Opinião

As questões de gênero e de família na tributação de pensões alimentícias

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10 de fevereiro de 2022, 17h08

A questão relativa ao tratamento dado via Imposto de Renda ao pagamento das pensões alimentícias, cuja análise foi retomada pelo Plenário do STF, é antiga e inconstitucional por ferir a capacidade contributiva e, ainda, por interferir na liberdade familiar, que, nos termos do artigo 226 da CRFB, é a base da sociedade e frui de proteção especial do Estado.

É que quem paga a pensão pode deduzir integralmente essa despesa do seu IRPF, enquanto quem recebe, além de ser tributado pela verba que recebeu, apenas tem o direito de abater despesa com dependente ao insuficiente limite anual de R$ 2.275,08.

Embora o tema seja pouco explorado no Brasil, Misabel Derzi foi sábia em debate-lo à luz do Direito Comparado  sobretudo a partir das discussões norte-americanas , alertando para a possível influência da política fiscal sobre decisões familiares. A neutralidade tributária deveria ser observada pelo menos nas escolhas familiares, tais como casar ou não, ter filhos ou não, entre outras.

Apesar de pouco examinado, temos tido alguns sinais de que esse assunto vem evoluindo no Brasil. Um exemplo otimista disso se deu no julgamento da ADI nº 5.583, em que, pela primeira vez, o STF adotou sentença manipulativa no Direito Tributário, ampliando o conceito de "dependente" previsto na norma legal.

Mais recentemente, com a ADI nº 5.422, ajuizada em 25 de novembro de 2015 pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) e distribuída à relatoria do ministro Dias Toffoli, pôs-se em pauta a constitucionalidade da tributação via IRPF de obrigações alimentares oriundas do Direito de Família.

O argumento desenvolvido questionou a compatibilidade das pensões alimentícias e alimentos com o conceito de "renda ou proventos de qualquer natureza", sob a ótica do beneficiário dessas prestações.

Até o momento, foram proferidos os votos do relator, ministro Dias Toffoli, dos ministros Barroso e Alexandre de Moraes, em seus respectivos votos-vista, e, ainda, da ministra Cármen Lúcia. Todos entenderam pelo afastamento da incidência do IRPF devido por beneficiários de alimentos ou pensões alimentícias baseadas no Direito de Família, por não haver compatibilidade com o conceito de renda, configurando meros "ingressos".

Ainda que a lógica prospere e que, com o andamento do julgamento no STF, a tendência pareça ser pela inviabilidade da tributação via IRPF da pensão recebida, valem algumas considerações.

É interessante que o voto do ministro Barroso, um pouco mais exploratório que os demais, identificou a incidência questionada como uma imposição anacrônica e anti-isonômica, ao vincula-la às discriminações implícitas contidas na legislação tributária em prejuízo das mulheres e equivalente benefício dos homens.

O argumento fundou-se em comparativo entre a dedução dos valores pagos pelo alimentante e a tributação desses mesmos valores pelo alimentado, na apuração de seus respectivos IRPFs, considerando que as mulheres são as que, preponderantemente, recebem a guarda dos filhos, beneficiários das pensões. Seu voto tem uma abordagem protetiva da mulher, visão que deriva da linha da tributação da família.

Embora esse ponto seja central, aproveitamos para destacar outros três aspectos envolvidos na controvérsia que corroboram a discriminação implícita de gênero.

O primeiro é que, se a mulher optar por fazer a declaração conjunta com seu dependente, ela experimenta limites legais à dedução a que faz jus, ao passo que o homem tem a benesse da dedução integral.

O segundo, dialogando inclusive com uma passagem do voto do ministro Barroso, que infelizmente não foi retomada no tópico da isonomia, diz respeito à heterogeneidade do reflexo tributário do cumprimento das obrigações pelo pai ao dependente in natura (gastos diretos com saúde e educação do dependente, por exemplo) ou in pecunia (transferência do dinheiro para gestão do beneficiário ou sua representante).

É que, considerando que o IRPF a recolher aumenta na hipótese da prestação in pecunia, verifica-se uma indução tributária para que o alimentante opte pelo pagamento in natura, o que mitiga de modo relativo o poder familiar exercido pela mulher com relação, por exemplo, à escola que o filho frequenta e ao seu plano de saúde, muito embora seja ela que se dedique no cotidiano à mantença do beneficiário.

Portanto, foi proferido voto que visa a trazer em debate a proteção da mulher e a necessidade de um reequilíbrio na estrutura atual das deduções, mas que não circunstancia a questão às repercussões familiares.

E daí vem o terceiro ponto. O menor sob a guarda não aufere renda própria, pois é sustentado pelos seus representantes legais, que têm a sua capacidade contributiva em representação afetada. Assim, é inviável presumir que o gasto realizado com o menor integre o conceito de renda líquida, seja para quem paga a pensão, seja para quem a recebe, afinal, a recebe como gestor de outrem.

O tratamento dispensado ao menor deve ser o mesmo, independentemente de quem tenha a sua guarda ou de seus progenitores estarem juntos. Claramente, não funciona desse modo. Se o casal está junto e declara separadamente, o menor é dependente de um deles, que fará jus à dedução dos R$ 2.275,08 por ano, enquanto o outro nada tem a deduzir, a despeito da probabilidade de que ambos incorram em gastos com o menor.

Por outro lado, se o casal está separado, cria-se tal heterogeneidade fiscal injustificada entre eles, na linha do argumentado pelo ministro Barroso. Contudo, deixou-se de apreciar que a não tributação das pensões cria um efeito colateral relevante.

Isso porque se, além da dedução integral, o recebimento de pensão não for tributado, chega-se à conclusão exótica de que a política fiscal estimulará o divórcio, já que a economia tributária proporcionada pelas despesas com dependentes assim será maior. Dessa maneira, a decisão resolve, talvez, o problema da isonomia entre homens e mulheres, mas aprofunda a desigualdade entre divorciados e casados.

Embora reconheçamos que o argumento da compatibilidade com o conceito de renda prospere e constitua ratio decidendi, entendemos que essa é uma das poucas situações em que o obiter dictum cumpre uma finalidade genuinamente proveitosa, ao representar um pronunciamento explícito da Corte Constitucional com relação a uma das controvérsias mais sensíveis envolvendo tributação, gênero e família, conferindo evidência aos sérios problemas da legislação do Imposto de Renda.

O Plenário, que julga a questão nesse momento, ainda pode beneficiar a discussão com aprofundamentos pertinentes sobre a capacidade contributiva em representação e impactos sobre a tributação da família à luz da neutralidade, ao lado da questão de gênero.

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