo um tratamento mais benéfico ao delator; e,

3) Externalidades: a cobertura massiva midiática em face das investigações perpetradas em face do ex-presidente Lula, notadamente, através da técnica blitzkrieg, tática utilizada pelos nazistas para paralisar totalmente o inimigo por meio de ataques rápidos com efeito surpresa, rapidez da manobra e brutalidade do ataque para desmoralizar inimigo e evitar a organização da defesa.

Portanto, o lawfare não se trata apenas de estratagema argumentativo-defensivo e é preciso evitar a banalização de sua caracterização, considerando que é inerente à configuração do instituto a presença dos elementos relativos às suas três dimensões (cartografia, armamento e externalidades), além do objetivo político de afastar um inimigo político através da politização do Direito ou da judicialização da política.

 

Referências bibliográficas
CARLSON, John; YEOMANS, Neville. "Whither Goeth the Law: Humanity or Barbarity". In: SMITH, Margareth; CROSSLEY, David. The way out: Radical alternatives in Australia. Melbourne: Lansdowne Press, 1975. Disponível em: http:// www.laceweb.org.au/whi.htm. Acesso em 8 de fevereiro de 2022).

COMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Law and Disorder in the Postcolony, em The University of Chicago Press, 2006, p. 29-30: "In the process, too, it becomes clear that what imperialism is being indicted for, above all, is its commission of lawfare: its use of its own rules—of its duly enacted penal codes, its administrative law, its states of emergency, its charters and mandates and warrants, its norms of engagement—to impose a sense of order upon its subordinates by means of violence rendered legible, legal, and legitimate by its own sovereign word".

OMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Ethnicity, Inc., em The University of Chicago Press, 2009, p. 56: "Lawfare, the use of legal means for political and economic ends is endemic to the technology of modern governance. Democratic and authoritarian states alike have always relied on constitutions and statutes, on charters, mandates, and warrants, on emergency and exception — on the violence inherent in the law — to discipline their citizenry".

COMAROFF JEAN ET COMAROFF JOHN L., 2006, "Law and Disorder in the Postcolony: An Introduction", in Comaroff Jean et Comaroff John L. (dir.), Law and Disorder in the Postcolony, Chicago, London, University of Chicago Press.

DUNLAP JR., Charles. Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Conflicts. Article  Humanitarian Challenges in Military Intervention Conference, Washington, DC, 2001.

DUNLAP JR., Charles. Lawfare Today: A Perspective, em Yale Journal of International Affairs, 2008, p. 146: "Although I’ve tinkered with the definition over the years, I now define 'lawfare' as the strategy of using  or misusing  law as a substitute for traditional military means to achieve an operational objective".

FEREY, Amélie. Droit de la guerre ou guerre du droit ? Réflexion française sur le lawfare.

GOMÉZ, Santiago. Lawfare y operações psicológicas. Disponível em http://www.agenciapacourondo.com.ar/patria-grande/lawfare-y-operaciones-psicologicas.

MBEMBE ACHILLE, 2006, "On politics as a form of expenditure", in Comaroff Jean et Comaroff John L. (dir.), Law and Disorder in the Postcolony

SHKLAR, Judith N. Legalism. Harvard University Press, 1964, p. 1.

ZANIN MARTINS, Cristiano ; Zanin Martins, Valeska Teixeira ; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo : Editora Contracorrente, 2019.

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