Controvérsias Jurídicas

A constitucionalidade do custeio de programas sociais para além do teto

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

29 de dezembro de 2022, 12h12

Em decisão monocrática publicada no último dia 18 de dezembro, o ministro Gilmar Mendes atendeu petição apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade no Mandado de Injunção nº 7.300 e determinou que o pagamento dos programas sociais de distribuição de renda poderá ser efetuado com o valor economizado pelo não pagamento de precatórios, uma vez que as Emendas Constitucionais 113 e 114/2021 estabeleceram que somente os precatórios solicitados até 2 de abril, e não mais até 1 de julho, terão seus valores incluídos no orçamento do ano seguinte.

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Além da utilização desse montante economizado pelo não pagamento dos precatórios, a decisão também autorizou a tomada de créditos extraordinários pelo governo federal (CF, artigo 167, § 3º), mesmo além do teto de gastos, previsto no artigo 107, §6º da ADCT, para garantir a manutenção do valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil (Bolsa Família), para as famílias em situação de vulnerabilidade.

Na petição, argumenta-se o corte de 33% apontado pelo Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2023), ainda não aprovado, comprometeria a política de distribuição de renda para o próximo ano, na medida em que reduziria para R$ 450 referido valor, a partir de 2023.

A questão não é inédita em nossos Tribunais Superiores, tendo em vista que em 2021, a Defensoria Pública da União ingressou com mandado de injunção no sentido de que a União tomasse as providências necessárias para a definição de uma renda básica de cidadania, prevista na Lei nº 10.835/2004, a ser implementada em 2005. Naquela decisão, o STF impôs a fixação de um valor para a renda básica nacional capaz de atender as despesas mínimas com alimentação, educação e saúde. O critério para a concessão do benefício foi o de altíssimo grau de vulnerabilidade, conceito extraído dos indivíduos em situação de pobreza ou extrema pobreza (renda per capita de R$ 178 e R$ 89, respectivamente).

À época, os ministros divergiram apenas quanto à forma da implementação do programa. Marco Aurélio Mello, relator do caso, estabeleceu o prazo de um ano de vacatio legis para sua entrada em vigor, defendendo a prefixação do patamar de R$ 1.045 durante o período de espera, enquanto o governo estudasse qual devesse ser o valor mais adequado. Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski tiveram o mesmo entendimento.

Prevaleceu, no entanto, o voto divergente de Gilmar Mendes, sem a prefixação de valores pelo Poder Judiciário: "Eventual concessão da tutela invocada pelo impetrante, mediante fixação arbitrária de valores e das condições de elegibilidade das primeiras etapas de implementação da renda básica, fatalmente levaria ao desarranjo das contas públicas e, no limite, à desordem do sistema de proteção social brasileiro" [1].

O fato é que, desde a vigência da Lei nº 10.835/04, o programa de redistribuição de renda a famílias vulneráveis permanece sem a devida regulamentação. Essa inércia cria embaraços para sua implementação, tornando necessária a intervenção do Poder Judiciário por força da CF, artigo 102, I, q [2], pois configura forma indireta de esvaziar o mandamento constitucional de combate à pobreza, além de fazer letra morta ao disposto na Lei 10.835/2004.

Objetivando trazer efetividade aos ditames legais, Gilmar Mendes aduziu a necessidade de implementação de políticas públicas sociais e a fixação de um conceito de "política estável e previsível de renda básica", de modo a não depender anualmente de longos debates no Congresso Nacional para materializar o que já está previsto na Carta Magna, cujo artigo 3º, III impõe o dever de erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.

A EC 31/00, regulamentada pela Lei Complementar 111/01 (Lei de Responsabilidade Fiscal), criou o Fundo de Erradicação da Pobreza, o qual, segundo o ADCT 79, tem "o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência".

Além disso, a CF, em seu artigo 6º, parágrafo único, estabelece que "todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária". Tal mandamento fundamentou a edição da Lei nº 11.888/2008, que assegura o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, além da Lei nº 11.977/09, alterada pela Lei nº 12.424/11, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas [3].

Por fim, o artigo 23, X, do Texto Constitucional dispõe ser "competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios combater as causas da pobreza e os fatores da marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos".

Embora a decisão destaque que combater a pobreza e instituir renda básica familiar são determinações constitucionais, sua adoção fora do teto, com abertura de crédito extraordinário, servem ao propósito de garantir o pagamento de R$ 600 aos cadastrados no programa. Concluiu então, Gilmar Mendes decidiu ser juridicamente possível eventual dispêndio adicional de recursos com o objetivo de manutenção do programa Auxílio Brasil, mediante abertura de crédito extraordinário fora do teto constitucional de gastos.

Ao contestar o argumento de que a abertura de crédito suplementar acarretaria insegurança institucional, destacou:"(…) o teto de gastos não pode ser usado como escudo para o descumprimento de decisões judiciais, circunstancia que, inclusive, foi considerada no voto condutor do acórdão recorrido, o qual, ao divergir do relator, determinou que o benefício deveria ser fixado pelo Poder Executivo, no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito, concedendo um prazo para que os governantes pudessem se organizar" [4].

A decisão reacende o debate sobre a interferência do Poder Judiciário em questões afetas exclusivamente ao Poder Executivo, mediante autorização do Legislativo, bem como de que falta aos juízes a legitimidade constitucional do voto para definir prioridades políticas ante a limitação do orçamento.

A questão está longe de ser pacífica, mas aqui se nota claramente que o STF se viu compelido a agir, diante da demora dos demais Poderes em dar cumprimento às metas que eles mesmos fixaram. Se a CF estabelece expressamente no artigo 6º, parágrafo único, que o programa de distribuição de renda aos menos favorecidos é permanente, dentre vários outros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, o Poder Judiciário nada mais fez do que suprir a omissão por meio dos meios jurídicos adequados.

Estamos, assim, diante de um caso clássico de interferência legal e necessária do Poder Judiciário em atos de governança do país. Além de servir como instrumento de atingimento de uma sociedade mais justa e igualitária, nos exatos termos dos mandamentos constitucionais, os programas de distribuição de renda garantem o custeio do mínimo existencial de nossos concidadãos mais necessitados.

Assegurar a perpetuação de programas de renda básica de cidadania representou significativo avanço no debate político, mas a falta de regulamentação quanto à determinação dos valores a serem pagos trouxe inequívoco risco de perda de renda a milhares de brasileiros vulneráveis, legitimando a interferência do Judiciário até que os poderes competentes determinem os parâmetros exatos de aplicação da lei.

 


[1] MI 7.300. nº único 0089397-83.2020.1.00.0000/DF. Relator min. Marco Aurélio. Redator do acórdão min. Gilmar Mendes.

[2] "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: (…) q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal".

[3] NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada, 8ª edição, São Paulo. Ed. Thompson Reuters Brasil, 2022, p. 410.

[4] MI 7.300. nº único 0089397-83.2020.1.00.0000/DF. Relator min. Marco Aurélio. Redator do acórdão min. Gilmar Mendes.

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