Opinião

Se a obra terminar antes do prazo, é lícito cobrar juros de obra?

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27 de dezembro de 2022, 21h18

Este artigo tem como objetivo responder ao seguinte questionamento: é lícito cobrar do adquirente juros de fase de obra, em contrato do Sistema de Financiamento Habitacional para famílias de baixa renda, quando as chaves do imóvel são entregues antes do período fixado no contrato para a conclusão das obras?

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Os contratos realizados no Programa Nacional de Financiamento Habitacional para famílias de baixa renda são regrados, atualmente, pela Lei 11.977/2009 (Programa Minha Casa, Minha Vida), regulamentada pelo Decreto 7.499/2011, e pela Lei 14.118/2021 (Programa Casa Verde e Amarela), regulamentada pelo Decreto 10.600/2021.

É de se notar que houve uma substituição de programas, mas que, embora a revogação legislativa não tenha sido expressa, ela ocorreu tacitamente [1]. De todo modo, é necessário destacar que os contratos firmados até 25/08/2020 são regidos pela Lei 11.977, em função de a Lei 14.118 ser lei de conversão da Medida Provisória 996, publicada em 26/08/2020, data do início de sua vigência [2].

A leitura da legislação de regência não fornece nenhuma resposta à pergunta que rege a presente pesquisa. A Portaria 163/2016 [3], do antigo Ministério das Cidades, esclarece que o processo de seleção de famílias candidatas à aquisição das unidades habitacionais tem início somente quando a obra já tiver sido 50% executada [4]. Em 2018, a Portaria 464 [5] reduziu esse percentual para 30% [6], indicando que a fase de obras compreende o período entre a emissão da ordem de serviço para o início das obras até a sua conclusão ou a mudança das famílias para a nova moradia, conforme o caso [7], e complementa que a fase pós-obra tem início imediatamente após a conclusão das obras/serviços ou mudança dos beneficiários para a nova unidade habitacional [8]. Nenhuma outra Portaria [9], editada tanto sob a Lei 11.977 quanto sob a Lei 14.118, trouxe qualquer informação diferente que possa ser considerada para responder à pergunta aqui posta.

A procura por uma resposta recai, então, sobre os documentos que a CEF disponibiliza para fins contratuais. No site da empresa pública sobre o Programa Casa Verde e Amarela é disponibilizada apenas uma cartilha sobre financiamento imobiliário [10], na qual a única menção aos juros de obra é feita já ao final do documento [11], em que esclarece não apenas que tais juros serão pagos pelo devedor, como também que "durante a fase de obra não há amortização do saldo devedor, que começa a ser reduzido após a conclusão da obra, com o início do pagamento das prestações". Portanto, a única informação é a de que os juros de fase de obra somente incidem até a data de conclusão da obra.

No site sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida há mais documentos disponíveis, inclusive minutas de contratos-padrão com as cláusulas gerais [12], mas nenhum deles trata da questão. Assim, busca realizada no site da CEF sobre juros de fase de obra permite o encontro de uma cartilha [13], na qual existe a informação de que o período de amortização do financiamento poderá iniciar, a requerimento do devedor, depois de constatada tanto a conclusão da obra quanto a comprovação de que nela foram aplicados todos os recursos, o que deve ser feito mediante a apresentação da certidão de averbação de construção junto ao respectivo registro de imóveis e pagamento da tarifa de acompanhamento da obra [14]. A cartilha não esclarece a quem incumbem todas essas comprovações, em especial porque, em regra, o devedor tem acesso tão somente ao certificado de conclusão da construção ("habite-se"). Nesse passo, uma interpretação sistemática do documento evidencia que o devedor somente é obrigado a comprovar a conclusão da obra quando responsável pelo seu acompanhamento, obrigação que tem apenas na modalidade empreitada, mas não na de mútuo [15].

A resposta à pergunta formulada pode ser extraída indiretamente dessas informações, já que, concluída a fase de obra, é possível ao devedor requerer o início da amortização, desde que demonstrada a legalização, mediante certificado de conclusão da construção, cuja responsabilidade só é do devedor no financiamento por empreitada, modalidade de menor incidência que a de mútuo. Portanto, não é lícita a cobrança do mutuário de juros de fase de obra, quando as chaves do imóvel são entregues antes do período fixado no contrato para a conclusão da construção. Todavia, cabe uma indagação adicional: ainda que o devedor mutuário não requeira o início da fase de amortização, é lícita a cobrança de juros de obra após a conclusão/legalização da construção findar antes da data prevista no contrato? A documentação analisada não responde à indagação.

A experiência forense, de onde surgiu essa dúvida, também não traz elucidações, porque o contrato-padrão da CEF nada dispõe expressamente a respeito da possibilidade de se cobrar juros de fase de obra em casos de antecipação da entrega das chaves, isto é, antes de atingido o prazo contratual sem o período de tolerância. A única menção no contrato é exatamente a já levantada até aqui: o devedor arcará com os encargos de obra durante o período de construção e legalização, ou seja, até a entrega do certificado de conclusão da obra, o habite-se.

A pesquisa no site do STJ não identifica enfrentamento da questão senão em caso de atraso na entrega do imóvel. O entendimento vinculante do Tribunal, firmado no Tema Repetitivo 996 [16], é inclusive de que "é ilícito cobrar do adquirente juros de obra, ou outro encargo equivalente, após o prazo ajustado no contrato para a entrega das chaves da unidade autônoma, incluído o período de tolerância". A tese tem se repetido em julgados recentes da Corte, ora literalmente [17], às vezes resumidamente ("é indevida a cobrança de juros de obra a partir da entrega das chaves"[18], outras com redação diversa ("ultrapassado o prazo para a conclusão das unidades imobiliárias, não podem ser cobrados do adquirente encargos contratados para incidir no período de construção, entre eles, os juros de obra"[19], mas todos com a mesma ideia subjacente: os juros de obra só podem incidir no período de construção. Ou, dito de outro modo: os juros de obra só podem incidir até a entrega do imóvel, o que ocorre com a entrega das chaves, acompanhada do habite-se. A tese jurídica firmada no Tema Repetitivo 996 parece, no entanto, deixar uma dúvida: seria adequado interpretar pela licitude da cobrança de juros de fase de obra até o atingimento do prazo fixado no contrato, mesmo que as chaves tenham sido entregues antes?

A resposta parece ser negativa. Embora o STJ não tenha enfrentado o questionamento no Tema Repetitivo 966, porque não foi provocado a fazê-lo, a exegese proposta parece incabível, em especial diante do fato de que o prazo limite para o término da fase de construção é uma projeção, o que explica a existência da cláusula de tolerância bastante ampla, a se considerar que o repasse dos recursos da CEF à incorporadora/construtora só inicia após comprovado pelo menos 30% da execução da construção.

A propósito, o STJ, em um dos casos que chegou a seu conhecimento em fase recursal depois de a tese no Tema Repetitivo 966 ter sido firmada, enfrentou uma questão similar à que foi proposta em nosso questionamento. Na ocasião [20], o Tribunal chancelou o entendimento do Tribunal de origem de que, após a entrega do imóvel, é ilícita a cobrança do consumidor dos juros de obra. Há, nesse encalço, algumas decisões monocráticas que mantêm a ilicitude da cobrança quando a obra é encerrada antes do prazo ajustado e que a obrigação de informar à instituição financiadora não é do consumidor/devedor, mas da promitente vendedora, é dizer, a incorporadora/construtora [21].

A maioria dos casos que chega ao conhecimento dos TRFs também é de cobrança de juros de obra associada ao atraso na entrega do imóvel. Há julgado colhido no site do TRF2 em que a entrega do imóvel ocorreu antes do prazo contratualmente previsto para o término da obra. No caso decidido pelo TRF2, a amortização foi iniciada pela CEF no mês subsequente ao da conclusão e legalização da obra, isto é, 26/08/2015, não após o prazo contratual (26/4/2016) [22].

Portanto, parece indiscutível que, encerrada a fase de construção antes do previsto no contrato e emitido o habite-se, não mais se deve cobrar juros de obra, passando, então, à fase de amortização do contrato celebrado entre o consumidor e a CEF. Entender de modo diverso implicaria na minimamente curiosa situação de que o consumidor, já de posse do imóvel, seria contribuinte de IPTU, mas ainda estaria pagando encargos como se o imóvel estivesse ainda em construção, ou seja, fora de sua posse.

 


[1] No mesmo sentido, parece entender: TARTUCE, Flávio. A lei 14.118-21 e suas repercussões para o Direito de Família. Breves anotações. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1632/A+lei+14.118-21+e+suas+repercuss%C3%B5es+para+o+Direito+de+Fam%C3%ADlia.+Breves+anota%C3%A7%C3%B5es, com acesso em 9 dez. 2022.

[2] Para uma melhor visualização sobre cada um desses programas, orienta-se o acesso aos sites do Ministério do Desenvolvimento Regional e da Caixa Econômica Federal, que contam com material farto e elucidativo sobre as operações: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/minha-casa-minha-vida/programa-minha-casa-minha-vida-mcmv; https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/casa-verde-e-amarela/programa-casa-verde-e-amarela); https://www.caixa.gov.br/voce/habitacao/minha-casa-minha-vida/Paginas/default.aspx; https://www.caixa.gov.br/voce/habitacao/casa-verde-e-amarela/urbana/Paginas/default.aspx, todos com acesso em 9 dez. 2022.

[3] Portaria disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/secretaria-nacional-de-habitacao/portaria_163_2016.pdf, com acesso em 9 dez. 2022. A referida Portaria aprova o Manual de Instruções para a seleção de beneficiários do Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU), no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida.

[4] Item 4.3: "O processo de seleção e sorteio dos candidatos do empreendimento iniciará quando a obra do empreendimento atingir 50% (cinquenta por cento) de execução".

[6] Item 5.5.2, b: "encaminhamento, nas operações vinculadas, da relação das famílias beneficiárias de unidades habitacionais, até que a obra atinja 30% de execução das obras da produção habitacional, ao Agente Operador/Financeiro, visando torná-las aptas para a assinatura de contrato".

[7] Item 5.5.1: "Essa Fase compreende o período que vai da emissão da ordem de serviço para início de obras até a conclusão destas ou a mudança das famílias para a nova moradia, quando for o caso".

[8] Item 5.6.1: "Essa Fase compreende o período que vai da emissão da ordem de serviço para início de obras até a conclusão destas ou a mudança das famílias para a nova moradia, quando for o caso".

[10] Versão acessada foi a 7.0, de nov. 2022. Disponível em: https://www.caixa.gov.br/Downloads/habitacao-documentos-gerais/passos_indexadores_amortizacao.pdf, com acesso em 9 dez. 2022.

[11] Na citada cartilha, ver as páginas 51 e seguintes.

[14] Na citada cartilha, ver a página 14.

[15] Na citada cartilha, ver as páginas 2 e 3.

[16] STJ, REsp 1729593, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, DJe 27/09/2019.

[17] STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1936821, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 19/08/2022; STJ, AgInt no REsp 1970716, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 10/08/2022.

[18] STJ, AgInt no AREsp 1827725, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, DJe 17/08/2022.

[19] STJ, AgInt no REsp 1988491, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, DJe 02/06/2022.

[20] STJ, AgInt no REsp 1875955, relator ministro Maria Isabel Gallotti, 4ªTurma, DJe 24/03/2022.

[21] Cf. decisões monocráticas: STJ, REsp 1870545, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 05/08/2020; STJ, AREsp 1633088, relator ministro João Otávio de Noronha, DJe 18/03/2020; STJ, AgInt no AREsp 1507011,relator ministro Raul Araújo, DJe 03/02/2020.

[22] TRF2, AC 01662661220174025101, relator ministro juiz federal Conv. Antônio Henrique Correa da Silva, 7ª Turma Especializada, e-DJF2R 23/11/2020.

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