Opinião

As criptomoedas e as pirâmides financeiras

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8 de fevereiro de 2022, 13h48

As noções de esperteza sempre inquietaram o Direito Penal, dizendo respeito a que medida deveria haver uma intervenção deste. É, assim, de se lembrar a célebre frase atribuída a Phineas Taylor Barnum segundo a qual a cada minuto nasce um trouxa, e que talvez possa ser tida como o norte de contenção à boa sorte de fraude, aqui e acolá. E, isso, recordando que ela mesma detém o erro de sua autoria, já que teria sido, de fato, dita por George Hull em alusão ao conhecido príncipe das falcatruas. De todo modo, bem espelha a mística aura em torno daquilo que se convencionou ter por crime da esperteza, por vezes visto como estelionato.

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As previsões mais clássicas sobre o que se vê, no Brasil, à luz do artigo 171 do Código Penal, debatem, em profundidade, as distinções já percebidas em Hungria sobre o que seria uma fraude cível e uma fraude penal [1]. Embora exista inequívoca identidade entre ambas, versando sobre malícia e engano, nem sempre se pode dizer uma por outra. Fronteiras definitivas, pois, seriam desde logo descartadas. Mesmo assim, ensinam os manuais que a obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, mediante artifício ou ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, perfaz o crime em questão [2]. Trata-se de ilícito, enfim, em que é projetada uma representação mental que não corresponde à verdade no imaginário da vítima, aproveitando-se desta, sempre em seu desfavor.

A historiografia do estelionato é riquíssima em construções que justificaram variações e matizações típicas, as quais vão desde a discussão sobre a partição entre crimes patrimoniais, crimes contra a propriedade ou uma proteção da personalidade. A "fraude do mendigo" ou a de coleta de fundos a entidade beneficente, por exemplo, enriqueceram o debate internacional sobre o tema [3], bem para além da limitação temática sobre torpeza bilateral ou fraude recíproca.

Ainda assim, é certo que, cerca de cem anos atrás, o assunto assumiu nova vertente, ainda hoje motivo de tantas preocupações. Apesar de notícias anteriores de esquemas semelhantes, foi naquele momento em que, nos Estados Unidos da América, Charles Ponzi, imigrante italiano, pôs a funcionar uma fraude postal em que prometia, por meios vários, retornos financeiros de até 100%, em poucos meses. Em verdade, ele não reinvestia o dinheiro recolhido pelos selos internacionais, conforme prometia seu negócio, o que gerou, derradeiramente, a sua sucessiva quebra. Tornou-se, de qualquer modo, face, entre outros, à expectativa de altos rendimentos em curto prazo; obtenção de rendimentos não bem documentados; falta do produto a ser consumido; movimentação apenas de dinheiro e não do produto e dependência necessária de grande quantidade de novos investidores que venham a integrar o negócio, sinônimo moderno de fraude [4], ainda que com distinções da pirâmide financeira propriamente dita [5]. Genericamente, tratava-se de uma fraude piramidal, ou baseada em pirâmide financeira, hoje tão conhecida, e com exemplos muitos no Brasil, como os escândalos da Telexfree, do Boi Gordo e do Avestruz Master, entre tantos outros [6].

O século 21 aperfeiçoou tais situações. Hoje, uma das mais discutidas vertentes e alegadas possibilidades de pirâmides financeiras se dá em sede das criptomoedas. O fenômeno de maior revolução no cenário econômico mundial contemporâneo parece atrelar-se, ao menos segundo alguns, a essa verdade. Entretanto, é fundamental que se tenha, desde logo, que a criptomoeda, em si, não é aprioristicamente um esquema Ponzi — o que se revelaria pelo retorno financeiro correlacionado ao capital investido —, ou uma pirâmide financeira propriamente dita — pela qual seriam recebidos retornos crescentes em função do número de novos participantes que venham a ingressar abaixo dele na estrutura da pirâmide. Existiram, desde logo, outros fatores a serem levados em conta, como o próprio mercado mundial de oferta e procura. Mas isso quer dizer que não podem ser praticados crimes nessa seara? Por certo que não, afinal a máxima de Barnum ainda teria de ser vista como válida.

Sem um necessário ingresso em potencial discussão sobre o que se visualiza como uma possibilidade de conflito aparente de normas, e se tal cenário ensejaria verdadeira incidência, entre outros, nos crimes contra a economia popular (Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951 [7]) — ou, ainda, simples contexto de estelionato, é de se ver que, desde logo, conceitualmente, nem toda a situação de investimento em criptomoedas pode ser enquadrado nessas situações. E isso por algumas razões.

Em primeiro lugar, deve-se ter por claro que este não se mostraria um crime propriamente vinculado às criptomoedas — criptocrime [8] —, uma vez que estas são mero meio ou objeto de uma atividade ilícita, como seriam os bois ou avestruzes nos exemplos mencionados. Em segundo lugar, muito embora seja inegável que existam aproveitadores, muitas das acusações devem-se, fundamentalmente, à ignorância e ao verdadeiro preconceito criminal detectados em relação a tais mercados [9]. Um bom exemplo disso se verifica em previsões abertas que estão sendo discutidas, no Congresso Nacional, com o escopo de punição de tais condutas, como a organização, gestão e oferta de criptomoedas com o alegado objetivo de pirâmide financeira. Já não seria isso crime? Ou, ainda, qual o limite, enfim, para a configuração da pirâmide financeira?

Aliás, só em relação a esse ponto, o assunto mostra-se muito controverso, pois nem mesmo se sabe, ainda, se as criptomoedas são de responsabilidade reguladora do Banco Central ou da CVM. É certo que existem similaridades do mercado cripto com pirâmides financeiras: rentabilidades elevadas em prazos breves de tempo e origem duvidosa da rentabilidade seriam alguns desses dados. Mas é de se recordar, por outro lado, que a evolução de rentabilidade sentida nos últimos 13 anos é, de fato, real e meteórica. E nada tem, em princípio, de ilegal. Faz parte, sim, de uma revolução tecnológica que se está a sentir. Promessas de lucros elevadíssimos em curto espaço de tempo no universo cripto, portanto, não necessariamente são indícios de fraude, mas, sim, parte de análise gráfica e padrão de mercado. Existem aqueles que creem que está a se verificar um cenário de bolha, a exemplo da "tulipomania", enquanto outros têm por certo que a mutação econômica está apenas em seu início. Tratar-se-ia, pois, nessa conformidade, de mero risco do negócio, e nada mais.

Por outro lado, eventual situação de necessidade de recrutamento de novos membros pode se mostrar, mas não obrigatoriamente é, indício acessório de esquema piramidal. Há de se analisar, verdadeiramente, a lógica de ingresso e investimento negocial. Se a intermediação proposta apenas avalia a inexperiência em tecnologia dos participantes, e oferece lucros reduzidos em relação à margem histórica, descontando-se os ganhos da operação, isso não necessariamente se mostra como uma pirâmide. Pode ser um negócio — quiçá arriscado —, mas um negócio próprio de um cenário cripto. Face a tantas considerações, o Judiciário já está a tecer considerações a esse respeito, sendo de se destacar as posições pioneiras, junto ao Superior Tribunal de Justiça, em especial sob a pena do Ministro Sebastião Reis Júnior [10], ponderando tanto questões de competência como de modulação típica.

Entre tantos assuntos em um mundo ainda a se desbravar, hoje estão a se discutir formas de regulação, agências competentes e novas previsões criminais para esse universo em formação. Não se pode, entretanto, cair na armadilha de pretensa construção de uma Linha Maginot ao procurar entender o futuro com o passado. As novas tecnologias podem procurar desviar daquela realidade, mas sem travar negócios corretos e legítimos que venham a se dar, e, quanto a isso, fundamental se ter em mente que os conceitos de especulações ou processos fraudulentos não são compulsoriamente inerentes a uma determinada operação, mas, sim, aos meios em que esta se desenvolve. E, caso isso não se mostre presente, desconfigura-se por completo toda a implicação penal, cedendo espaço para a observação de um mero risco negocial. Esse, derradeiramente, um dos futuros embates entre a tecnologia e a leitura dos tribunais acerca dos novos contornos das pirâmides a serem combatidas [11].

 


[1] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, vol. VII, p. 172 e ss.

[2] PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, vol. 5, p. 228 e ss.

[3] Cf. SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Direito penal e propriedade privada. A racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio. São Paulo: Atlas, 2014, p. 78 e ss.

[4] Cf. ZUCKOFF, Mitchell. Ponzi’s Scheme. The True Story of a Financial Legend. New York: Random House, 2006, passim. CROSS, Collen. Anatomy of a Ponzi Scandals. Past and Present. Middletown: Slice, 2013, p. 21 e ss.

[5] Segundo a CVM, pirâmides financeiras são "esquemas irregulares para captação de recursos da população, em que lucros ou rendimentos são pagos com os aportes de novos participantes, que pagam para aderir à estrutura ('investimento inicial'). A adesão de novos membros expande a base da pirâmide, mas essa expansão é insustentável e, inevitavelmente, não será suficiente para pagar todos os compromissos. Atrasos nos pagamentos levarão ao desmoronamento do esquema, gerando prejuízos especialmente para os novos aderentes, que por terem ingressado mais recentemente, não terão tempo para recuperar o que foi 'investido', enquanto que 'o esquema 'Ponzi' também não oferece uma oportunidade real de investimento, mas se difere da pirâmide pois o 'investidor' não precisa atrair novos investidores. A aparência de ser um investimento de verdade pode ser maior, pois os recursos são entregues a uma pessoa que promete restituir os valores com maior rentabilidade, mas os lucros são pagos com recursos novos, como na pirâmide. A diferença é que a 'vítima' não precisa realizar esforços para atrair novos investidores." Disponível na internet: http://conteudo.cvm.gov.br/menu/investidor/alertas/ofertas_atuacoes_irregulares.html. Acesso em 13/1/2022.

[6] Cf. GUERREIRO, Gabriel. Pirâmides brasileiras: como a Boi Gordo, Avestruz Master e Telexfree enganaram milhões de pessoas. São Paulo: !s.e.!, 2020, passim.

[7] Em que se tem por crime, em seu artigo 2º, IX, obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes).

[8] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Criptocrime: considerações penais sobre criptomoedas e criptoativos. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1, p. 1, 2020, passim.

[9] Cf. FÉRNANDEZ-SALINERO SAN MARTÍN, Miguel Ángel. Las estafas piramidales y su trascendencia jurídico-penal. Madrid: Dykinson, 2019, p. 87 e ss.

[10] Cf. STJ, CC 161.123/SP, Terceira Secção, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 05/12/2018; STJ, HC 530.563/RS, Sexta Turma, Rel. Min Sebastião Reis Júnior, DJe 13/1/2020).

[11] Cf., nesse sentido, e com muita propriedade, as colocações postas no voto divergente do des. fed. Willian Douglas junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, HC nº 5012283-40.2021.4.02.0000/RJ.

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