Observatório Constitucional

Centenário do 'Ulysses', de James Joyce, suscita reflexões sobre resiliência constitucional

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2 de fevereiro de 2022, 8h00

Uma das principais efemérides literárias de 2022 é o centenário do livro "Ulysses", de James Joyce [1], considerado um dos romances mais marcantes da história da literatura. Há exatos 100 anos, no dia 2 de fevereiro de 1922, o principal escrito de Joyce era publicado pela Shakespeare and Company, a famosa livraria que nos dias atuais está situada à beira do rio Sena, em Paris [2].

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Cem anos depois, o "Ulysses" de Joyce permanece sendo uma das obras mais estudadas e comentadas em todo o mundo, não apenas pela alta complexidade das distintas técnicas literárias e estilos de narração genialmente usados por Joyce, mas também pelas metáforas que seus personagens e episódios, baseados na "Odisseia" de Homero, ainda fornecem para a compreensão de comportamentos humanos e a reflexão crítica em diversas áreas do conhecimento, inclusive na filosofia política e no direito constitucional.

A Odisseia já foi fonte de inspiração metafórica para análises sobre a engenharia constitucional das democracias. É conhecida a analogia que Jon Elster fez do episódio de Ulisses e as Sereias com a função das constituições nas democracias liberais [3]. A atitude racional de Ulisses (Odisseu) ao amarrar a si mesmo ao mastro da nau para não sucumbir ao tentador canto das sereias [4] foi associada por Elster ao compromisso prévio que a assembleia constituinte de uma comunidade política democrática estabelece para proteger a sua constituição contra os desejos circunstanciais de alteração por parte das futuras gerações. "A estratégia de Ulisses — afirmava Elster — consiste em comprometer as gerações posteriores estabelecendo uma constituição que inclui cláusulas que impedem que seja modificada facilmente" [5]. Apesar das posteriores revisões dessas teses realizadas pelo próprio Elster [6], o conflito universal entre razão e vontade suscitado nessa passagem da Odisseia acabou fornecendo à filosofia política uma representação metafórica da rigidez constitucional em face dos anseios de maiorias ocasionais, tornando-se uma das analogias literárias mais utilizadas para explicar a tensão imanente entre constitucionalismo e democracia [7].

Mas o romance de Joyce não tem como personagem principal um herói com as características míticas construídas por Homero. O título Ulysses se relaciona com a intencional estruturação da obra conforme os capítulos da Odisseia (Telêmaco, Nestor, Proteu, Calipso, Lotófagos, Hades, Éolo, Lestrigões, Cila e Caribde, Rochedos errantes, Sereias etc.), além das múltiplas associações que a narrativa realiza com os diversos aspectos mitológicos da obra homérica.

Os personagens centrais do Ulysses de Joyce — Leopold Bloom, Stephen Dedalus e Molly Bloom — são propositadamente construídos em seus aspectos bastante mundanos (Stephen e Leopold seriam, em versões parciais, o alter ego do próprio Joyce), cidadãos comuns de uma Dublin repleta de problemas sociais típicos do início do século 20.

O que esses três personagens vivenciam como anti-heróis no dia 16 de junho de 1904 (o famoso Bloomsday) impactou a literatura mundial tanto quanto as façanhas heróicas do Ulisses de Homero e, da mesma forma, continua sendo referência para discussões sobre personalidades e conflitos humanos.

Assim como a viagem de Ulisses na Odisseia, o dia de Leopold Bloom narrado por Joyce representa o retorno para casa. As centenas de páginas da obra descrevem os acontecimentos de um único dia (cada episódio se passa em um determinado horário e tem uma técnica literária distinta) em que Bloom sai logo cedo e durante suas andanças por Dublin (uma verdadeira odisseia!) vivencia diversas situações que o fazem colocar em dúvida a sua volta para o lar.

O episódio que na obra de Joyce corresponde à façanha do Ulisses de Homero ante as sereias pode ser encontrado no capítulo onze, no qual Leopold Bloom é submetido a tentações — de duas garçonetes, Miss Douce (bronze) e Miss Kennedy (ouro) — em um ambiente (o bar do famoso Ormond Hotel) repleto de música (em referência explícita ao canto das sereias). Como bem analisado por Caetano Galindo, autor de uma das melhores traduções da obra de Joyce para o português: "Do tema central das sereias mitológicas Joyce tirou várias ramificações. Temos as duas mulheres tentadoras imóveis atrás de um balcão (um recife?) decorado com conchas, temos um cartaz do cigarro Sereia, temos a onipresença da música (muito se canta e se toca aqui), os trocadilhos com termos musicais (cantar mulheres, não ter dó) e uma verdadeira obsessão por efeitos formais e sonoros" [8].

As tentações atingem Bloom no momento em que ele se encontra atormentado por conflitos internos (o leitor fica imerso em seus pensamentos pela técnica literária do monólogo interior, ou fluxo de consciência, uma das principais marcas da obra de Joyce). Seu casamento está em grave crise (sua esposa o está traindo, na sua própria casa, naquele exato momento, e ele tem plena consciência do fato), ele ainda não conseguiu superar completamente a morte de seu filho primogênito e receia perder sua única filha (Milly Bloom) para o jovem namorado.

Mas Bloom, como Ulisses, consegue se livrar de todas as tentações (das sereias). O tradutor Caetano Galindo assim observou [9]: "Acima de tudo, o que fica, neste momento, e o que melhor resume Bloom e sua atitude diante de todas essas possíveis dores é a frase Ele não guardava ódio".

Na verdade, o dia de Leopold Bloom é uma das maiores lições da literatura sobre o poder da resiliência humana em situações de crise. "Sim, eu disse sim!", a famosa declaração da esposa Molly Bloom, encerra um romance sobre adaptação e reconciliação.

Se as tentações sofridas pelo Ulisses de Homero em seu retorno para casa suscitam analogias literárias sobre pré-compromisso e auto-restrição, os conflitos internos e as atitudes do anti-herói do Ulysses de Joyce em sua volta para o lar podem evocar interessantes metáforas literárias sobre resistência e superação.

O retorno para casa (o Nostos da Odisseia) não é apenas um fenômeno físico, representa também a superação de diversos obstáculos (tentações) para a preservação da identidade, a incolumidade do compromisso durante a travessia de volta para o lar. Além das atitudes de auto-restrição para enfrentar os desafios do caminho, o Nostos requer resiliência.

O Ulisses de Homero e o Ulysses de Joyce assim se complementam ao darem lições importantes sobre auto-restrição e resiliência. A analogia literária de Jon Elster pode ser aqui ampliada, para além das sereias, e tratar de todo o Nostos, tanto o de Homero como o de Joyce, para explicar a importância não apenas da auto-restrição, mas também da resiliência constitucional como proteção da constituição e da democracia.

A ciência política já constatou que os mecanismos de auto-restrição constitucional são insuficientes para resguardar a identidade constitucional em momentos de grave crise democrática [10]. Os estudos mais recentes sobre possíveis caminhos para enfrentamento da atual crise da democracia liberal têm ressaltado que, além das instituições voltadas à proteção da rigidez constitucional (da estrutura ou das bases do compromisso constitucional), profundas crises requerem resiliência constitucional para serem superadas [11].

As exigências normativas decorrentes do conceito de resiliência constitucional não são relativas apenas ao desenho institucional voltado para o resguardo da rigidez constitucional. Resiliência constitucional requer também o engajamento das instituições no desenvolvimento de práticas políticas de proteção da integridade constitucional [12]. Exige capacidade institucional de resistência para superar todas as tentações autoritárias (as sereias) na difícil travessia (a odisseia) de uma crise constitucional.

Na crise da democracia liberal, o regresso à normalidade institucional com preservação da identidade da Constituição (Nostos constitucional) depende dessa resiliência das instituições democráticas.

O ano do centenário do Ulysses de James Joyce é também o ano em que a democracia brasileira deverá superar a difícil travessia de um processo eleitoral com muitos obstáculos (e tentações) para as instituições.

A constituição brasileira tem sido bastante resiliente ante todas as crises enfrentadas desde 1988. Os desafios de 2022, não obstante, serão inéditos. Que as instituições democráticas continuem sendo resilientes e que a história da democracia brasileira neste ano possa ser escrita com seu próprio Nostos!

 


[1] JOYCE, James. Ulysses. Trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras; 2012. Na língua inglesa: JOYCE, James. Ulysses. Hertfordshire: Wordsworth Editions; 2010. Na tradução para o espanhol: JOYCE, James. Ulises. Trad. José María Valverde. Barcelona: Random House Mondadori; 2021.

[2] Os primeiros manuscritos de Joyce, que depois vieram a compor o Ulysses, já haviam sido declarados obscenos e proibidos em países como Inglaterra e Estados Unidos. Foi Sylvia Beach, a primeira dona da hoje famosa livraria situada na 37 rue de la Bûcherie (Paris), que reconheceu o potencial dos escritos de Joyce e fez todos os esforços para sua publicação pela Shakespeare and Company, o que se tornou realidade no dia 2 de fevereiro de 1922, coincidindo com o aniversário de 40 anos de Joyce. Também foi Sylvia Beach que cunhou o conhecido termo Bloomsday para designar a data de 16 de junho de 1904, o dia em que ocorrem os episódios do Ulysses de Joyce, protagonizados por Leopold Bloom, seu principal personagem. HALVERSON, Krista (ed.). Shakespeare and Company, Paris: a history of the rag & bone shop of the heart. Paris: Shakespeare and Company; 2017, p. 43.

[3] ELSTER, Jon. Ulysses and the Sirens. Studies in Rationality and Irrationality. Cambridge: Cambridge University Press; 1984. Na tradução para o espanhol: ELSTER, Jon. Ulises y las sirenas. Estudios sobre racionalidad e irracionalidad. México: Fondo de Cultura Económica; 2015.

[4] O episódio assim está descrito na Odisseia de Homero: "Primeiro alcançarás as Sirenas, elas que a todos os homens enfeitiçam, todo que as alcançar. Aquele que se achegar na ignorância e escutar o som das Sirenas, para ele mulher e crianças pequenas não mais irão aparecer nem rejubilar com seu retorno para casa, pois as Sirenas com canto agudo o enfeitiçam, sentadas no prado, tendo ao redor monte de putrefatos ossos de varões e suas peles ressequidas. Passa ao largo e tampa os ouvidos dos companheiros com amolecida cera melosa, para que nenhum outro as ouça; mas tu mesmo, se quiseres, ouve após te prenderem as mãos e os pés na nau veloz, reto no mastro, e nele se amarrarem os cabos, para que te deleites com a voz das duas Sirenas. Se suplicares aos companheiros que te soltem, que eles com ainda mais laços te prendam". Odisseia: Homero. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Ubu Editora; 2018, pp. 354-355.

[5] ELSTER, Jon. Ulises y las sirenas. Estudios sobre racionalidad e irracionalidad. México: Fondo de Cultura Económica; 2015.

[6] Jon Elster revisou a ideia principal do primeiro texto "Ulysses and the Sirens" (1979) na obra "Ulysses unbound" (2000), na qual explica: "O ensaio principal de Ulysses and the Sirens (1979, ed. Ver. 1984) era uma discussão sobre pré-compromisso ou auto-restrição, em que tentei caracterizar o conceito e ilustrá-lo com exemplos de vários domínios do comportamento humano (e animal). Neste volume, examino essa questão por meio de um novo olhar. (…) O capítulo 2 reflete uma mudança na minha visão sobre constituições como dispositivos de pré-compromisso. Fui bastante influenciado por um comentário crítico a respeito de Ulysses and the Sirens feito por um amigo e mentor, o falecido historiador norueguês Jens Arup Seip: 'No mundo da política, as pessoas nunca tentam restringir a si próprias, mas apenas aos outros'. Embora essa seja uma declaração radical, agora penso que está mais próxima da verdade do que a noção de que a auto-restrição é a essência da elaboração de uma constituição. Ulisses amarrou a si mesmo ao mastro, mas também pôs cera nos ouvidos dos remadores". ELSTER, Jon. Ulises unbound. Studies in rationality, precommitment, and constraints. Cambridge: Cambridge University Press; 2009. Na tradução brasileira: ELSTER, Jon. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Unesp; 2009.

[7] Sobre o tema, vale citar o estudo de Stephen Holmes ("O pré-compromisso e o paradoxo da democracia") publicado na obra organizada pelo próprio Jon Elster em conjunto com Rune Slagstad ("Constitucionalismo e Democracia"), na qual Holmes enfatiza a utilidade da metáfora retirada da Odisseia: "Uma constituição é como um freio, enquanto o eleitorado é como um cavalo descontrolado. Os cidadãos necessitam uma constituição, assim como Ulisses necessitou que o atassem ao mastro. Se fosse permitido aos votantes realizar seus desejos, inevitavelmente naufragariam. Ao atarem-se a regras rígidas, podem evitar tropeçar em seus próprios pés". HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: ELSTER, Jon; SLAGTAD, Rune. Constitucionalismo y Democracia. Trad. Mónica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica; 1999, p. 218.

[8] GALINDO, Caetano W. Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. São Paulo: Companhia das Letras; 2016.

[9] GALINDO, Caetano W. Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. São Paulo: Companhia das Letras; 2016.

[10] Entre outros, destacam-se: GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z. How to save a constitutional democracy. Chicago: University of Chicago Press; 2018. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar; 2018, p. 99 e ss.

[11] O conceito de resiliência constitucional e as exigências normativas dela decorrentes têm sido objeto de recentes debates. As discussões acadêmicas no direito constitucional têm dado atenção especial aos desafios impostos pela atual recessão democrática em todo o mundo. Entre esses debates, confira-se o que foi recentemente produzido e publicado no Verfassungsblog: https://verfassungsblog.de. Em especial, recomendam-se os seguintes estudos: GRABENWARTER, Christoph: Constitutional Resilience, VerfBlog, 2018/12/06, https://verfassungsblog.de/constitutional-resilience/; CHOUDHRY, Sujit: Constitutional Resilience to Populism: Four Theses, VerfBlog, 2018/12/11, https://verfassungsblog.de/constitutional-resilience-to-populism-four-theses/.

[12] No livro "Constitutional Erosion in Brazil", o Prof. Emilio Peluso Neder Meyer (UFMG) bem destacou: "Constitutional resilience is not only a matter of constitutional design. On the contrary, constitutional politics and the engagement of civil society matters for the defense of constitutions". MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford: Hart Publishing; 2021, p. 228.

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