Opinião

A fragilização das garantias penais a partir da expansão da Justiça negociada

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4 de fevereiro de 2022, 6h02

O avanço da legislação penal nas últimas décadas revela uma ampliação do consensualismo e da Justiça negociada. Por exemplo, até o surgimento da Lei dos Juizados Especiais Criminais, a única forma de aplicação do Direito Penal era através da instauração de um processo jurisdicional contencioso, em que acusação e defesa atuavam em lados opostos. Com o surgimento da Lei 9.099/95, essa tradicional jurisdição conflitual cedeu espaço para uma jurisdição do consenso, buscando um acordo entre as partes para a aplicação de uma pena não restritiva da liberdade, evitando a instauração de um processo.

Mais recentemente, com o advento da Lei 13.964/19, outro instituto da jurisdição penal do consenso foi criado no sistema penal brasileiro: o acordo de não persecução penal. Trata-se de acordo formulado pelo Ministério Público e o investigado, acompanhado de defensor, devidamente homologado pelo juiz, em que este assume sua responsabilidade e aceita cumprir condições menos severas que a restrição da liberdade.

As modificações introduzidas pelo chamado pacote "anticrime" passam a permitir a Justiça Penal negociada de maneira ampla. Desse modo, penas podem ser aplicadas aos acusados sem a tramitação do devido processo penal e sem a presença do juiz.

Contudo, apesar de essa nova jurisdição penal consensual ser uma tendência em todo o mundo, há de se avaliar as consequências dessa banalização do processo conflituoso e como isso pode gerar uma fragilização do devido processo legal. De início, calha asseverar que o crescente movimento observado no campo penal  correspondente à incorporação de mecanismos de negociação  afigura-se tendencialmente problemático, na medida em que essa simplificação das regras processuais baseadas na eficiência da persecução penal pode acarretar o desvirtuamento completo dos objetivos do Direito Processual Penal, mormente o de frear a atuação estatal.

No âmbito do Direito Penal, diversamente do Direito Civil, a primeira e talvez mais importante garantia dos acusados é a jurisdicionalidade, representada pelo axioma nulla poena, nulla culpa sine iudicio, segundo a qual os pressupostos do delito tipicidade, ilicitude e culpabilidade  devem ser evidenciados por meio de um processo judicial.

Nessa toada, essa expansão da Justiça Penal negociada faz com que princípios clássicos da jurisdição penal conflitiva sejam deixados de lado, como os da inderrogabilidade do processo e da pena (não há pena sem processo), do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Essa tendência contemporânea revela-se essencialmente deletéria na medida em que possibilita flexibilizações graves de garantias fundamentais, as quais são essenciais em um sistema penal acusatório e garantista.

O que se verifica, nesse sentido, é que institutos negociais  como a transação penal e o ANPP  enfraquecem a posição do acusado ao limitarem suas garantias fundamentais mais essenciais. Esses mecanismos de Justiça consensual, em especial o ANPP, materializam o principal elemento do modelo inquisitivo  a confissão , de sorte que significam um retrocesso social grave ao retirarem a possibilidade do julgamento em contraditório por um juiz imparcial e imporem a aplicação de penalidades sem o devido julgamento.

Por mais que possa se pensar que o acordo é realizado de maneira voluntária pelo acusado, de modo que pode optar pelo modelo processual adversarial, tal fato não é verdade. Isso porque, nesse tipo de negociação, o acusado é praticamente comprado pelo órgão acusador através de uma suposta diminuição da pena, sendo que, ponderando entre a sua condenação final a uma pena privativa de liberdade e o acordo com aplicação de penas não privativas, indubitavelmente optará pelo segundo, mesmo que inocente seja. Estudos revelam que as pressões que os acusados enfrentam no processo de negociação são tão fortes que pessoas inocentes acabam convencidas a se declararem culpadas de crimes que não cometeram, principalmente porque há uma diferença gritante entre as penas aplicadas no acordo e na condenação final pelo juiz.

Em relatório realizado pela National Association of Criminal Defense Lawyers, denominado "The Trial Penalty: The Sixth Amendment Right to Trial on the Verge of Extinction and How to Save It" [1], foi constatado que nos Estados Unidos mais de 97% dos casos são resolvidos através da Justiça negociada. Segundo o documento, dos 354 indivíduos inocentados por análise de DNA, 11% haviam se declarado culpados de crimes que não cometeram. O Registro Nacional de Inocentes dos EUA identificou mais 359 pessoas que confessaram crimes que não cometeram apenas para serem beneficiadas por acordos negociados com o órgão de acusação.

Portanto, resta evidente que a negociação no campo penal afeta e fragiliza uma das pedras de toque da configuração de um processo penal democrático: a presunção de inocência. Tal princípio é amplamente mitigado com a celebração do ANPP, notadamente pela necessidade de confissão formal e circunstanciada do delito, caracterizando a culpabilidade do acusado e a imposição de uma pena sem o devido processo legal e sem a prolação de uma sentença condenatória irrecorrível.

É relevante a crítica de Aury Lopes à negociação no campo do Direito Penal Sancionador:

"O pacto no processo penal é um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao "acordo" vê o processo penal transformar­ se em uma complexa e burocrática guerra. Tudo é mais difícil para quem não está disposto a 'negociar'. O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da acusação, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais rápido e com o menor trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa do que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face mais nefasta e cruel. É a lógica do tempo curto atropelando as garantias fundamentais em nome de uma maior eficiência" [2].

Em síntese, portanto, os mecanismos de Justiça negocial visam à simplificação do procedimento penal, com vistas a torná-lo supostamente mais efetivo. Ocorre que, com essa simplificação, os referidos institutos terminam por relativizar garantias fundamentais. Se não atentarmos para essas questões, a Justiça negociada pode se transformar em uma perigosa medida alternativa ao processo, sepultando as diversas garantias obtidas ao longo de séculos de injustiças.

 

Referências bibliográficas
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021, p. 347.

MACÊDO RIBEIRO, M. H.; SAMPAIO, A. R.; MELO, M. E. V. Justiça Negocial e Garantismo Penal: A Fragilização da Epistemologia Garantista a Partir da Expansão dos Espaços de Consenso no Processo Penal Brasileiro. Revista Direito em Debate, [S. l.], v. 30, nº 55, p. 215 — 229, 2021. DOI: 10.21527/2176-6622.2021.55.215-229. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/10131. Acesso em: 6 dez. 2021.

TEIXEIRA, P. G. I.; VIDI, T. S.; MOHR, R. S.; MACHADO, J. C.; LOUZADA, U. F. Inviabilidade do Acordo de Não Persecução Penal no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nº 27, p. 341–361, 2021. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/292. Acesso em: 6 dez. 2021.

National Association of Criminal Defense Lawyers. The Trial Penalty: The Sixth Amendment Right to Trial on the Verge of Extinction and How to Save It. Estados Unidos da América. Disponível em: https://www.nacdl.org/getattachment/95b7f0f5-90df-4f9f-9115-520b3f58036a/the-trial-penalty-the-sixth-amendment-right-to-trial-on-the-verge-of-extinction-and-how-to-save-it.pdf. Acesso em 27/11/2021.

 


[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021, pg. 347.

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