Embargos Culturais

'Direito Administrativo Brasileiro', do conselheiro Antonio Joaquim Ribas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

6 de fevereiro de 2022, 8h00

Há normas sobre Direito Administrativo em alguns livros e títulos do Digesto, um dos textos jurídicos compilados por ordem do imperador Justiniano. Os romanos trataram de arrecadação de impostos, de coletores, de multas, de lugares públicos, ruas e rios, de colégios, de corporações, de municipalidades, de honras e de empregos públicos, de imunidades, de deputação e de embaixadas. Muito tempo depois, Luis XVIII criou na França uma cadeira de Direito Administrativo. Joseph-Marie de Gérando (1772-1842) foi o primeiro professor da disciplina; fora, assim, o fundador e o pai do Direito Administrativo francês.

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Entre nós, não havia a cadeira de Direito Administrativo nos cursos de Olinda e de São Paulo, criados por lei em 11 de agosto de 1827. O senador Campos Vergueiro propôs a criação dessa disciplina, como um complemento ao estudo das ciências sociais e jurídicas. No entanto, somente em 1851, durante o ministério do Marquês de Monte Alegre, é que a cadeira foi instituída, ao mesmo tempo em que criou a cadeira de Direito Romano. A partir de 1855, o Direito Administrativo foi lecionado em São Paulo.

Essas informações, e muitas outras, estão no "Direito Administrativo Brasileiro", do conselheiro Antonio Joaquim Ribas (1818-1890), publicado em 1866 por F. L. Pinto & C., Livreiros Editores, que atendiam na Rua do Ouvidor, 87. É um livro de época, de apreciável valor histórico. Do ponto de vista metodológico, identifica como a disciplina foi originalmente ensinada. É também importantíssima fonte primária para estudo da história do Direito, na medida em que revela os problemas e os temas da época. Ribas foi o primeiro professor de Direito Administrativo na Faculdade de São Paulo, de acordo com o que explicita nesse livro.

O capítulo final é interessantíssimo. Trata dos "administrados", dividindo-os em nacionais, estrangeiros e escravos. A escravidão, confira-se, era tratada em livro de Direito Administrativo. Ribas apresentou uma longa consideração histórica sobre essa forma brutal de exploração. Dissertou sobre as origens da escravidão no Brasil e fixou um quadro explicativo da condição do escravo, naquele momento (segunda metade do século 19).

Ainda no tema da escravidão, identificou os modos como se constituía a condição do escravo. Cuidou da alforria e de sua revogação. Tratou dos escravos do Estado, e de que modo entre eles poderia se proceder à libertação, por meio da mencionada alforria. Explicou a situação dos escravos transmitidos por meio de herança. Fez referência ao fato de que escravos castigados imoderadamente suscitavam a obrigação de que respectivos senhores os vendessem. Mencionou também direitos dos escravos se casarem, sua condição como testemunhas, bem como da necessidade que havia de passaporte para que pudessem viajar. Há também notícia que dava conta da proibição do serviço de escravos nas repartições públicas e nas estradas de ferro.

Ao tratar dos nacionais e dos estrangeiros, Ribas cuidava de matérias que presentemente pertencem ao Direito Constitucional. Ribas explicava o tema da perda da nacionalidade, o que ocorria com a naturalização em país estrangeiro, com a aceitação de emprego, pensão ou condecoração de governo estrangeiro (sem licença do imperador), bem como do banimento por sentença.

Na estrutura desse precioso livro, um estudo sobre a Administração, no contexto da natureza e das divisões do poder político. Ribas apresentou inclusive uma teoria constitucional, com foco na posição do poder moderador. Entendia o poder político como aquele "capaz de realizar a missão do Estado". O autor também apresentou uma divisão das várias funções administrativas, que nomeou de diretas e indiretas, consultivas e ativas, espontâneas e jurisdicionais, e ainda um grupo de funções graciosas e contenciosas.

Penso que, para uma discussão atual, o capítulo que trata do contencioso administrativo é um dos mais substanciais. Na origem, seguimos um modelo francês, que abominava o Judiciário e que reservava à Administração o poder de julgar as demandas que lhe diziam respeito. Influência da Revolução Francesa, que Alexis de Tocqueville explicou muito bem em seu livro "O Antigo Regime e a Revolução", que já resenhei nesta coluna.

Ribas apresenta ainda uma síntese da hierarquia administrativa à época vigente. No ápice, o imperador, "origem primitiva da ação governamental e administrativa, e da jurisdição graciosa e contenciosa". Explicou as razões pelas quais o imperador não poderia ser responsabilizado, bem como porque era inviolável. Segundo Ribas, o imperador, "como primeiro representante da Nação (Constituição, artigo 98), bebe as inspirações na consciência de sua missão divina e popular; não está sujeito a responsabilidade alguma, nem os seus atos de inspeção, ou influência de qualquer entidade política ou administrativa. Símbolo da nacionalidade, idealização do governo e da administração, a sua pessoa é inviolável e sagrada". No segundo grau da hierarquia, Ribas apontava os ministros e secretários de Estado. Seguiam (terceiro grau) os presidentes de província. No quarto e último grau, os vários agentes administrativos.

Chamam a atenção, do ponto de vista da legística, as várias formas de atos normativos, e o modo como eram enunciados: leis, alvarás, regimentos, estatutos, concordatas, tratados, forais, decretos, privilégios, cartas régias, resoluções de consulta, provisões, avisos, portarias e assentos.

A par da curiosidade histórica, o livro de Ribas chama a atenção por conter esclarecimentos sobre a origem e a natureza de nossos institutos, modelos, fórmulas e arranjos. É uma obra que merece comentário e que provoca na razão direta de sua originalidade e das sugestões que levanta. O autor expõe uma teoria do Direito Administrativo, então inédita, que revela um instrumento de trabalho e não uma explicação totalitária de disciplina que cuida da burocracia, um ambiente, no qual, para muitos, tudo conspira contra o espírito [1].

 


[1]  Dedico esse pequeno ensaio ao Dr. Rui Magalhães Piscitelli, Procurador Federal e Professor de Direito Administrativo, com quem aprendo, sempre, e com quem esclareço as dúvidas que tenho em matéria administrativa, que são muitas.

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