Opinião

Tempos de Covid-19: o direito de presença do acusado x o temor da vítima

Autor

  • Mathaus Agacci

    é advogado criminalista graduado em Direito pela Faculdade Cesusc doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA) sócio fundador do escritório Mathaus Agacci Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

3 de fevereiro de 2022, 17h08

Há algum tempo nossa banca de advogados foi contratada para atuar em uma rumorosa ação penal que tramita em uma pequena comarca do estado do Paraná.

Em virtude da emergência de saúde pública de importância mundial pela disseminação do novo coronavírus (Sars-CoV-2), e conforme disciplina o Decreto Judiciário nº 327/2021 do TJ-PR, designou-se a audiência de instrução e julgamento na modalidade virtual, por videoconferência.

Na data aprazada, a magistrada singular, a representante do Parquet, a vítima e as testemunhas compareceram virtualmente à solenidade a partir de suas respectivas residências, ao passo em que a defesa técnica e o acusado compareceram virtualmente a partir de nosso escritório profissional, que fica a quase 300 quilômetros de distância da comarca onde tramita a ação penal.

Iniciado o ato, a vítima foi chamada a compor a sala virtual de audiências para prestar seu depoimento (c.f. artigo 400, caput, do CPP), momento em que a defesa técnica foi surpreendida com determinação da magistrada singular para que o acusado se retirasse da sala de reuniões do nosso escritório profissional, em razão de suposto temor da vítima em prestar o depoimento em sua "presença" (com aspas, afinal, o ato estava sendo realizado virtualmente).

Adianto que diante da teratologia da determinação conjurada — a qual, destaca-se, além de contra legem, constrangeu o acusado —, prontamente roguei a palavra (artigo 7º, inciso XI, da Lei nº 8.906/1990), aduzindo as razões da irresignação e registrando o ocorrido em ata, a fim de afastar qualquer magistério jurisprudencial defensivo no sentido de preclusão e, posteriormente, rogar pela nulidade do ato.

Assentado o quadro fático, a grande questão a ser perfilhada é: em tempos de pandemia pela disseminação do novo coronavírus (Sars-CoV-2) — nos quais as audiências de instrução e julgamento estão acontecendo na modalidade virtual, por videoconferência —, é possível ao magistrado determinar a retirada do acusado da sala virtual de audiências, com fundamento no artigo 217 do CPP?

Pois bem.

Rememore-se, inicialmente, a sempre abalizada lição do ministro Celso de Mello, intransigente na defesa das liberdades individuais, para quem "se impõe reconhecer que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se estabelece uma relação de polaridade conflitante entre o Estado, de um lado, e o indivíduo ou agentes públicos, de outro" [1].

Com efeito, a garantia constitucional do due process of law, em seu conteúdo material, permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua própria configuração, entre os quais tem-se o postulado do direito de defesa (artigo 5º, inciso LV, da CF), que compreende as garantias processuais do direito de audiência e do direito de presença do réu.

Não é de hoje que o abalizado magistério doutrinário brasileiro sustenta, com veemência, o direito do acusado, ainda que esteja preso (nessa hipótese competindo ao Estado garantir os meios de sua presença), de comparecer, assistir, acompanhar pessoalmente e presenciar,sob pena de nulidade absoluta , todos os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal.

Nesse sentido é a lição perfilhada por: a) Tourinho Filho. Fernando da Costa. "Processo Penal", 1987, vol. 3, 10ª ed., Saraiva, p. 136; b) Pedroso, Fernando de Almeida. "Processo Penal O Direito de Defesa", 1986, Forense, p. 240; c) Penteado, Jaques de Camargo. "Acusação, Defesa e Julgamento", 2011, Millennium, p. 261/262, item nº 17 e p. 276, item nº 18.3; d) Grinover, Ada Pellegrini. "Novas Tendências do Direito Processual", 1990, Forense Universitária, p. 10, item nº 7; e) Fernandes, Antonio Scarance. "Processo Penal Constitucional", 2003, RT, p. 280-281, item nº 26.10;

A respeito da temática, vale referir, ainda, a abalizada lição do ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schietti Machado Cruz, para quem: "A possibilidade de que o próprio acusado intervenha, direta e pessoalmente, na realização dos atos processuais, constitui, assim, a autodefesa (…). Salienta-se que a autodefesa não se resume à participação do acusado no interrogatório judicial, mas há de estender-se a todos os atos de que o imputado participe. (…). Na verdade, desdobra-se a autodefesa em 'direito de audiência' e em 'direito de presença', é dizer, tem o acusado o direito de ser ouvido e falar durante os atos processuais (…), bem assim o direito de assistir à realização dos atos processuais, sendo dever do Estado facilitar seu exercício, máxime quando o imputado se encontre preso, impossibilitando de livremente deslocar-se ao fórum" [2].

Convém registrar, outrossim, que o direito de presença do acusado em todos os atos da instrução processual, garantindo-se, pois, sua autodefesa (que foi frontalmente violada no caso em análise), encontra suporte em convenções internacionais que o Estado brasileiro é signatário, exprimindo o caráter de garantia processual basilar de qualquer Estado que se pretenda verdadeiramente democrático (artigo 8º, §2º, "d" e "f", da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 678 de 1992; e artigo 14, nº 3, "d", do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 592 de 1992).

E nem poderia ser diferente, afinal, o postulado constitucional da ampla defesa, que compreende a autodefesa e garante o direito do acusado estar presente fisicamente, acompanhar e participar de toda a produção probatória, traduz-se na garantia de auxiliar sua própria defesa técnica, esclarecendo fatos e solicitando ao causídico de sua confiança que faça determinadas perguntas à(s) vítima(a) e testemunha(s), afinal, é ele que melhor do que ninguém sabe dos fatos.

Contudo, o caso inicialmente exposto, apresenta, além de frontal violação ao artigo 5ª, incisos LIV e LV, da CF, artigo 14, nº 3, "d", do PIDCP e artigo 8º, §2º, "d" e "f" da CADH, uma nítida vulneração a própria redação literal do artigo 217 do Código de Processo Penal, que assim disciplina:

"Artigo 217  Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram".

Veja-se que a clareza do dispositivo dispensa qualquer interpretação: caso haja fundado e concreto temor, humilhação ou constrangimento à testemunha ou ao ofendido que prejudique a verdade do depoimento, a inquirição (da vítima ou testemunha) deverá ser feita por videoconferência e, somente, repita-se, somente na impossibilidade de tomar-se o depoimento por videoconferência, é que poderia o acusado ser retirado da sala de audiência.

Ora, não se trata a referida advertência de mera sugestão do legislador, mas de imposição legal ao magistrado (comando normativo), justamente para que seja garantido ao acusado seu intransponível direito à autodefesa, leia-se: de ouvir o testemunho e participar ativamente, sugerindo, inclusive, questionamentos à vítima e/ou testemunha que serão realizados pelo seu defensor.

No caso em análise, pasmem, a audiência instrutória já estava sendo realizada por videoconferência, de modo que o pedido de retirada do acusado da sala de reuniões do escritório profissional de seu defensor representa afronta literal à própria determinação do legislador contida no artigo 217 do Código de Processo Penal.

Trata-se, em realidade, de ato teratológico e que imprimiu, além de seríssimo prejuízo ao acusado, uma grave humilhação.

Registre-se, por fim, que os agentes e órgãos estatais não podem, na temática de restrição à esfera jurídica de qualquer cidadão, exercer sua autoridade arbitrariamente, desconsiderando, no exercício da atividade persecutória, o postulado fundamental e basilar do Estado democrático (plenitude de defesa), eis que, calha enfatizar, para a legitimidade de qualquer medida imposta pelo poder público que resulte consequência no plano de direito e garantias individuais, é intransponível que se observe detidamente o princípio do devido processo legal (artigo 5º, inciso LV, da CF) [3].

Conclui-se, portanto, que caso a audiência de instrução esteja sendo realizada por videoconferência, torna-se vedada a retirada do acusado da sala virtual de audiências, com fundamento no artigo 217 do CPP, sob pena de manifesta violação ao artigo 5ª, incisos LIV e LV, da CF, artigo 14, nº 3, "d" do PIDCP e artigo 8º, §2º, "d" e "f", da CADH e a própria redação literal do artigo 217 do CPP.

 


[1] Trecho de voto do e. ministro Celso de Mello no julgamento plenária do PSV nº 58/DF.

[2] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Criminais, 2002, Atlas, p. 132-133, item nº 5.1.

[3] Trecho de voto do e. ministro Celso de Mello no julgamento plenária do PSV nº 58/DF.

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    é advogado criminalista, graduado em Direito pela Faculdade Cesusc, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA), sócio fundador do escritório Agacci & Almeida Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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