Maria da Penha: proteção a toda mulher, independentemente da orientação sexual
3 de fevereiro de 2022, 8h00
De acordo com nossa a Constituição Federal, o Brasil se constitui em Estado democrático de Direito fundado no princípio da dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III), com obrigações voltadas à concretização da existência digna de todos sem distinção (Título II). Seu artigo 5º, I, assegura a igualdade em direitos e obrigações a homens e mulheres, e seu Capítulo VII confere à família proteção especial do Estado (CF, artigo 226, caput), sem interferências no planejamento familiar (CF, artigo 226, § 7º).
Ocorre que o Estado de Direito, para ser genuinamente democrático, não pode se limitar à igualdade formal, nos moldes do laissez faire, laissez passer do século 19, no qual o Estado não interventivo apenas contemplava passivamente as desigualdades reais, identificando o conceito de igualdade com a mera obrigação de criar leis iguais para todos, sem garantir sua efetividade no plano material.A busca da igualdade deve ser real, efetiva, manifestada por meio de ações concretas, diante da clareza do texto constitucional ao empregar a expressão Estado democrático, e não Estado formal de Direito. Trata-se do dever constitucional de efetivar o conceito de igualdade material, isto é, em seu conteúdo, o qual se realiza quando são respeitadas as diferenças e assegurados direitos básicos inerentes à dignidade [1].
Ronald Dworkin [2], filósofo americano, ao analisar a situação de negros e homossexuais nos Estados Unidos, definiu que "a hipótese do processo político justo também é duvidosa, quando o grupo que perde foi vítima de preconceito ou estereótipo e teve seus interesses ignorados pelos eleitores". Referia-se o autor a processos políticos formalmente democráticos, mas que, na prática, relegavam ao acaso minorias sociais destituídas de expressão político-eleitoral.
Para a concretização da isonomia material, no que toca a proteção da família e liberdade de planejamento familiar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF nº 132/RJ e da ADI nº 4.277/DF, conferiu ao artigo 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado capaz de impedir o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
De acordo com a Corte Suprema, "a Constituição de 1988, ao utilizar a expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos, nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal locus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por intimidade e vida privada (inciso X do artigo 5º)" [3].
A concepção constitucional do casamento deve ser necessariamente plural, refletindo a pluralidade das relações familiares na sociedade contemporânea, já que ele não é o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.
No mesmo sentido, já se manifestou também o STJ: "O pluralismo familiar engendrado pela Constituição — explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF — impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos" [4].
No âmbito do Direito Comparado, verifica-se não ser outro o posicionamento daqueles países democráticos. Em Portugal, a Lei nº 9-XI, de 2010, reconheceu explicitamente a possibilidade de parceiros do mesmo sexo contraírem casamento civil [5]. Nos Estados Unidos, em 2003, a Suprema Corte de Massachusetts reconheceu a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo com a decisão de que as licenças para casamento civil deveriam ser concedidas também aos casais homoafetivos, determinando-se que as leis existentes sobre casamento fossem tornadas neutras quanto ao gênero [6].
Nessa linha, no ano de 2006, antecipando-se até mesmo à manifestação do STF no julgamento conjunto da ADPF nº 132/RJ e da ADI nº 4.277/DF, entrou em vigor a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) com a missão de proteger toda e qualquer mulher, no âmbito das relações domésticas e familiares, de qualquer tipo de violência, entre as quais: a) moral: calúnia, injúria ou difamação; b) física: qualquer ofensa à integridade ou saúde corporal da mulher; c) patrimonial: qualquer retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos; d) psicológica: ataque à autoestima ou ao pleno desenvolvimento da vítima, ou toda forma de controle sobre suas ações e decisões, mediante ameaça, humilhação, manipulação, isolamento ou vigilância constante; e) sexual: obrigando a mulher à conjunção carnal ou práticas sexuais diversas contra sua vontade, determinando a utilização ou não de métodos contraceptivos, impondo-lhe gravidez ou abortamento, ou mesmo constrangendo-a a se prostituir.
Essa moderna legislação protetiva da mulher está em absoluta sintonia com os princípios que servem de base à dignidade humana, consubstanciando-se em histórica conquista na direção dos direitos humanos, reconhecendo expressamente a irrelevância da orientação sexual como fator determinante à condição de vítima de violência doméstica e familiar: "Artigo 2º — Toda mulher, independentemente de orientação sexual goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental". "Artigo 5° — parágrafo único: As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual".
Superava, assim, a interpretação literal do Código Civil (CC, artigo 1.723), o qual limitava a ideia de casamento à união entre homem e mulher, conferindo a clareza hermenêutica necessária à proteção das relações homoafetivas entre mulheres. Atenta às exigências constitucionais e plenamente ajustada à pluralidade conceitual da sociedade moderna, garantiu proteção a toda e qualquer vítima do sexo feminino em relação íntima de afeto, seja a relação hétero, seja homoafetiva.
Agiu bem o legislador ao estabelecer de forma expressa a irrelevância da orientação sexual para fins de incidência da norma protetiva, fazendo com que a configuração típica dos crimes de violência doméstica e familiar não exija que o agressor seja do sexo masculino. A possibilidade de incidência das regras protetivas também para relações afetivas entre duas mulheres, traduz a concretização da dignidade humana e da isonomia, na medida em que essas vítimas devem ser beneficiárias de tutela especial do poder público, independentemente de sua orientação sexual.
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
[2] DWORKIN, Ronald. A Virtude soberana: teoria e prática da igualdade. Tradução Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3] STF – ADI: 4277 DF, relator: min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 5/5/2011, Tribunal Pleno, data de publicação: 14/10/2011.
[4] STJ – REsp: 1.183.378 RS 2010/0036663-8, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 25/10/2011, T4 – 4ª TURMA, Data de Publicação: DJe 1/2/2012.
[5] "Artigo 1º – Objectivo: A presente lei permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Artigo 2º – Alterações ao regime do casamento.
Os artigos 1.577º, 1.591º e 1.690º do Código Civil passam a ter a seguinte redacção: 'Artigo 1.577º. […] Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código'. […]
Artigo 4º – Norma revocatória.
É revogada a alínea e) do art. 1.628º do Código Civil.
Artigo 5º – Disposição final Todas as disposições legais relativas ao casamento e seus efeitos devem ser interpretadas à luz da presente lei, independentemente do género dos cônjuges, sem prejuízo do disposto no art. 3º".
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