Opinião

As manifestações antidemocráticas perante o Direito e a política

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29 de dezembro de 2022, 19h16

Neste texto procuro apresentar uma leitura possível de uma eventual responsabilização dos sujeitos envolvidos, de uma forma ou de outra, nas manifestações antidemocráticas realizadas recentemente no Brasil. Pensando a partir das reflexões teóricas de Hannah Arendt, objetivo apresentar argumentos que podem ser utilizados em uma discussão sobre quem pode ser responsabilizado, e de que maneira, por esses atos.

Em 1968, a filósofa política alemã Hannah Arendt escreveu sobre a responsabilidade de quem integra, ativamente ou não, regimes, organizações e atos antidemocráticos [1]. Pensando a diferença entre as responsabilidades individual e coletiva, a autora sustenta que a extensão dessa responsabilidade varia conforme o campo sobre o qual a responsabilização é trabalhada: o legal e o político.

Arendt explica que existe uma diferença entre se envolver nesses movimentos durante governos democráticos, autoritários em geral, e totalitários especificamente [2]. Segundo aponta, cada um deles permite que a escolha pela adesão seja livre ou imposta, estando a medida da margem de escolha ligada ao grau de rigidez do regime do governo do momento.

Assim, quanto mais rígido o regime, menor a margem de liberdade para apoiar ou integrar o movimento antidemocrático — de modo que nos regimes totalitários, essa margem é a mais reduzida possível, e nos democráticos, a mais ampla. Isso, porém, não implica que seus apoiadores e integrantes ficarão isentos de responsabilidade no momento em que a responsabilização acontecer. Sobretudo quando a adesão se dá quando há claras e fáceis alternativas a esse apoio, como ocorre em regimes democráticos.

Como explica a autora, aqueles que apoiam e se envolvem devem ser responsabilizados na medida de seu envolvimento. Nesse sentido, independentemente do grau de rigidez do regime, quem se envolve ativamente em empreitadas antidemocráticas, seja de maneira ampla ou em momentos pontuais, deve ser responsabilizado legalmente na medida da forma como se dá sua participação. A responsabilização legal é realizada na medida do que cada sujeito efetivamente faz nesses movimentos.

Trata-se de uma responsabilidade objetiva e individual. Dessa maneira, sustenta, não há que se falar em uma responsabilidade coletiva sob o ponto de vista legal. As normas jurídicas, cabe lembrar, são gerais, como explica a teoria do direito, mas a responsabilização, a aplicação de sanções, recai sobre indivíduos. Como também explica a teoria do direito, as decisões judiciais são normas individuais, isto é, têm como destinatários, como pessoas que devem cumpri-las, sujeitos específicos.

A forma como a lei será aplicada na conformidade dos atos praticados por cada indivíduo, portanto, é o que Arendt chama de responsabilidade legal. É a aplicação das normas — que são gerais — em casos concretos, nos quais cada indivíduo envolvido responde na medida que individualmente lhe corresponde. Assim, não se poderia falar em uma responsabilidade legal por atos praticados por uma coletividade.

Sob uma perspectiva política, porém, Hannah Arendt explica que é possível falar em responsabilidade coletiva. Segundo a autora, isso é possível na medida em que certos sujeitos façam parte de grupos cujos demais integrantes realizem, em nome do grupo, atos dos quais esses sujeitos não participam ativamente. Isto é, quando certos atos são praticados pelo grupo que integram, independentemente da vontade de sujeitos específicos que, por um motivo ou por outro, se abstêm de cometê-los, cabe a todos, igualmente, uma responsabilidade política.

Um exemplo que se pode dar aqui, para fins elucidativos, é a responsabilidade de reparação que se atribui a um Estado e à sua população não negra pela sistemática escravista que o estruturou e desenhou sua cultura, seu sistema jurídico e suas instituições por séculos. Nas palavras da autora,

"somos sempre considerados responsáveis pelos pecados de nossos pais, assim como colhemos as recompensas de seus méritos (…). Só podemos escapar dessa responsabilidade política e estritamente coletiva abandonando a comunidade, e como nenhum homem pode viver sem pertencer a alguma comunidade, isso significaria simplesmente trocar uma comunidade por outra, e assim um tipo de responsabilidade por outro" [3].

Assim, segundo aponta, é sempre possível atribuir responsabilidade coletiva — política — àqueles que apoiam, compõem e/ou legitimam um movimento pelas práticas por ele cometidas.

Diante do exposto sobre responsabilidade individual e coletiva, legal e política, importa traçar um paralelo ente a teoria e a realidade — mais especificamente, a realidade brasileira. Desejo pensar, neste momento, sobre a responsabilidade dos bolsonaristas, em geral, e dos aquartelados, em particular, pelos movimentos antidemocráticos cometidos após o resultado das eleições presidenciais de 2022, que deram a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva.

O bolsonarismo, pode-se dizer, é o movimento político de caráter autoritário, conservador e moralista, composto por pessoas que seguem Jair Messias Bolsonaro, presidente da República brasileira entre 2019 e 2022. Sistematicamente, esse movimento e seu líder atentam contra as instituições republicanas, o regime democrático e o Estado de Direito, continuamente defendendo ou sugerindo a importância e a necessidade de se fragilizar instituições como o STF, e de se implementar um regime ditatorial, a partir de uma intervenção militar como se deu na ditadura militar brasileira.

Bolsonaristas, por sua vez, podem ser definidos como aqueles que aderem a esse movimento, introjetando e difundindo seus ideais e propostas [4]. Após a concretização do resultado das eleições presidenciais de 2022, aconteceram, em todo o Brasil, manifestações contrárias a esse resultado, questionando a legitimidade do processo eleitoral, mesmo tendo as eleições sido lisas e o resultado fruto da escolha popular majoritária. Tais manifestações podem ser caracterizadas como antidemocráticas, portanto.

De fechamento de estradas a ocupação da entrada de quartéis, as manifestações contestam a vitória lulista, e pedem que militares intervenham no Brasil de modo a reverter a derrota eleitoral de Bolsonaro, demanda e atos que consideram legítimos sob as mais diferentes alegações, como uma suposta fraude nas urnas eletrônicas.

Ocorre que, na medida em que tais manifestações possuem tal caráter, e tais fundamentos e demandas, elas contrariam os pressupostos balizados pela Constituição Federal de 1988. E é na medida de sua inconstitucionalidade que quem as pratica, endossa, ou adere ao movimento que o encabeça, deve ser responsabilizado.

Considerando o explicado por Arendt, pode-se pensar que, desde um ponto de vista legal, podem ser considerados individualmente responsáveis aqueles que se envolveram diretamente nesses atos, seja acampando na frente de quartéis ou fechando estradas, seja financiando, coordenando ou incentivando essas manifestações, ou omitindo-se na medida da necessidade de sua efetiva atuação para coibir esses atos e frear esses movimentos.

No entanto, no que diz respeito à responsabilidade coletiva, política, esta se aplicaria, pode-se dizer a todos os bolsonaristas, isto é, a todas as pessoas que, em alguma medida, apoiam ou aderem ao bolsonarismo, independentemente de sua participação nas atividades realizadas pelos integrantes desse movimento. Também nas palavras de Arendt,

"nenhum padrão moral individual e pessoal de conduta será capaz de nos escusar da responsabilidade coletiva. Essa responsabilidade vicária por coisas que não fizemos, esse assumir as consequências por atos de que somos inocentes, é o preço que pagamos pelo fato de levarmos nossa vida não conosco mesmos, mas entre nossos semelhantes" [5].

Tanto antes que termine o atual governo, quanto após o início do próximo, é importante pensar a responsabilização de quem atenta contra a democracia. Mais do que isso, importa que as instituições assumam uma postura diante disso, para a própria manutenção da institucionalidade e da democracia. A realidade do enfrentamento dessa questão, porém, é algo a se aguardar e, em acontecendo, analisar. Que desfecho isso terá, se efetivamente houver, cabe ao futuro dizer.

 


REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Responsabilidade coletiva. In: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 


[1] ARENDT, 2004.

[2] O governo totalitário, explica Hannah Arendt, é a forma mais aguda a que pode chegar um governo autoritário.

[3] ARENDT, 2004, p. 217.

[4] Os graus de bolsonarismo, bem como a atribuição de caráter bolsonarista àqueles que compõem o governo Bolsonaro sem aderir, por um motivo ou por outro, a seus ideais, deve ser discutido em outro momento.

[5] ARENDT, 2004, p. 225.

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