Indulto natalino: Decreto 11.302 reacende debate sobre limites do poder de indultar
31 de dezembro de 2022, 6h16
No último dia 23 de dezembro, foi publicado o Decreto nº 11.302/22, que concedeu indulto natalino pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, a condenados por crimes diversos, dentre eles os praticados por agentes de segurança pública e militares das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem na hipótese de excesso culposo.
Segundo o texto do documento, entende-se que o indulto beneficiaria, dentro outros apenados, todos os policiais militares condenados pelo caso do Massacre do Carandiru, que ocorreu em outubro de 1992, quando 341 agentes da Polícia Militar do Estado de São Paulo foram enviados sob a justificativa de conter uma rebelião que estava ocorrendo na Casa de Detenção, resultando na morte de 111 pessoas, todas presos que estavam sob a tutela do Estado, e na condenação de 74 agentes da polícia por homicídio qualificado.
O caso Carandiru gerou uma onda de revolta e choque social e se tornou emblemático no que tange à grave violação de direitos humanos. Esse fato ensejou a responsabilização internacional do Brasil em 2000, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o país pela violação dos direitos previstos na Convenção Americana, tratado internacional firmado e ratificado pelo Brasil, e emitiu um relatório que reprovava não somente a morte dos detentos, mas as condições carcerárias, o tratamento dos agentes públicos para com os presos custodiados e a morosidade da justiça brasileira no julgamento do caso e na punição "séria e eficaz" dos agentes responsáveis. A Comissão emitiu relatório recomendando ao país que realizasse uma investigação completa, imparcial e efetiva, a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações de direitos humanos observadas neste caso.
Quando um Estado subscreve e ratifica um tratado internacional, como é o caso da Convenção Americana, vincula-se à obrigação de realizar os seus melhores esforços para aplicar a recomendação de um órgão de proteção. Mas, na obrigação imposta pela comissão não há veto expresso ao poder de indultar e não parece razoável que o entendimento acerca da impossibilidade de indulto seja implícito, fazendo mais sentido que, nestes casos, a matéria seja objeto de análise própria, a fim de preservar os direitos fundamentais do réu.
Ao mesmo tempo, é comum que anualmente, próximo ao Natal, o chefe do Poder Executivo conceda indulto aos agentes que se enquadrem nos termos objetivos e subjetivos do decreto, sendo esta uma tradição do direito constitucional brasileiro e um instituto previsto desde a primeira Constituição Republicana de 1891, ainda que possa estar sujeito a diversas críticas.
Hoje, não se discute mais a condenação dos agentes policiais envolvidos na operação do presídio do Carandiru. Os mesmos já foram condenados por sentença transitada em julgado e, portanto, não cabe mais qualquer recurso que possa desconstituir a sentença condenatória. Atualmente, o que a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo analisa é estritamente a dosimetria das penas em recurso.
No entanto, o que tem se observado nos últimos dias é uma grande discussão acerca da validade do indulto natalino decretado, motivando o ingresso do procurador-geral da República, Augusto Aras, no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra alguns dispositivos do decreto.
O indulto é um perdão coletivo, de competência privativa e discricionária do presidente da República, previsto no artigo 84, XII da Constituição Federal, representando uma causa extintiva de punibilidade estabelecida no artigo 107, II do Código Penal, que extingue o principal efeito da condenação, que é a pretensão executória da pena. Assim como preceitua a Súmula 631 do STJ, persistem os efeitos secundários penais e extrapenais da condenação, não significando, portanto, uma desconstituição da sentença condenatória.
O mecanismo é entendido como parte do controle recíproco e do sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição Federal na tripartição de poderes. Assim sendo, a doutrina entende que, respeitados os limites constitucionais da separação de poderes e da não ingerência do Executivo na política criminal estabelecida pelo Legislativo, fica a cargo do presidente a extensão e os requisitos do indulto, não estando o mesmo vinculado à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal.
Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a concessão de indulto não fere a separação de poderes, ainda que eventualmente ocorram alegações no sentido de o indulto concedido representar um esvaziamento da política criminal estabelecida pelo legislador e aplicada pelo Judiciário. Nessa senda, doutrinadores como Ives Gandra Martins, Pinto Ferreira e Celso Ribeiro Bastos lecionam que é absoluta a faculdade de indulto concedida ao chefe do Executivo qualquer que seja a infração penal praticada e qualquer que seja a pena cominada e, segundo o ministro Celso de Mello, o indulto não é suscetível de revisão judicial, a não ser que desrespeitados os limites expressamente previstos no texto constitucional.
É verdade que o dispositivo constitucional não traz em redação específica os limites do poder de indultar. Todavia, de acordo com entendimento da Suprema Corte, tendo em vista a similar natureza jurídica e o mesmo fim a que se prestam (perdoar, total ou parcialmente, autores de crimes em circunstâncias especiais, principalmente por motivações humanitárias) e a interpretação sistemática da Constituição, os limites para o indulto são os previstos no artigo 5, XLIII da Constituição Federal que trata da limitação para concessão de graça e anistia e dizem respeito aos casos envolvendo prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os crimes definidos como hediondos.
Apesar disso, em sede de julgamento da EXT 1.435/DF, relator(a): Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 29/11/2016, o Supremo Tribunal Federal também reconheceu como limitação constitucional implícita a concessão de indulto a crimes objeto do pedido extradicional.
Embora não haja uma deliberação e análise específicas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro sobre os crimes considerados de lesa-humanidade, a doutrina constitucional argentina entende estes como também sendo um limite à possibilidade de indulto, quando a persecução o Estado obrigou-se por tratados internacionais. Esse entendimento vem sendo posto como fundamentação à impugnação de beneficiar os condenados pelo caso do Massacre do Carandiru pelo Decreto 11.302/22, considerando que em 2017 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos manifestou preocupação com a decisão de concessão de indulto a Alberto Fujimori, pela inconvencionalidade da medida que extinguia a pena de um condenado por graves violações de Direitos Humano nos casos Barrios Altos e La Cantuta vs Peru.
Nestes pontos é que se fulcram as objeções que o Decreto 11.302/22 tem sofrido e a fundamentação da ADI 7.330: a inobservância dos limites materiais constitucionalmente previstos, dado que desde a Lei 8.930/94 o homicídio doloso qualificado foi incluído no rol de crimes hediondos da Lei 8.072/90 que trata especificamente da matéria.
Entretanto, a polêmica que se verifica neste caso é que na data do fato, qual seja 2 de outubro de 1992, o crime de homicídio qualificado pelo qual os agentes policiais envolvidos no caso Carandiru foram condenados ainda não era considerado como hediondo, o que por uma vertente poderia sustentar a validade do indulto em discussão, tendo em vista que, ao expor em rol taxativo os limites do poder de perdão, o texto constitucional não especifica se a hediondez do crime deve ser considerada na data do fato ou na data da edição do decreto, não podendo ser utilizada interpretação mais gravosa em prejuízo do réu. Nessa ótica, é coerente que se reflita sobre o cuidado de uma visão restritiva e de primazia técnica ao debruçar-se sobre questões que visam limitar os poderes de contenção da punição.
Por outro lado, em apreciação anterior sobre o tema, o próprio STF nos julgamentos dos HC 94.679, relator (a): Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julgado em 18/11/2008 e HC 117.938, relator(a): Rosa Weber, 1ª Turma, julgado em 10/12/2013, já tinha decidido, em ambas as oportunidades, pela independência da data da prática do crime para análise do cumprimento deste pressuposto material, priorizando que a ausência de caracterização legal do fato como hediondo deve ser requisito observado no dia da edição do ato normativo concessivo de indulto. Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal considerou que a adoção deste parâmetro temporal não configura uma violação ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa, previsto no artigo 5, XL da Constituição Federal, do qual se entende que a lei penal só tem efeito retroativo quando for para beneficiar o réu.
Por essência, num sistema republicano não se tem um poder absoluto, visto que um poder ilimitado seria a negativa do próprio Estado democrático de Direito. Embora consideradas as características técnicas supra relatadas do indulto, uma Constituição limitada neste contexto de Estado de Direito jamais poderia prever ou considerar algo que promovesse uma perspectiva de impunidade, por isto é que o ato de clemência presidencial não se constitui imune aos limites constitucionais explicitados e tampouco ao juízo de verificação jurisdicional de exatidão do exercício de oportunidade perante a constitucionalidade do decreto.
Ainda que tenha sustentáculos legais, a questão é preponderantemente de debate constitucional e o reexame judicial é um exercício delicado, que exige extremo equilíbrio e ponderação, pois necessariamente traz o Judiciário para a arena política. Portanto, o que se vê nesse caso é o controle jurisdicional do Poder Executivo de indultar. Controle este que o STF, em sede de julgamento da ADI 5.874, reconheceu como possibilidade excepcional, devendo ser pautado por um senso de auto coibição, não havendo nenhuma hipótese desarrazoada que sustente a possibilidade de o Poder Judiciário entrar em análise de mérito da decisão, ainda que alguns requisitos estabelecidos no decreto estejam em desacordo com a concepção de justiça e eficiência da corte, bem como em discordância dos anseios e valores populares acerca da opção feita pelo Executivo.
Por ora, diante da natureza da medida liminar requerida na ADI 7.330, foi aberto prazo de 48h para a manifestação das partes. Assim, resta aguardar se a liminar será deferida e se a apreciação da ação pelo Supremo Tribunal Federal irá continuar caminhando no mesmo sentido dos últimos entendimentos, segundo os quais o requisito de hediondez trazido pela Constituição Federal não deve ser averiguado na data do fato delituoso, mas no momento de edição do ato normativo e qual seria o reflexo dessa adoção temporal para o Direito Penal, além de apreciar se será considerado parte dos limites ao poder de indultar os crimes de lesa-humanidade no plano internacional.
Bibliografia:
ADI 7.330. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 30/12/2022.
ADI 5.874. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 30/12/2022.
Decreto nº 11.302 de 2022. Disponível em:
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=11302&ano=2022&ato=ee5c
3YE9kMZpWT2f9. Acesso em: 29/12/2022.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 14ª ed. Editora Forense, 2021.
Projeto de Lei nº 2.821 de 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2294223. Acesso em: 29/12/2022.
Relatório 34/00 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal:
volume único. 2ª ed. São Paulo, SP: Atlas, 2020.
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