Opinião

Produção de falsas memórias pela fabricação forçada

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8 de fevereiro de 2022, 15h03

Pesquisadores sociais há muito reconhecem que práticas sugestivas de entrevistas forenses estão entre as principais causas de imprecisões na memória de testemunhas. Sobre esse tema, os psicólogos Henry L. Roediger, James Derek Jacoby e Kathleen B. McDermott, professores do Departamento de Ciências Psicológicas e Cerebrais da Universidade de Washington, realizaram um importante teste para avaliar a criação de falsas memórias por meio das perguntas de um interrogatório [1]. Nesse experimento, 112 alunos da graduação visualizaram uma sequência de 33 slides com cenas de um crime e leram um relatório policial sobre os fatos que continham mais informações do que as imagens do crime. Em seguida, responderam a perguntas, sendo que três delas continham informações falsas, ou seja, faziam referência a fatos que não estavam presentes nem nos slides, nem no relatório. Dois dias após, esses estudantes foram instruídos a responder perguntas apenas se tivessem certeza sobre os fatos presentes nos slides, mas 33% deles acabaram incluindo espontaneamente informações contidas no relatório como também informações falsas que estavam presentes somente nas perguntas do primeiro dia de teste. As informações falsas induzidas no interrogatório do primeiro teste passaram à categoria de informações lembradas por parcela dos sujeitos no segundo teste.

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Assim, os resultados do teste indicaram que falsas memórias podem ser produzidas pelas perguntas de um interrogatório, passando a fazer parte do rol de memórias recordadas pelos sujeitos. Em outras palavras, os sujeitos, expostos à indução de informações falsas num interrogatório, podem passar a produzir falsas memórias, acreditando que esses acontecimentos inverídicos de fato ocorreram. O teste também demonstrou que quanto mais tempo se passa e mais vezes os testes são repetidos, mais esses sujeitos acreditam que aqueles acontecimentos falsos são lembranças deles próprios. A principal descoberta desse experimento é que ocorre um efeito robusto de falsas memórias na recordação se os sujeitos forem induzidos a produzir informações enganosas em um primeiro interrogatório, havendo grande probabilidade que essas informações sejam recordadas e julgadas como lembradas em um interrogatório posterior.

De fato, há uma extensa literatura científica demonstrando que a exposição à desinformação pode levar a falsas memórias de detalhes e até mesmo eventos inteiros que nunca foram realmente vivenciados [2]. No entanto, em ambientes forenses do mundo real, as práticas de entrevista sugestiva não se restringem a situações que envolvem o fornecimento explícito de desinformação. Em vez disso, em alguns casos, os entrevistadores tentam extrair das testemunhas relatos que apoiem suas próprias crenças sobre o que aconteceu. Para esse fim, os entrevistadores pressionam as testemunhas a descrever eventos que os entrevistadores acreditam ter ocorrido, mesmo quando as testemunhas não se lembram ou, pior, sequer testemunharam  um fenômeno conhecido como efeito de fabricação forçada [3].

As pesquisadoras Maria S. Zaragoza (Kent State University), Kristie E. Payment (Kent State University), Jennifer K. Ackil (Gustavus Adolphus College), Sarah B. Drivdahl (Northwest University) e Melissa Beck (Kent State University) realizaram uma pesquisa que teve dois objetivos: primeiro, avaliar a confiabilidade e a robustez do efeito da fabricação forçada em adultos; e, segundo, examinar se o feedback confirmatório poderia levar as testemunhas a desenvolver falsas memórias [4].

Nesse experimento participaram 98 estudantes de graduação que foram divididos em dois grupos: o grupo livre e o grupo forçado. Os participantes foram ao laboratório em pares e viram pela primeira vez um trecho de oito minutos do filme da Disney "Looking for Miracles", que retrata as aventuras de dois irmãos em um acampamento de verão. Imediatamente depois, os participantes foram separados e entrevistados por diferentes entrevistadores. Antes do início das entrevistas, os participantes do grupo forçado foram informados de que deveriam responder a todas as perguntas e foram explicitamente instruídos a adivinhar ou inventar se não soubessem uma resposta. Em contraste, os participantes do grupo livre foram explicitamente instruídos a responder apenas às perguntas que pudessem responder sem adivinhar.

Após duas perguntas de aquecimento, cada participante respondeu a 12 perguntas. Dessas, oito questões tratavam de eventos efetivamente retratados no vídeo e que foram as mesmas para todos os participantes. As quatro restantes eram perguntas sobre eventos que não haviam sido retratados no vídeo. Assim, para responder às perguntas de evento não retratado no vídeo, os participantes tiveram que inventar respostas. Por exemplo, ao revisar uma cena do vídeo, o entrevistador disse: "Ela [a cadeira] quebrou e Delaney caiu no chão. Onde Delaney estava sangrando?". Essa pergunta exigia uma resposta inventada, porque, embora Delaney tenha caído de uma cadeira no vídeo, ele claramente não chegou a sangrar, tampouco se machucou. Quando os participantes resistiram a responder a essas perguntas, o entrevistador os incitou a fornecer seu melhor palpite (em alguns casos, até de forma repetida) até que finalmente concordassem. Para a manipulação de feedback no grupo forçado, cada participante recebeu feedback de confirmação (por exemplo, "isso mesmo, joelho é a resposta correta") ou feedback neutro (por exemplo, "joelho, OK") após respostas inventadas para as perguntas de evento falso. O feedback neutro foi fornecido para todas as respostas às perguntas de eventos verdadeiros.

Após uma semana, os participantes foram recebidos por um entrevistador diferente, que os informou que o primeiro entrevistador havia cometido alguns erros e que teste teria de ser refeito. Nessa nova entrevista, os participantes eram perguntados sobre diversos fatos e deveriam indicar quais deles constavam no vídeo e quais não constavam. Quatro a seis semanas após a entrevista inicial, todos os participantes do grupo forçado foram contatados e solicitados a retornar para perguntas adicionais. Na chegada, eles foram instruídos a descrever os eventos que haviam visto com a maior precisão e detalhes possíveis.

Os resultados mostraram que nenhum dos participantes do grupo livre (que não foram forçados a responder às perguntas do evento falso) respondeu espontaneamente a qualquer uma das perguntas do evento falso. Infere-se a partir dessa descoberta que os participantes do grupo forçado não teriam fornecido respostas às perguntas de eventos falsos se não os tivessem sido forçados a fazê-lo. Assim, os resultados foram claros: os participantes desenvolveram falsas memórias para eventos que foram forçados a inventar, e o feedback confirmatório aumentou esse efeito de falsa memória.

A pesquisa demonstrou forte evidência do efeito de fabricação forçada na medida em que adultos são propensos a desenvolver falsas memórias para eventos que são forçados a inventar, e que o feedback confirmatório é um potente catalisador para a criação de falsas memórias. O feedback confirmatório aumentou a memória falsa para eventos inventados, aumentou a confiança nessas memórias falsas e aumentou a probabilidade de os participantes relatarem livremente os eventos inventados a longo prazo. Em conclusão, os efeitos do feedback confirmatório ilustram o poderoso papel da dinâmica da entrevista no desenvolvimento de falsas memórias.

Por fim, a pesquisa mostrou que formas extremas de manipulação social não são necessariamente imprescindíveis para induzir a mudança de memória. Ressalta-se que os entrevistadores do estudo não eram agentes da lei ou profissionais do Direito, mas assistentes de pesquisa de graduação e pós-graduação do grupo dos participantes. A pesquisa sugere, portanto, que os efeitos de distorção da memória podem ser significativamente ampliados quando o feedback confirmatório for fornecido por um agente com maior grau de poder e legitimamente autorizado pelo Estado para esse mister.

Outro estudo desenvolvido por Quin M. Chrobak e Maria S. Zaragoza, ambos professores do Departamento de Psicologia da Kent State University, pretendeu avaliar se os participantes estariam propensos a desenvolver falsas memórias se fossem forçados a inventar um evento fictício inteiro. Enquanto na pesquisa anterior relatada neste artigo os participantes foram forçados a fabricar itens ou detalhes individuais, isto é, eles foram forçados a fabricar apenas respostas de uma ou duas palavras, o escopo desse estudo foi bem mais amplo, pretendendo avaliar se forçar testemunhas a fabricar eventos fictícios poderia levar ao relato livre de falsas memórias [5].

Nesse experimento, 178 graduandos foram divididos em dois grupos: o grupo de fabricação e o grupo de controle. Todos os participantes assistiram a um clipe editado de 18 minutos de um filme de aventura. Dois dias depois, os participantes foram entrevistados individualmente, sendo informados de que deveriam fornecer uma resposta a todas as perguntas e foram explicitamente instruídos a adivinhar e inventar se não soubessem uma resposta. Cinco dessas perguntas eram questões sobre eventos reais, que questionavam os participantes sobre cenas que realmente estavam no vídeo. Para os participantes do grupo de fabricação, houve também duas questões sobre eventos falsos, para as quais os participantes foram solicitados a descrever eventos fictícios inteiros que nunca haviam presenciado.

Os participantes do grupo de fabricação resistiram fortemente a responder às perguntas do evento falso e frequentemente se esforçavam para evitar fabricar uma resposta. Quando os participantes resistiram, o entrevistador os pressionou a responder, levando-os a fornecer seu melhor palpite. O entrevistador o fazia repetidamente até que os participantes fornecessem uma resposta relevante à pergunta. Em média, foram necessários três turnos de conversa antes que os participantes começassem a fabricar informações que abordassem a questão do evento falso. Em contraste, os participantes do grupo de controle nunca resistiram ao responder a perguntas de eventos reais e sempre forneceram informações relevantes na consulta inicial.

Como os participantes do grupo de fabricação foram obrigados a fornecer relatos completos e detalhados dos eventos, o entrevistador sempre dava seguimento a pedidos específicos de mais informações sobre quem estava lá, como os eventos se desenrolaram e onde os eventos ocorreram, até que o participante concordasse. Em média, foram necessários oito turnos de conversa para obter um relato totalmente detalhado de eventos fabricados.

Uma semana após a visualização do vídeo, todos os participantes foram testados individualmente por um entrevistador diferente. Todos os participantes responderam a 12 perguntas que incluíam, inclusive, os dois eventos fictícios que haviam sido fabricados anteriormente pelos participantes do grupo de fabricação, mas que os participantes do grupo de controle não tinham conhecimento, uma vez que não haviam sido questionados anteriormente.

Aproximadamente oito semanas depois, os participantes foram contatados e solicitados a retornar para testes adicionais. Os participantes foram instruídos a assumir que eram testemunhas oculares cujo depoimento poderia ser usado em um tribunal, e foram solicitados a relatar os eventos que testemunharam no vídeo com a maior precisão e detalhes possíveis. É importante ressaltar que o entrevistador não forneceu nenhuma pista ou sugestão; os participantes eram completamente livres para relatar o quanto quisessem do clipe.

Os resultados mostraram que, embora os participantes do grupo de fabricação tenham resistido veementemente ao pedido de fabricar eventos fictícios inteiros, ao longo do tempo, desenvolveram falsas memórias para esses eventos. Quando os mesmos participantes retornaram oito semanas depois, eles relataram livremente suas invenções forçadas quase 50% das vezes, mesmo quando as rejeitaram correta e publicamente no início do teste de uma semana. Em contraste, as taxas muito baixas em que os participantes de controle relataram livremente eventos fictícios fornecem fortes evidências de que os participantes raramente desenvolvem essas memórias falsas, a menos que tenham sido forçados a fabricá-las.

A contribuição surpreendente deste estudo, portanto, é que ele forneceu a primeira evidência de que os participantes podem desenvolver memórias falsas para eventos fictícios inteiros que eles foram forçados a fabricar conscientemente. Uma segunda contribuição é a constatação de que, ao longo do tempo, esses eventos forçosamente fabricados acabaram se tornando parte integrante da memória duradoura dos participantes. Assim, o estudo ressalta a natureza dinâmica da memória e a utilidade de avaliar o desenvolvimento de falsas memórias em intervalos de retenção prolongados.

Em conclusão, os estudos sobre o efeito da fabricação forçada aqui apresentados demonstraram que as partes interessadas e as testemunhas são propensas a desenvolver falsas memórias para itens ou detalhes específicos que foram forçadas a fabricar anteriormente, como também, e mais surpreendente, a produzir memórias falsas se forçadas a fabricar eventos fictícios inteiros mais complexos e extensos no tempo e que envolvam pessoas, locais e ações que nunca viram. Apesar de os participantes terem resistido veementemente a fabricar esses eventos, e o desenvolvimento de falsas memórias a curto prazo (uma semana) tenha sido limitado, após oito semanas, os participantes relataram livremente suas fabricações forçadas em metade das vezes e o fizeram mesmo quando as rejeitaram corretamente no início do teste. Assim, os estudos evidenciam que as testemunhas podem incorporar livremente em seus relatos os eventos fictícios que foram forçadas a fabricar anteriormente, o que desperta enorme preocupação com a forma como são realizadas as entrevistas forenses  na forma de interrogatórios, delações premiadas, depoimentos, dentre outras.

Essas falsas memórias, decorrentes do efeito da fabricação forçada, por seu turno, colidem com a ideia de um processo justo e muitas vezes estão relacionadas à prática de lawfare, vale dizer, do uso estratégico e perverso das leis e dos processos para atingir resultados ilegítimos.

 

Referências bibliográficas
CHROBAK, Quin M.; ZARAGOZA, Maria S. Inventing stories: forcing witnesses to fabricate entire fictitious events leads to freely reported false memories. Psychonomic Bulletin & Review. v. 15, nº 6, p. 1190-1195, 2008. p. 1190.

LOFTUS, Elizabeth F. Made in memory: distortions of recollection after misleading information. In BOWER, G. (Ed). Psychology of learning and motivation: advances in theory and research. New York: Academic Press, p. 187-215, 1991.

ROEDIGER III, Henry L.; JACOBY, J. Derek; MCDERMOTT, Kathleen B. Misinformation effects in recall: creating false memories through repeated retrieval. Journal of Memory and Language, v. 35, p. 300-318, 1996.

ZARAGOZA, Maria S.; PAYMENT, Kristie E.; ACKIL, Jennifer K.; DRIVDAHL, Sarah B.; BECK, Melissa. Interviewing witnesses: forced confabulation and confirmatory feedback increase false memories. Psychological Science. v. 12, n. 6, p. 473-477, 2001.

ZANIN MARTINS, Cristiano. ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira. VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, p. 26, 2019.

 


[1] ROEDIGER III, Henry L.; JACOBY, J. Derek; MCDERMOTT, Kathleen B. Misinformation effects in recall: creating false memories through repeated retrieval. Journal of Memory and Language, v. 35, p. 300-318, 1996.

[2] LOFTUS, Elizabeth F. Made in memory: distortions of recollection after misleading information. In BOWER, G. (Ed). Psychology of learning and motivation: advances in theory and research. New York: Academic Press, p. 187-215, 1991.

[3] CHROBAK, Quin M.; ZARAGOZA, Maria S. Inventing stories: forcing witnesses to fabricate entire fictitious events leads to freely reported false memories. Psychonomic Bulletin & Review. v. 15, nº 6, p. 1190-1195, 2008. p. 1190.

[4] ZARAGOZA, Maria S.; PAYMENT, Kristie E.; ACKIL, Jennifer K.; DRIVDAHL, Sarah B.; BECK, Melissa. Interviewing witnesses: forced confabulation and confirmatory feedback increase false memories. Psychological Science. v. 12, nº 6, p. 473-477, 2001. p. 473

[5] CHROBAK, Quin M.; ZARAGOZA, Maria S. Op. cit. p. 1190-1195.

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