Processo Tributário

Execução fiscal, cobrança indireta, devido processo legal e desjudicialização

Autor

  • Paulo Cesar Conrado

    é juiz federal em São Paulo professor do Curso de Especialização do Ibet professor e coordenador do curso e do grupo de estudos do "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

6 de fevereiro de 2022, 8h00

A expressão "cobrança indireta" vem sendo tão frequentemente usada que já ganhou raízes, podemos dizer, no glossário jurídico. Honestamente, não apreciamos seu emprego, embora isso não tenha lá muita relevância — admitimos.

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De toda forma, vale explicar nossa "implicância": quando apomos o predicado "indireto(a)" diante de um certo substantivo normalmente o fazemos, em Direito, para designar algo atípico, impróprio e que, por isso mesmo, não tem a ver, a não ser por "forçação de barra", com a realidade designada pelo substantivo em foco (no caso, "cobrança").

No ambiente tributário, esse estado de coisas parece muito claro: a "cobrança indireta" manobrada pelas Fazendas não "cobra" nada; remente, isso sim, a uma série de estímulos negativos — desconfortos, incômodos, para sermos mais claros —, cujo emprego é autorizado pelo sistema jurídico para criar no espírito do contribuinte faltante "desejo" suficientemente forte de cumprir o dever inadimplido. Admitamos: protesto, inclusão em cadastros (públicos e privados), entre outros instrumentos habilitados em nosso regime, não satisfazem, nem nunca satisfarão, por si mesmos, o crédito tributário pendente; servem, na melhor das hipóteses, para estimular a entrega voluntária do valor pretendido.

Aí a razão de nossa antipatia à qualificação dessas medidas como "cobrança", o que não quer significar, ressalve-se sempre, que estamos de mal com quem o faça — falar assim ou assado não qualifica, desqualifica ou requalifica os institutos envolvidos, muitos estudos, aliás, bastante eficientes no que postulam — substituir a atividade cobrança propriamente dita.

Lembrem-se, porém: se o incômodo gerado pelos instrumentos de que falamos não for suficiente para demover o íntimo do devedor, fazendo-o pagar, o crédito seguirá tão pendente quanto antes, caminhando na segura direção da prescrição.

Vale dizer: a "cobrança indireta" "cobra", mas desde que a vontade do devedor a ela se associe — como naquela história de "combinar com os russos" — e se assim as coisas não sucederem — ou seja, quando a vontade do devedor, mesmo estimulada, não adere à vontade da Fazenda —, de duas uma: ou a Fazenda "cobra de verdade" seu crédito (agora sim, a palavra "cobrança" aflora em seu sentido jurídico próprio), ou busca outros estímulos, agora positivos, como os que tipificam os regimes de transação, marcados por algum nível de concessão — mais uma tentativa de atrair o espírito do devedor para o plano comportamental aspirado, o do adimplemento.

Olhar as coisas a partir desse ângulo nos faz ver que a atividade de cobrança, para que se qualifique como tal e deixe de ser empregada sem rigor, supõe a substituição da postura renitente do contribuinte, como que sinalizando: "Se não entrega o valor que deve voluntariamente, dele será tomado à força". Cobrar é, nesse sentido e em suma, executar via expropriação — nada que ver com aquelas outras coisas (estrategicamente boas, eficientes etc., mas não designáveis como cobrança) —, atividade que, por imposição constitucional deve se dar de acordo com o "devido processo legal", figura objetivamente encarnada, hoje, na Lei nº 6.803/80 e no Código de Processo Civil de 2015 (CPC).

Sobre uma ou outra peça integrante desse subsistema de normas, por certo que variantes interpretativas há (e assim sempre será); sobre o eixo normativo que dá vida ao devido processo legal, entretanto, não! Ninguém deve duvidar de que a coluna de sustentação da cobrança tributária encontra-se ali, naqueles dois diplomas, cravada — abrir mão disso é negar o devido processo legal.

Judicial e rigorosamente submetido a um protocolo de atos: pois é assim que caracterizamos, em síntese, a cobrança preordenada nos diplomas antes referidos. E vejam, com esse registro — simples, mas muitas vezes incompreendido —, como é de fato desinteressante dizer que aquelas medidas outras, as de estímulo indireto representam, em si, forma de cobrança: no mais das vezes, sua realização ocorre em ambiente administrativo (nada tendo que ver com a judicialidade inerente ao devido processo legal sustentado em nosso ordenamento), além de se mostrarem estranhas ao ciclo procedimental executivo.

Acresçamos a esses dados um outro (o último necessário para concluir o trajeto proposto nesse texto): todos devem ter na memória o debate, há anos travado em nosso país, sobre a potencial desjudicialização da cobrança do crédito tributário, providência que implicaria o traslado da atividade de expropriação patrimonial para o âmbito administrativo. Usando outras palavras: os atos de cobrança, legalmente entendidos até aqui como jurisdicionais, passariam a figurar, nesse regime, como atos administrativos.

A extensão desse debate deriva, em grande medida, da compreensão, para alguns, de que o "devido processo legal" só se apresenta no locus judicial e que a legislação ordinária não pode transigir sobre isso.

Não pensamos dessa forma, mas não vamos entrar, não pelo menos aqui e agora, nessa discussão, muito mais de tom histórico-ideológico do que qualquer outra coisa. O que queremos é chamar a atenção de nosso leitor para o lado pragmático que o problema suscita, fazendo-o a partir de uma pergunta — aparentemente simples, quase infantil, mas altamente provocadora: "devido processo legal" é o que se dá nos termos da lei ou o que se dá no ambiente judicial? Ou, por outros termos: basta que a execução transite no Judiciário para que se a enxergue compatível com o "devido processo legal"?

A resposta, parece, está na pergunta (sobretudo em sua segunda versão): para que a cobrança se repute ajustada ao devido processo legal é preciso que ela se dê nos termos da lei, não bastando sua judicialidade.

É bem certo que a lei prevê, hoje, que seu processamento (da cobrança) dar-se-á em ambiente judicial — esse é um dos aspectos que tipifica o devido processo legal reinante, portanto. Mas, indo bem além do locus, a mesma lei (CPC e Lei nº 6.830/80, ambos os diplomas) estabelecem um protocolo rígido a ser conduzido pela autoridade responsável pelo processo. Conclusão: não é "devido" o processo que, posto tramite no Judiciário, escape da pauta legal em sua estruturação.

Quando olhamos a questão por esse ângulo, não lhes parece que as coisas mudam de coloração? A intransigência quanto à judicialidade do processo não lhes parece dissociada de razão? E daí partimos para outra questão: quem não transige sobre manter a cobrança no ambiente judicial, o faz pelo locus ou pelo respeito aos atos impostos pela lei e que conformariam, aí sim, o tão desejado devido processo legal? Mas e se o processo, ainda que transite no Judiciário, for conduzido fora dos padrões da lei, tudo bem? Os defensores da "judicialidade perene e imutável" vão ficar satisfeitos? Só mais uma pergunta: se a atividade de cobrança se der em ambiente administrativo, mas seguindo o padrão fixado em lei, valerá menos pragmaticamente?

Sempre me faço essas perguntas, confesso, quando tomo conhecimento, aqui ou acolá, sobre execuções fiscais que têm como ato inaugural ordinário a indisponibilização, via SisbaJud, do valor executado, pensando-se em citação¸ si et in quantum, só depois disso — algo que, data venia, parece completamente estranho à lei, mas que, numa visão estática e recheada de retórica interpretativa, poderia receber o selo do "devido processo legal" pelo simples fato de estar no ambiente judicial (como se o locus determinasse a qualidade do ato emanado).

Talvez seja momento de entendermos — mais uma vez lanço o apelo pragmático — que o devido processo legal é o que, transitando judicial ou administrativamente, caminha na conformidade das regras postas e não segundo as conveniências do agente público — judicial ou administrativa, insistamos. Mais: talvez seja momento de entendermos, saindo do estado de adolescência civilizatória que já vai tarde, que o rótulo judicial não faz brancas as páginas do processo, autorizando a escritura, ali, do que se desejar: processo democrático é o que tramita segundo a lei e tanto faz quem vai conduzi-lo, desde que também definido em lei como competente para tal, Judiciário ou Administração.

De mais a mais, ninguém com olhar minimamente pragmático deve duvidar: o Judiciário tem boa caneta para controlar atos administrativos descabidos (um bloqueio precipitado, por exemplo, caso a cobrança se "administrativizasse"), embora não a tenha na mesma medida para controle de seus próprios impulsos executivos.

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    é juiz federal em São Paulo, professor do Curso de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso e do grupo de estudos em "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

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