Tribunal do Júri

A persecução penal na Inglaterra normanda

Autor

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

12 de fevereiro de 2022, 11h33

A invasão normanda da Inglaterra, fato ocorrido em 1066, na famosa batalha de Hastings, configura um dos grandes marcos da história mundial e do Direito. Após a morte de Edward, the Confessor (1003-1066), inaugura-se uma batalha pelo trono inglês envolvendo Harold of Wessex (1022-1066) e William, the Conqueror (1028-1087). Consagrada a vitória de William[1] (que da confluência entre a língua alemã e a francesa foi traduzido para o português como "Guilherme"[2]) — primeiro rei normando da Inglaterra —, o mundo passa a vivenciar a colisão de duas culturas.

Spacca
Seria temerário — para dizer pouco — que William e os barões normandos impelissem à força um novo modo de viver e aplicar o Direito (costumeiro), pois, enquanto a população da Inglaterra da época girava em torno de 2,5 milhões de habitantes, William contava com apenas 5 a 7 mil apoiadores. Os invasores falavam francês e a sua língua escrita era o latim (porém, o latim da França)[3]. O direito normando da época não era codificado e, mesmo após ter se tornado rei da Inglaterra, o duque normando não deixou um legado de leis permanentes. Num olhar geral, a respeito dos registros da época, poderíamos dizer que os normandos tinham poucas leis além do "the good old rule, the simples plan"[4]. Diante disso, de maneira sábia, aceitou a estrutura existente; se intitulou herdeiro do último rei anglo-saxão; assegurou a formalidade da deliberação pelo Witan ("wise men", que posteriormente foi conhecido como curia regisKing’s court)[5] de questões políticas e de interesse público; jurou seguir as leis costumeiras; e foi consagrado por um sacerdote anglo-saxão[6].

Nos anos de 1070, William introduziu uma revolução no campo militar anglo-saxão inaugurando a cavalaria e, com ela, o vínculo entre o cavaleiro e o rei, ou seja, a retribuição (fief) dada pelo rei ao cavaleiro que, após o juramento de lealdade (oath of homage), se comprometia a prestar os seus serviços militares quando convocado. Até então, os anglo-saxões desconheciam qualquer relação obrigacional envolvendo suas propriedades, eis que o vínculo existente era de natureza pessoal e não real. Dessa forma, antes da invasão normanda, os anglo-saxões tinham a liberdade de livre dispor de suas propriedades, podendo inclusive dividi-las e transmiti-las a terceiros, ou seja, até então não existia o fundamento que alicerçava a relação feudal: a propriedade hereditária ou direitos concedidos por um soberano a um vassalo em troca de sua lealdade e serviços feudais[7].

A incorporação da cavalaria no espaço inglês foi extremamente importante. Primeiro, porque fortalecia a posição do rei com a arma mais poderosa da época (o cavaleiro montado). Segundo, porque introduzia uma relação contratual que reforçava a estruturação social e obrigacional em face do rei, o qual era o proprietário de todas as terras[8].

Porém, nada mais natural e esperado que dentro de uma estrutura de dominação existissem conflitos entre conquistados e conquistadores. Assim, para amenizar as hostilidades entre anglo-saxões e normandos, os invasores se utilizaram de quatro grandes institutos: (i) hue and cry; (ii) frankpledge; (iii) murdrum fine; e (iv) King’s Peace.

O hue and cry era o barulho (clamor, tumulto, gritaria, etc) que se esperava fosse feito por um cidadão caso se deparasse com a prática de um crime, possibilitando que os demais fossem alertados e realizassem a prisão do criminoso[9]. Assim, confiava-se que caso alguém se defrontasse com um crime grave (felony), precisaria imediatamente alertar os demais moradores da localidade, sob pena, — inclusive — de tornar-se suspeito da prática do ilícito. Ademais, assim que escutassem o grito (Out! Out!), confiava-se que a população atenderia ao chamado e, devidamente preparada e armada, prenderia o suspeito ou sairia ou seu encalço.

Caso o suspeito fosse imediatamente encontrado e reagisse à prisão, seria incontinenti morto. Contudo, se não oferecesse resistência, seria amarrado juntamente com as provas do crime (p. ex.: os objetos subtraídos) e levado de imediato ao tribunal, não sendo permitido que pronunciasse qualquer coisa em sua autodefesa. Nos casos de flagrante, não era necessária a acusação ou mesmo indictment. Caso condenado, a sentença alcançava a pena de morte por enforcamento, decapitação, ou, ainda, o detido poderia ser arremessado de um penhasco, com a execução perpetrada, talvez, pela própria vítima[10].

Atuando juntamente com a prática do hue and cry havia o sistema do frankpledge (ou mutual pledge), o qual igualmente foi um instrumento importante para inibir que anglo-saxões atacassem os normandos ou saíssem impunes após a prática de um crime. O frankpledge consistia na formação de grupos de campesinos (tithings) que, em número de dez, deveriam se reunir para garantir a segurança local, perseguindo e levando criminosos a julgamento. A lista era escolhida e atualizada pelo xerife que, duas vezes ao ano, visitava a centena (hundred) e, após a sua formação, um representante da tithing era escolhido para falar em seu nome, o qual era chamado de tithingman, chief pledge, ou capital pledge.

Em 1181, a Assize of Arms determinava que sempre que chamados, os homens deveriam sair de suas casas armados para atender o hue and cry. Esse trabalho de policiamento feito por pessoas da comunidade teve início na época anglo-saxã[11], estendendo-se após a invasão normanda. Além do dever salvaguardar a ordem contra pessoas estranhas, os membros do tithings deveriam zelar pela correção um dos outros e poderiam ser punidos caso não levassem a julgamento algum dos seus membros quando suspeito da prática de um crime. Nesse sentido:

"The primary duty imposed on the frankpledge group was to ensure the appearance of any of its members suspected of serious misconduct. (Becouse women were not in frankpledge, ‘producing them in court was their husbands‘ responsability‘). Becouse jails were not widely available in the early decades after the Conquest, the frankpledge group would often have been forced to hold a suspected member. Failure to produce an accused at court would result in a fine being imposed on all of the group"[12].

Além do frankpledge, a chamada murdrum fine também era um instrumento utilizado para reprimir a impunidade. Tratava-se de uma pena de multa imposta coletivamente a uma centena (hundred) caso o corpo de um normando fosse encontrado e o assassino não localizado e levado até o tribunal:

"The murdrum fine survived long after the assimilation of the Normans, functioning in effect as a tax imposed on the locality in which an unidentificed body was found."

O pagamento representava a soma de 46 marcos, dos quais 40 eram destinados ao rei e apenas 6 para os parentes do morto![13]

Por fim, os normandos se valeram da prática germânica da "Paz do Rei" (King’s Peace) para estimular a prevenção e punição dos crimes[14]. Uma vez inexistente uma codificação formal que estipulasse todos os crimes e penas, a quebra da paz do rei equivaleria a uma forma de tipificação penal, tornando-se um slogan ritualizado para justificar a atuação da jurisdição real.

A teoria partia da noção de que todos os homens de bem (law-worthy man) — o que incluiria o morador e a sua casa — têm o direito de viver em paz e, caso fosse perturbado, teria a permissão de reagir. A paz, obviamente, tocava igualmente a figura do rei, o qual politicamente acabou por ampliá-la para vários lugares (p. ex.: templos religiosos, estradas) e outras pessoas (p. ex.: oficiais do rei), chegando a alcançar o reino em sua integralidade à medida que o poder régio crescia. Com isso, perturbar a paz – vista agora de maneira ampla — configurava uma ofensa ao próprio rei (placita coronae)! Desse modo, uma vez praticado um crime grave, a persecução do ilícito competia exclusivamente a uma corte real, sendo correto pressupor que o rei tinha grande interesse no julgamento desses casos. Primeiro, porque tinha a missão de garantir a paz social, especialmente a dos nobres normandos. Segundo, porque em caso de condenação, os bens móveis pertencentes ao condenado seriam destinados à coroa. Como alerta Cordero: "La política de los reyes exige um automatismo incompatible con las acusaciones privadas…"[15].  

Até o momento, constatamos que quando uma pessoa era detida em flagrante delito (hue and cry), deveria ser imediatamente julgada e executada. Porém, ainda nos resta avaliar os casos em que o criminoso conseguia escapar. Nessa hipótese, enquanto ainda não promulgada a Assize of Clarendon (1166) e inexistente a figura do (grand) júri, como se daria a persecução penal? Trata-se de um tema que será melhor explorado na sequência.

 

[1] Cujo agnome "o conquistador" já era um belo indicativo de quem venceria a batalha pelo trono inglês.

[2] CABRAL, Nícolas Teixeira. Como o nome William virou Guilherme? Disponível em: https://bit.ly/3rAnMph, com acesso em 20/01/2022.

[3] POLLOCK, Frederick; MAITLAND, Frederic William. The History of English Law Before The Time Of Edward I. London: Cambridg University Press, 1895, p. 89.

[4]For Why? –  becouse the good old rule.

Sufficeth them; the simple plan,

That they should take who have the power,

 And they should keep who can“. (Rob Roy’s Grave – Poema escrito por William Wordsworht).

[5] O Witan era um conselho que auxiliava o rei a decidir matérias administrativas e litigiosas. “The members of the King’s council who sat to assist the King in administrative and judicial matters. Among the members were eadormen, bishops, abbots, high officers, and occasionally the king’s friends and relatives“. (Black’s Law Dictionary, 10ª. ed. GARNER, Bryan A. (editor). United States of America: Thomson Reuters, 2014, p. 1836). „The King routinely deliberated with major landholders and household officials about important matters of state. These advisers formed a court, the Witan, which the Normans perpetuated as the curia regis (King’s court).“ (LANGBEIN, John H. et alii History of the Common Law. Ob. cit, 2009, p. 08).

[6] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Aspen Publishers, 2009, p. 08.

[7] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. Ob. cit., p. 11.

[8] Por outro lado, esse duplo papel desempenhado pelo rei (de suserano feudal e soberano político) acaba por ser o germe de uma futura forma de monarquia limitada por obrigações recíprocas (LANGBEIN, John H.; et alii. History of the Common Law. Ob. cit., p. 12).

[9] “The public uproar that, at common law, a citizem was expected to initiate after discovering a crime. – Also termed vociferatio; clamor. ‘Hue and Cry is the old Common Law mode of pursuing, ‘with horn and voice’, persons suspected of felony, or having inflicted a wound from which death is likely to ensue’ (Joseph Chitty, A Practical Treatise on the Criminal Law 26 (2ª. ed. 1826)’. (Black’s Law Dictionary, 10ª. ed. GARNER, Bryan A. (editor). United States of America: Thomson Reuters, 2014, p. 858).

[10] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. Ob. cit., pp. 21-22. Com efeito, segundo Maitland, quando o acusado era detido em flagrante, ou com os bens pertencentes à vítima, “ele era tipicamente executado no mesmo lugar, sem julgamento ou defesa”. (LANGBEIN… ob. cit., p. 23). E, para Bracton, a pessoa que é “presa sobre o corpo de um homem morto e com a sua faca gotejando sangue… não pode negar a óbito, nem é necessária mais prova”. (Ib).

[11] De acordo com Chamelin, Fox e Whisenand, essa forma de policiamento comunitário data da época do rei Alfredo, o Grande (870-901). (CHAMELIN, Neil C.; FOX, Vernon B.; WHISENAND, Paul M. Introduction to Criminal Justice. Estados Unidos: Prentice Hall, 1942, p. 30).

[12] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. Ob. cit., p.28.

[13] POLLOCK, Frederick; MAITLAND, Frederic William. The History of English Law Before The Time Of Edward I. London: Cambridg University Press, 1895, p. 803.

[14] A “paz do rei” era utilizada pelos povos germânicos com o objetivo de evitar as vinganças de sangue que poderiam ser desmedidas e intermináveis, ceifando a vida de inúmeros membros do clã e colocando em risco a segurança de todos caso ocorressem invasões por parte de outros povos. Para substituir a retaliação entre famílias, os povos germânicos fixavam valores que deveriam ser pagos para cada tipo de ofensa perpetrada.

[15] CORDERO, Franco. Procedimento Penal. Tomo I, Santa Fé de Bogotá – Colombia: Editora Temis S.A., 2000, p. 18.

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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