Opinião

'Empaparme' de Chile: uma brasileira na Convenção Constitucional (Parte 1)

Autor

  • Ester Gammardella Rizzi

    é professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP e integrante do grupo de estudos Neoliberalismo Subjetivação e Resistência vinculado ao IEA-USP e do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP).

8 de fevereiro de 2022, 9h11

Em 15 de novembro de 2019, a maioria absoluta dos partidos chilenos com representação em seu Congresso Nacional decidiu convocar uma Convenção Constituinte para elaborar uma nova Constituição para o país. Embora o "Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución" tenha sido elaborado pelas forças políticas tradicionais chilenas, sua origem estava muito longe das gravatas e do edifício oficial do Congresso Nacional, em Valparaíso.

Se o Chile hoje está em pleno processo constituinte, o que não era possível prever antes do chamado Estallido Social, foi porque uma revolta popular maciça e persistente tomou primeiro Santiago e, em seguida, o país em outubro de 2019 e persistiu com grande intensidade até o acordo de 15 de novembro, que ofereceu uma saída institucional para o grande mal-estar social que estava sendo manifestado nas ruas.

Este texto é o primeiro de uma série de quatro. Nele, uma pequena apresentação de quem escreve e de como cheguei ao Chile neste 2022. Nos próximos três textos pretendo apresentar antecedentes da Convenção Constitucional chilena, forma de eleição dos membros e composição política e, por fim, desafios até o fim do período constituinte. Tudo temperado com as informações e percepções das entrevistas e observações que tenho feito por aqui.

Estou no Chile há quatro dias. Entre os preparativos para a viagem, escrevi muitos e-mails para pessoas das universidades chilenas, para alguns contatos políticos e de movimentos sociais que consegui. Recebi uma resposta amável do que seria um de meus entrevistados: "Me alegro que finalmente puedas venir a Chile para empaparte del proceso constitucional que estamos viviendo", escreveu Dan Israel, um doutorando chileno vinculado à Universidade de Yale e orientando de Owen Fiss.

"Empaparme". O dicionário diz que a melhor tradução seria apenas "absorver". Mas, em português, absorver não é usado como verbo reflexivo. Fiquei pensando, junto com Thais Pavez, que uma boa tradução talvez seria embeber-me, embriagar-me com, ou ainda mergulhar-me no processo constitucional chileno. Os dias aqui têm sido assim: um mergulho neste momento histórico tão singular e especial.

Em razão dos protocolos sanitários de prevenção à Covid-19, há grandes restrições de acesso aos trabalhos da Convenção Constitucional. Nem mesmo os assessores dos "convencionales" estão podendo entrar no prédio do antigo Congresso Nacional Chileno, no centro de Santiago, onde as reuniões do Pleno e das comissões temáticas estão acontecendo.

Assim, foi com surpresa e enorme alegria que recebi, no mesmo dia em que cheguei ao Chile, a autorização para livre acesso ao prédio durante meu período de estadia acadêmica. Com essa autorização, estou podendo acompanhar de perto as comissões, que começam agora a fase de deliberação de inúmeras iniciativas elaboradas pelos membros da convenção e também por um processo participativo popular. Esse início de deliberações não é simples, afinal há muitos grupos políticos representados na convenção, incluindo muitos independentes. Sobre a forma de eleição para a Convenção Constitucional e sua especial composição, falarei no terceiro texto desta série. Tem sido um privilégio ver de tão perto essa dinâmica política acontecendo. 

Desde 2008, estudo processos sociopolíticos que levaram a mudanças de Constituição. Alemanha de 1918-19 e a Constituição de Weimar; Revolução Mexicana 1910-1917 e a Constituição Mexicana de 1917, a primeira a garantir direitos sociais no mundo. Além disso, como professora de Direito Constitucional no curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH e interessada na história de meu país, estudei atentamente a Assembleia Constituinte de 1987-88 no Brasil.

E eis que, aqui em um de nossos vizinhos de América do Sul, o Chile começa um processo constituinte. Foi a professora da UFABC Carolina Stuchi quem, ainda em 2020, me chamou a atenção para a convocação da Convenção Constitucional. E não qualquer convenção, mas, sim, uma que já no início, desde o processo eleitoral, trazia diversas e importantes inovações: 1) paritária, com número igual de homens e mulheres entre os 155 membros da convenção (com ajuste de uma cadeira, por causa do número ímpar); 2) com 17 assentos reservados para povos indígenas; 3) realizada por listas distritais, sem exigência de vinculação partidária para as candidaturas (o que resultou em um grande número de independentes eleitos). Além disso, a paridade também deveria ser espelhada em todas as comissões internas à convenção.   

Em uma das reuniões aos sábados do grupo de estudos "Neoliberalismo, Subjetivação e Resistência", Cícero Araújo me disse: "Ester, você deveria ir lá acompanhar de perto. Tem tudo a ver com nossas discussões sobre neoliberalismo por aqui — o Chile é o exemplo do neoliberalismo levado às últimas consequências na América Latina, o mal-estar está relacionado a isso; além do mais, também dá para vincular com a pesquisa sobre crise da democracia, que estamos pesquisando no Cenedic". Topei imediatamente. Desde o primeiro semestre de 2021, preparo a estadia acadêmica que está acontecendo agora, em fevereiro de 2022. Em boa parte desse período, compartilhei meu entusiasmo recente em relação ao Chile com a Joana Salém, a quem o Chile já havia conquistado muito tempo antes. Nos próximos textos, contarei um pouco sobre as primeiras impressões do que está acontecendo por aqui.

A Convenção Constitucional chilena "me convoca" a estudá-la, para usar outra ótima expressão dos "hispanohablantes".

P.S.: Já que este texto tornou-se também uma pequena lista de agradecimentos a algumas pessoas que participaram de perto da viagem, não poderia faltar um: Tiago Tranjan, com quem discuto sempre muitos assuntos (entre eles o Chile) e que está neste momento cuidando amorosamente da Teodora e do Sebastião. 

* Este texto faz parte da série de quatro artigos sobre a estadia da autora no Chile

Autores

  • é professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP e integrante do grupo de estudos Neoliberalismo, Subjetivação e Resistência, vinculado ao IEA-USP, e do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP).

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