Garantias do Consumo

A Lei do Superendividamento e o novo paradigma do mercado de crédito

Autor

  • Julio Moraes Oliveira

    é mestre em Instituições Sociais Direito e Democracia pela Universidade Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura). Especialista em Advocacia Cível pela FGV. Membro do Brasilcon e do Iberc (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Advogado e professor de graduação e pós-graduação em Direito.

9 de fevereiro de 2022, 8h00

Depois de muitos anos de discussão foi aprovada, em 1º de julho de 2021, uma das atualizações do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 14.181, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Essa lei denominada por muitos como Lei Claudia Lima Marques, em virtude da atuação da brilhante professora nas discussões e aperfeiçoamento do projeto, veio para estabelecer um novo paradigma no Direito do Consumidor brasileiro e promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira, evitando-se a sua exclusão social com o comprometimento do mínimo existencial. "O prefixo super denota algo superior, acima do comum ou próprio da normalidade das relações jurídicas e econômicas [1].

Claudia Lima Marques define superendividamento como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos) [2].

O superendividamento é um fenômeno das sociedades de consumo na qual o crédito passou a ser extremamente facilitado e acessível a quase todos, na maioria das vezes até incentivado para se obter os bens de consumo disponíveis no mercado.

O ato de consumo está ligado à realização pessoal, sucesso profissional, ascensão social, dentre outra coisas [3]. O consumo passou a ser um dos aspectos de autoafirmação social. As pessoas adquirem produtos incompatíveis com seu padrão social, carros, celulares, bolsas, roupas, aparelhos de alta tecnologia, tudo para parecer o que não são. O "ter" passou a ser mais importante que o "ser".

O superendividamento é um fenômeno atrelado à economia de mercado. "Consumo e crédito são duas faces de uma mesma moeda, vinculados que estão no sistema econômico e jurídico de países desenvolvidos e de países emergentes, como o Brasil" [4].

O superendividamento afeta aspectos importantes da dignidade humana, pois atinge não só diretamente o consumidor, mas também sua família e a sociedade, ou seja, é um problema macroeconômico também.

Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o mês de junho de 2021 teve o maior percentual de famílias endividadas no Brasil desde 2010. O primeiro semestre do ano acabou com 69,7% das famílias brasileiras endividadas, uma de alta de 1,7% em relação a maio e de 2,5% em comparação a junho de 2020. Pela segunda vez seguida houve também alta na inadimplência  [5].

José Reinaldo de Limas Lopes, em 1996, já alertava para o problema social que envolve o fenômeno do superendividamento [6], assim também Márcio Mello Casado [7].

Nitidamente baseada no modelo francês, a experiência brasileira sobre o superendividamento teve seu laboratório no projeto-piloto de renegociação em bloco coordenado pelas magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello [8], em duas comarcas do Rio Grande do Sul (Charqueadas e Sapucaia do Sul) originadas das pesquisas coordenadas pela professora Claudia Lima Marques na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ganhadoras do prêmio Innovare da magistratura, em 2009.

A definição de superendividamento e seus elementos
O §1º do artigo 54-A do Código de Defesa do Consumidor dispõe que "entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação". A Lei nº 14.181/21 definiu o conceito de superendividamento, assim como o Code de la Consommation da França em seu artigo L 711-1, modificado pela Ordonnance 2016-301. O Código Francês não menciona o mínimo existencial e inclui outros elementos.

Os elementos da definição de superendividamento são subjetivos, materiais e finalísticos.

Os elementos subjetivos ou em razão da pessoa (ratione personae). Segundo a definição de superendividado, o conceito só se aplica às pessoas naturais, pois as pessoas jurídicas já se beneficiam do procedimento da Recuperação Judicial da Lei nº 11.101/2005. Esse seria o primeiro elemento subjetivo. "Aqui a Lei 14.181/21 inova profundamente, pois cria um privilégio (a exemplo do artigo 51, I in fine do CDC) para as pessoas naturais"  [9]Cria uma espécie de recuperação de empresas para o consumidor pessoa natural. Segundo Claudia Lima Marques, tal fato é reforçado pelo fenômeno da exclusão social, que seria um aspecto atrelado somente às pessoas naturais e também o mínimo existencial [10].

"A opção brasileira foi subdividir as regras da falência dos empresários e pessoas jurídicas e de pessoas naturais, consumidoras, estas incluídas nos novos capítulos do CDC, que não prevê nenhum perdão de dívidas"[11].

Entretanto, sabe-se que há muito tempo os tribunais brasileiros vêm adotando com relação ao conceito de consumidor, a denominada teoria finalista mitigada ou aprofundada [12].

O segundo elemento subjetivo é a boa-fé do consumidor. Essa boa-fé é a boa-fé objetiva e presume-se para todos os consumidores, principalmente depois das alterações do artigo 113, §1º, do CC, que a presume para todos os aderentes, inclusive para os empresários. Caberá aos credores do consumidor demonstrar, no caso concreto a má-fé dos mesmos na obtenção dos créditos com uma possível fraude ou dolo. "Trata-se, pois de elemento geral, presumido e objetivo de boa-fé, que encontra limite na comprovação de má-fé, fraude ou dolo" [13].

Os elementos objetivos ou materiais são a impossibilidade manifesta de de pagar a totalidade das dívidas. "Por impossibilidade “manifesta” entende-se aquela que é evidente, notória, ou facilmente percebida de que o consumidor não dispõe de recursos suficientes para realizar o pagamento de todas as dívidas de consumo no vencimento" [14].

Essa impossibilidade só pode ser aferida no caso concreto, levando-se em consideração aspectos patrimoniais do consumidor como sua renda, seus gastos, sua situação financeira, ativo e passivo, situações circunstanciais como desemprego, diminuição de renda, doenças, entre outras.

Também é elemento objetivo as dívidas exigíveis e vincendas de consumo. Dívidas exigíveis são aquelas que o consumidor já pode ser cobrado imediatamente pelo credor e as vincendas são aquelas que ainda estão por vencer. Já as dívidas de consumo são aquelas que estão relacionadas aos bens de consumo adquiridos pelo consumidor, portanto, estão excluídas as dívidas tributárias fiscais e parafiscais, as de alimentos e a relacionadas às atividades profissionais. Isso implica dizer que assuntos que o STJ já considerou não serem relação de consumo, a princípio estariam excluídas da aplicação do benefício do superendividamento. Por exemplo, as dívidas oriundas do Fies, do Programa Minha Casa, Minha Vida e de crédito rural. É importante ressaltar que, apesar de não poderem ser pactuadas, elas deverão ser levadas em consideração no plano de pagamento, pois essas obrigações afetam a renda global do consumidor.

Elemento teleológico ou finalístico é o denominado mínimo existencial. O mínimo existencial é a garantia de um patrimônio intocável que preserva a dignidade do devedor. O mínimo existencial tem origem constitucional baseado no artigo 1º, III, da CF e concretiza o objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III, da CF). A ideia é que as dívidas do consumidor não comprometam de forma extrema a sua sobrevivência. O consumidor deve continuar conseguindo quitar seus débitos mínimos como água, luz, telefone, transporte, educação, dentre outras. O mínimo existencial tem sua origem no Direito Público e no Direito Privado, está ligado à ideia de impenhorabilidade do patrimônio mínimo. Já no Direito do Consumidor o mínimo existencial está presente nas discussões do corte de luz, por exemplo.

No Direito Civil é importante destacar a obra de Luiz Edson Fachin ao afirmar que o patrimônio mínimo vai ao encontro das tendências de despatromonialização das relações civis e privadas, posto que coloca em primeiro plano a pessoa e suas necessidades fundamentais [15].

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias afirmam que justifica-se esse posicionamento já que a pessoa humana é o fim almejado devendo-se sempre assegurar a dignidade da pessoa humana, nesse sentido é necessário ultrapassar as fronteiras dos direitos da personalidade para buscar também nos direitos patrimoniais, a afirmação da proteção da pessoa humana [16].

Nesse sentido é o Enunciado 4 da Primeira Jornada de Pesquisa CDEA sobre superendividamento UFRGS-UFRJ: "A menção ao mínimo existencial, constante da Lei 14.181/2021, deve abranger a teoria do patrimônio mínimo, com todas as suas aplicações doutrinárias e jurisprudenciais".

O mínimo existencial é conceito fluido e aberto de difícil definição, pois em cada caso pode-se apresentar sob um aspecto diferente, em quantidades diferentes a depender das necessidades e possibilidades de cada pessoa. Muito se discute sobre um percentual para se garantir um mínimo existencial, como 30% da renda, por exemplo. Karen Rick Danilevicz Bertoncello, em sua obra, opta por não atribuir um valor específico para o mínimo existencial. A autora afirma que o mínimo existencial deve ser construído caso a caso. "O mínimo existencial substancial (ou mínimo existencial propriamente dito) pode ser identificado ao momento, quanto à forma e quanto ao conteúdo, a saber: a) quanto ao momento, é identificado na fase conciliatória, quando alcançado o entendimento entre devedor e credor (es), com a formatação de acordo com homologado pelo juiz; ou, na fase judicial, através da prolação da sentença; b) quanto à forma (moldura), o mínimo existencial substancial deve ser assegurado ex officio, é irrenunciável, não podendo ser ficado aprioristicamente; c) quanto ao conteúdo (pintura), deve ser apurado quando da apreciação do caso concreto com a preservação de parte do orçamento pessoal do devedor para garantir que viva em condições dignas e viabilizando o pagamento das despesas básicas" [17].

Deve-se ou não fixar um percentual fixo, ele é invariável a depender da faixa de renda? Essas são algumas questões deverão ser enfrentadas. O certo é que a Lei nº 14.181/21 optou por uma regulamentação do assunto que virá posteriormente [18].

O §3º do artigo 54-A exclui as dívidas decorrentes da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. Esse elemento é um conceito jurídico indeterminado que deve ser analisado nos casos concretos não se atendo somente ao valor. Isso é o que dispõe o enunciado 16 da Primeira Jornada de Pesquisa CDEA sobre superendividamento UFRGS-UFRJ: "Para a exclusão da prevenção e tratamento do superendividamento, segundo artigo 54-A, parágrafo 3 in fine do CDC, como regra de exceção, deve-se interpretar restritivamente e atentar à combinação do alto valor e da superfluidade dos produtos e serviços, não bastando um ou outro, isoladamente; devendo ser determinada caso a caso".

É claro que esses elementos ainda vão ser extremamente debatidos na doutrina e sua aplicação prática trarão novos contornos, mas é cediço que essa nova legislação impõe um novo paradigma de crédito no mercado brasileiro impondo aos fornecedores cuidados antes não previstos.

 


[1] MIRAGEM, Bruno. A lei do crédito responsável altera o Código de Defesa do Consumidor: novas disposições para a prevenção e o tratamento do superendividamento. Colunas Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/348157/a-lei-do-credito-responsavel-altera-o-codigo-de-defesa-do-consumidor acesso em 6/12/2021.

[2] BENJAMIN, Antonio Herman. [Et al]. Comentários à Lei n 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. Thomson Reuters, São Paulo, 2021.p. 27.

[3] SOUZA, Adriano Stanley Rocha de; THEBALDI, Isabela Maria Marques. Consumo consciente: a responsabilidade do consumidor da aquisição ao descarte. In SOUZA, Adriano Stanley Rocha de; ARAÚJO, Marinella Machado (Coord.). Temas de Direito Civil. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2013. p. 9.

[4] BENJAMIN, Antonio Herman. [Et al]. Comentários à Lei n 14.181/2021.p. 28.

[5] Percentual de famílias com dívidas chega a 70% e Brasil atinge o maior nível em 11 anos, aponta CNC. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/01/percentual-de-familias-com-dividas-chega-a-70percent-e-brasil-atinge-o-maior-nivel-em-11-anos-aponta-cnc.ghtml acesso em 1/12/2021.

[6] LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento — Uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor, vol. 17/1996. P57-64, jan.-mar./1996,p. 58.

[7] CASADO, Márcio Mello. Os princípios fundamentais como ponto de partida para uma primeira análise do sobreendividamento no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 33, jan.-mar/2000. p. 130.

[8] Ver LIMA, Clarissa Costa; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiência no Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ, 2010.

[9] BENJAMIN, Antonio Herman. [Et al]. Comentários à Lei n 14.181/2021.p. 33.

[10] BENJAMIN, Antonio Herman. [Et al]. Comentários à Lei n 14.181/2021.p. 33/34.

[11] BENJAMIN, Antonio Herman. [Et al]. Comentários à Lei n 14.181/2021.p. 35.

[12] Sobre essa discussão, já tivemos a oportunidade de debater em texto publicado. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Breves considerações sobre a aplicação da Lei do Superendividamento ao empresário e à sociedade empresária através da teoria finalista mitigada. Disponível em: https://magis.agej.com.br/breves-consideracoes-sobre-a-aplicacao-da-lei-do-superendividamento-ao-empresario-e-a-sociedade-empresaria-atraves-teoria-finalista-mitigada/ acesso em: 26/1/2022.

[13] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7 edição revista, atualizada e ampliada. Thomson Reuters, São Paulo. 2021. p.. 1257.

[14] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7 edição revista, atualizada e ampliada. Thomson Reuters, São Paulo. 2021. p.. 1257.

[15] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.p. 11-12.

[16] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte Geral e Lindb. 14. Edição. Revista, Atualizada e ampliada. Editora Juspodvm: Salvador, 2016. P. 505.

[17] BERTONCELLO, Karen. Superendividamento do consumidor — Mínimo existencial — Casos concretos, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015. p. 123.

[18] Enunciado 5 da Primeira Jornada de Pesquisa CDEA sobre superendividamento UFRGS-UFRJ: A falta de regulamentação do mínimo existencial, que tem origem constitucional, não impede o reconhecimento do superendividamento da pessoa natural e a sua determinação no caso concreto.

Autores

  • é advogado, mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade Fumec, especialista em Advocacia Civil pela Escola de Pós-Graduação em Economia e Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, professor da Faculdade de Pará de Minas e professor da Faculdade Asa de Brumadinho.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!